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Onde está a radioatividade? Conheça a história de Marie Curie

Cientista enfrentou diversas barreiras sexistas para alcançar o reconhecimento de seus trabalhos sobre radioatividade
Capa Marie Curie
Por Rafael Dourador (rafa.dourador@usp.br)

No dia 8 de outubro, a Academia Real das Ciências da Suécia anunciou o prêmio Nobel de Física para os cientistas John Hopfield e Geoffrey Hinton por suas descobertas sobre o aprendizado de máquina (machine learning, em inglês) com redes neurais artificiais.

Há pouco mais de um século, uma cientista polonesa foi laureada com essa mesma premiação. Marya Salomee Sklodowska, mais conhecida como Marie Curie ou Madame Curie, foi uma das mentes mais brilhantes do século 18. Ela superou grandes desafios não apenas para fazer suas descobertas no campo científico, mas também para ser reconhecida por elas.

Famosa por ser a única mulher a ganhar dois Prêmios Nobel em áreas distintas (Física e Química), ela foi responsável pela identificação dos elementos polônio e rádio, além de ter sido a primeira pessoa a utilizar o termo “radioatividade”. Apesar disso, seus feitos sempre sofreram censuras pelo meio majoritariamente masculino e machista que permeou a ciência em sua época e que ainda é presente.

Poster do filme Radioactive
A vida de Marie Curie foi representada no filme dramático Radioactive (2019) [Imagem: Divulgação/Netflix]

A vida de Marie Curie

Nascida no dia 7 de novembro de 1867, em Varsóvia (Polônia), Marie foi filha de um professor de física — Wladyslaw Sklodowski — e de uma mãe que também lecionava, chegando a ser diretora de uma escola particular. Bronisława Skłodowska, no entanto, faleceu quando a filha ainda tinha onze anos, vítima de uma tuberculose.

Marie e seus quatro irmãos Jozef Skłodowski, Bronisława, Zofia e Helena Skłodowska acompanharam os passos dos pais, interessando-se desde cedo pelos estudos. Por ser homem, Jozef poderia estudar no país, que dispunha apenas de uma educação primária para as mulheres, privando-as da vida acadêmica.

Por esse motivo, Marie e Bronia fizeram um combinado: Marie trabalharia na Polônia para ajudar a irmã a se manter em uma universidade na França. Quando esta terminasse sua graduação, seria a vez da outra migrar para Paris e se formar. Neste período, Marie foi governanta no interior e também ensinava as crianças da casa sobre a história da Polônia.

O país estava sob domínio do Império Russo czarista na época e práticas que remetiam ao ensino da cultura polonesa eram proibidas. Além disso, a ocupação russa não permitia a presença de mulheres no meio acadêmico. Isso causou a formação das chamadas “universidades voadoras”, clandestinas instituições de ensino superior. Marie chegou a frequentar uma delas, conhecida como “Universidade Volante de Varsóvia”, que funcionou de 1885 a 1905. Lá, ela pôde começar seus estudos científicos e depois se transferir para a França.

Em entrevista ao Laboratório, a mestre em ensino de ciências pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), Natasha Obeid El Jamal, explica o cenário mais acessível para as mulheres na França: “Até então, a educação secundária feminina era responsabilidade da Igreja [Católica]. É a partir da Terceira República, com a aprovação da lei Camille Sée, em 1880, que abre-se o acesso ao ensino secundário público para as meninas. Cursos de religião são substituídos por cursos de moral, etc. Então, na verdade, em termos da educação da mulher, a Terceira República não era igualitária nem emancipatória, ela só era laica”, conta.

A Terceira República Francesa vigorou de 1870 a 1940 e foi marcada por mudanças sociais. As principais foram a separação entre o Estado e a Igreja e o avanço na escolarização de crianças e mulheres. Camille Sée foi um um político francês da época que, junto com Jules Ferry, procurou desenvolver uma identidade nacionalista distante da influência católica sobre a sociedade.

Apesar disso, a pesquisadora afirma que até a virada do século 19 para o século 20, a presença de mulheres em todas as universidades francesas não ultrapassava 3% do número total de estudantes. Foi também nesse período que o movimento feminista ganhou força no país, mas Natasha explica que ele não teve muita relação com a educação nos anos em que Marie estudou.

O casal Curie na ciência

Foi na cidade parisiense que a cientista concluiu sua primeira graduação em Física, Química e História Natural e conheceu aquele que viria a ser seu esposo em 1895: Pierre Curie. Ele, professor na Escola de Física e Química Industrial de Paris (EPCI), disponibilizou um espaço em seu laboratório para ela realizar seus estudos. O estreitamento dessa relação, juntamente ao interesse comum pelas ciências naturais, fez crescer um amor entre os dois. Foi também aqui que ela mudou seu nome Marya para “Marie” e adotou o sobrenome do marido.

A união com Pierre trouxe à Marie algumas possibilidades que dificilmente viriam sem um sobrenome francês. Natasha destaca o conceito de complementaridade sexual, elaborado pelo pesquisador Gabriel Pugliesi em seu estudo Sobre o Caso “Marie Curie”: “Trata-se do fato do trabalho em conjunto com o marido ter proporcionado a ela maior reconhecimento”, explica a cientista.

Isso não a isentou, no entanto, de enfrentar outras barreiras sexistas no caminho. “A Marie Curie não conseguia apresentar os resultados da pesquisa dela na Academia de Ciências de Paris para os outros membros porque ela era constituída apenas por homens. Então, foi o orientador dela, Gabriel Lippmann, quem leu os primeiros resultados da Marie sobre os raios de Becquerel”, complementa Natasha.

Até o ano de 1902 o casal publicou mais de 30 artigos científicos em conjunto, incluindo aqueles que remeteram à descoberta do rádio. Em junho de 1903, eles foram convidados para palestrar sobre radioatividade na Royal Institution em Londres. Marie, no entanto, foi impedida de falar pelo fato de ser mulher e apenas Pierre discursou.

Ainda em 1903, ela também não foi inicialmente indicada para receber o prêmio Nobel de Física pelos seus estudos sobre a radioatividade e pela identificação do elemento que Marie chamou de polônio. Apenas constavam os nomes de seu marido e do cientista Antoine Henri Becquerel – descobridor do fenômeno da radioatividade –, que também fizeram parte da pesquisa. Foi somente após Pierre enviar uma carta à comissão do Nobel em Estocolmo, solicitando o reconhecimento de sua companheira, que Marie teve seu nome na gratificação.

Casal Pierre e Marie Curie
Marie tentou retornar à Polônia em 1894 com Pierre para trabalhar como professora em uma universidade polonesa, mas a vaga pretendida lhe foi negada por ser mulher [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons]

No século 20, o polônio teve diversos usos. Foi muito utilizado como um gerador de energia para foguetes e até como veneno em conflitos. O caso mais interessante foi um experimento dos cientistas Walther Bothe e Herbert Becker com partículas alfa emitidas pelo elemento químico, em 1930. Anos depois, esse estudo serviu de base para que James Chadwick identificasse os nêutrons do átomo — antecipadamente previstos por Rutherford.

O segundo Prêmio Nobel de Marie Curie, desta vez em Química, veio em 1911, com a descoberta do rádio – elemento radioativo obtido a partir do refinamento do urânio. Mais tarde, sua identificação teria efeitos importantes na medicina. Infelizmente, Pierre Curie não teve a oportunidade de receber o prestígio pela sua contribuição, pois foi atropelado por uma carroça e faleceu em 1906. Aconselhada a não receber o prêmio, Marie também enfrentou linchamentos até mesmo por parte da imprensa, que expôs um caso da cientista com Paul Langevin, ex-pupilo de Pierre que, na época, era casado.

O casal Curie teve duas filhas: Irene e Ève Curie. A primeira seguiu os passos da mãe e se tornou outra grande cientista, ganhando o Nobel de Química pela produção artificial de um isótopo radioativo de fósforo. Irene também acompanhou Marie nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Quando não orientavam os médicos, as duas operavam por conta própria o aparelho móvel de raio-x que Marie desenvolveu — conhecido como “carro radiológico” ou “petites Curies” (pequenas Curies, em francês).

Já Éve, por outro lado, se dedicou à vida artística como crítica de música e cinema, foi ativista, correspondente de guerra e escreveu uma biografia de sua mãe, cujo título é Madame Curie. Irene morreu em 1956 aos 58 anos, após sofrer de leucemia, que pode ter sido causada pela exposição prolongada a material radioativo. Eve morreu aos 102 anos em 2007.

Marie Curie e suas filhas
Para dar conta dos trabalhos científicos, Marie Curie contava com o auxílio de empregadas contratadas para cuidar de suas filhas [Imagem: Autor desconhecido/Wikimedia Commons]

Curie no Brasil

Em 1926, Marie Curie e Irene fizeram uma visita ao Brasil que durou 44 dias. Elas desembarcaram no Rio de Janeiro e realizaram conferências e experimentos de radiação na Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi criada a Sociedade Brasileira de Ciências – atual Academia Brasileira de Ciências (ABC). Marie também teve dois artigos escritos sobre ela em revistas brasileiras, um na Revista da Semana de 10 de julho e o outro na Revista O Malho, de 24 de julho.

Também passaram por São Paulo a convite de Pedro Dias da Silva, diretor da Faculdade de Medicina da USP. Curie ministrou palestras na instituição e visitou o Instituto Butantan. Da capital paulista, foram para Águas de Lindóia verificar a existência de um pequeno grau de radiação nas fontes lindoiense. Anos depois, descobriu-se que a água mineral da cidade atingia 3.179 maches na escala radioativa, contra 185 maches das famosas fontes de Jáchymov na antiga Tchecoslováquia e 155 maches das fontes de Bad Gastein, na Áustria. Com esse dado, concluiu-se que aquela era a água mineral de maior radioatividade em todo o planeta.

Em seu artigo Reflexões sobre a classificação e as características químicas da água mineral envasada do Brasil, Reginaldo Antonio Bertolo — geólogo, doutor em Hidrogeologia pela Universidade de São Paulo (USP) —, explica que “a radioatividade das águas minerais pode ser permanente ou temporária. […] Os isótopos de rádio e de radônio são produzidos a partir da desintegração do Urânio e/ou do Tório, que se encontram em rochas cristalinas ácidas, principalmente granitos”. 

A princípio, essa radioatividade vinda das rochas só é prejudicial à saúde se consumida em grandes quantidades, embora alguns estudos advertem que, mesmo com pequenas doses de radiação, o uso prolongado dessas águas pode causar problemas.

Por fim, as Curie foram ao Instituto do Rádio, em Belo Horizonte. Em seu livro A radioterapia no Brasil, Antônio Celso Lima Costa, co-fundador do Instituto de Radioterapia Geral, escreveu que Marie desembarcou “debaixo de demorada salva de palmas” e foi recebida por Borges da Costa, diretor do Instituto do Rádio. Até o fim daquele ano, ela recebeu diversas outras homenagens e reconhecimentos da Academia Nacional de Medicina, da ABC e da Federação Brasileira para o Progresso Feminino.

Marie Curie no Brasil
Durante sua visita, Marie (sentada) e Irene (em pé à esquerda de Marie) foram acompanhadas por Bertha Lutz (à direita na foto), então presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino [Imagem: Autor desconhecido/Wikimedia Commons]

Madame Curie faleceu em 4 de julho de 1934, aos 66 anos, vítima de uma anemia aplástica — doença que impede a produção de células do sangue — em decorrência da intensa exposição e manipulação de materiais radioativos. Seus registros altamente contaminados ficarão guardados em caixas de chumbo por, pelo menos, 1,5 mil anos. O corpo de Curie está em um sarcófago de chumbo com mais de 2 cm de espessura no Panteão de Paris para evitar que os seus átomos ainda radioativos escapem. Junto ao corpo de Marie no Panteão, também estão os restos mortais de Pierre e outras figuras famosas, como os pensadores iluministas, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire.

As contribuições de Marie Curie para o avanço científico foram pertinentes e sua imagem se tornou um símbolo da luta feminina, especialmente no espaço acadêmico. Contudo, Natasha Obeid El Jamal alerta para as limitações dessa conquista. “A trajetória da Marie Curie pode até inspirar, mas só inspiração é insuficiente para abrir portas para as minorias sociais. O que a gente precisa é de mudanças estruturais.”

Conforme Natasha aponta em seu artigo de mestrado, as cientistas precisam ter condições de participar das práticas científicas —  como teve Marie Curie, apesar de todas as dificuldades. Para ela, políticas públicas de aumento de bolsas de estudo para pesquisas acadêmicas, equivalência nas licenças maternidade e paternidade para equilíbrio das tarefas de cuidado aos filhos e ampliação das creches são caminhos para que as mulheres do futuro possam alcançar feitos como os de Curie.

“Do que adianta mais meninas inspiradas a fazer ciência se elas não conseguem ingressar em um ensino superior de qualidade ou ter alguém para ajudar nos trabalhos domésticos?”

Natasha Obeid El Jamal

O rádio no tratamento de câncer

A descoberta do rádio levou ao desenvolvimento da radioterapia, uma especialidade médica para tratamento do câncer reconhecida em 1922 pelo Congresso Mundial de Oncologia de Paris.

O especialista em radioterapia pelo Colégio Brasileiro de Radioterapia e co-fundador do Centro Paulista de Radioterapia e Oncologia, Sérgio Libonati, explicou ao Laboratório o princípio de funcionamento do tratamento: “O tumor [cancerígeno] é uma célula que se divide erroneamente. A radiação consegue atrapalhar essa divisão celular e com isso o tumor acaba não crescendo”, conta.

Ele complementa que a célula maligna é mais sensível à radiação do que o tecido ao redor dela. Por esse motivo, o tratamento não prejudica a recuperação do paciente, ainda que as regiões circundantes sejam atingidas pela radiação. Libonati destaca os usos alternativos da radioterapia além do tratamento de câncer, como na prevenção da formação de queloides – crescimento excessivo de cicatrizes – após procedimentos cirúrgicos e funcionando como anti-inflamatório em dores musculares.

Apesar da diversidade de opções, há dois tipos principais de tratamento: a braquiterapia, onde há contato físico direto entre tecido e material radioativo, e a teleterapia, que é feita à distância. A braquiterapia ou terapia interna pode envolver um implante radioativo, uma solução líquida ou uma injeção intravenosa. Já a teleterapia ou terapia externa consiste na irradiação de um feixe de radiação geralmente de raios X produzidos por um acelerador linear.

Desde suas primeiras aplicações, que eram feitas sem proteção, os aparelhos de radioterapia evoluíram significativamente. “Hoje demora mais para preparar o paciente e vesti-lo do que para realizar o procedimento”, ironiza o médico. Mesmo assim, o tratamento tende a ser um dos mais procurados no Brasil. Uma estimativa do Instituto Nacional de Câncer (INCA) apontou que haverá 704 mil novos casos de câncer até 2025. Somente neste ano, o Centro Paulista de Oncologia já recebeu mais de 2 mil novos pacientes.

Para combater este avanço, Libonati vê com bons olhos o desenvolvimento e aprimoramento de novos equipamentos na radioterapia, com ênfase no uso de inteligência artificial. “Vai vir para melhorar porque ela pode te dar um caminho mais lógico, um leque de opções. A formação [do radioterapeuta] está mudando. Ela está mais técnica. As coisas vão evoluindo, mas sempre vai haver emprego porque é um conjunto de técnicos”, afirma.

Equipamento de radioterapia
O acelerador linear de partículas Halcyon é utilizado para radioterapia modulada por intensidade volumétrica guiada por imagem (IMRT) e recebeu o registro da Anvisa em 2017 [Imagem: Rafael Dourador/Jornalismo Júnior]

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