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Da colonização à resistência: caminhos da memória cultural na América Latina 

Nós, Latino-americanos Somos todos irmãos mas não porque tenhamos a mesma mãe e o mesmo pai: temos é o mesmo parceiro que nos trai. Somos todos irmãos não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa: divisamos a mesma espada sobre nossa cabeça. Somos todos irmãos não porque tenhamos o mesmo braço, o mesmo …

Da colonização à resistência: caminhos da memória cultural na América Latina  Leia mais »

Nós, Latino-americanos

Somos todos irmãos

mas não porque tenhamos

a mesma mãe e o mesmo pai:

temos é o mesmo parceiro

que nos trai.

Somos todos irmãos

não porque dividamos

o mesmo teto e a mesma mesa:

divisamos a mesma espada

sobre nossa cabeça.

Somos todos irmãos

não porque tenhamos

o mesmo braço, o mesmo sobrenome:

temos um mesmo trajeto

de sanha e fome.

Somos todos irmãos

não porque seja o mesmo sangue

que no corpo levamos:

o que é o mesmo é o modo

como o derramamos.

 

O poema do maranhense Ferreira Gullar define a unidade latino-americana através das marcas da colonização que são compartidas entre os países da região. O genocídio não apenas das populações indígena e africana através da escravidão e do assassinato daqueles que resistissem à dominação, mas também de suas culturas, promoveu dores e perdas imensuráveis em toda sua extensão territorial. 

A exploração econômica e a extração de recursos naturais estabeleceram as desigualdades que perduram até hoje entre a região e os países europeus colonizadores. Porém, um crime tão grave quanto os mencionados passa despercebido por grande parte da população: o memoricídio.

A eliminação de toda manifestação cultural que simbolizasse resistência ou alternatividade à cultura imposta foi uma tática utilizada pelos colonizadores para consolidar sua hegemonia e apagar o passado das civilizações dominadas. Línguas foram impostas aos nativos. Livros foram proibidos e queimados em praças públicas. Templos foram demolidos e substituídos por igrejas. 

A arte que não destruíram, foi expatriada e submetida à análise europeia, de modo a estudá-la como vestígio de povos supostamente selvagens e exóticos em sua independência. Roubaram-na para descaracterizá-la e cavar buracos no imaginário cultural latino-americano.


A cultura roubada

Esses gritantes vácuos estimularam o site peruano de jornalismo investigativo Ojo Público a reunir profissionais da América Latina na criação da plataforma Memoria Robada, que se propõe a monitorar e divulgar informações acerca dos roubos, leilões e repatriações de obras de arte latino-americanas. O projeto coleta dados de polícias e ministérios dos países analisados a fim de contestar os números oficiais, que não retratam o problema com precisão. No Peru, segundo a organização, mais de sete mil obras do patrimônio cultural do país foram leiloadas nos Estados Unidos e na Europa, o que corresponde a 150% dos dados informados pela Interpol referentes a toda a América Latina.

Nesse sentido, o tráfico acobertado não mostra indícios de encerramento. Segundo o portal Memoria Robada, são beneficiários “diplomatas que abusaram de sua dignidade, criminosos com dinheiro para lavar, políticos que se refugiam nas lacunas da lei, supostos detetives da arte que são beneficiados por paraísos fiscais e traficantes que resguardam provas”. Enquanto isso, os mecanismos de registro e preservação são sucateados pela carência de recursos.

Cerimônia de repatriação de bens culturais em Lima, no Peru. [Imagem: Reprodução/YouTube/Ojo Público]
Cerimônia de repatriação de bens culturais em Lima, no Peru. [Imagem: Reprodução/YouTube/Ojo Público]
Em 2010, a casa de leilões Lempertz, na Bélgica, provocou alertas nas embaixadas peruana, costa-riquense, guatemalteca, mexicana, colombiana, equatoriana e boliviana ao dispor em seu catálogo obras pré-colombianas originárias de todos os citados. A Bélgica se prontificou a devolver as obras sob condição de que fossem apresentadas provas documentais de pertencimento, roubo e processo jurídico que reclamassem a posse das obras, mas as nações não conseguiram angariar a documentação necessária no prazo de três dias antes da venda. Já a casa de leilões se justificou ao alegar checagem obrigatória da proveniência das peças vendidas — o critério de legitimidade consistia de três perguntas, sem necessidade de qualquer documentação além de uma lista dos objetos a ser enviada para a polícia.  

Esse descaso com a iconografia da memória latino-americana não é estranho após séculos de colonização e imperialismo sobre o continente. Helio Moreti, professor de História, diz que “a imposição de valores essencialmente cristãos foi de extrema importância para a criação de um padrão de civilidade contra a selvageria; de certo contra o errado; de decente contra o  indecente. Essa imagem de América, como refletida em espelho macabro, revelou uma realidade em que a cultura e os valores morais nativos não poderiam ser mantidos a não ser como falhas a serem eliminadas ou corrigidas. Nesse sentido, destruir a cultura local passa a ser quase imperativo”.

Enquanto isso, a arte passou a ser massivamente expatriada para ocupar as paredes de museus ou mesmo da elite estrangeira. O olhar europeizante passou então a compor noções de exotismo e estranhamento acerca da tradição latino-americana. As crenças de matriz indígena, as expressões corporais e ritualísticas, a estética tropical e a ausência de pudor sob moldes católicos instigaram a percepção exterior, que, como Helio comenta, “é marcada pela desinformação e pelo preconceito, com raríssimas exceções”. 

Quanto a isso, o historiador acrescenta: “Passados séculos, o olhar estrangeiro ainda pende entre duas narrativas: a América (particularmente a Latina) como espaço da não civilização, da impossibilidade da vigência de ética, da cidadania ou democracia, onde a corrupção, a morte violenta e a irracionalidade são as características marcantes; ou que a América Latina, quente no clima e na libido, é um paraíso das sensações e da permissividade, ou mesmo como berço de civilizações primitivas que guardam os segredos de uma natureza divina”.


A arte no imaginário latino-americano

Não foi difícil manter tais imagens em vigor até mesmo no próprio continente. A presença estrangeira (quando não europeia, norte-americana) manteve-se entranhada nas instituições políticas ao longo dos anos. Helio destaca que mesmo a construção de identidades nacionais após processos de independência no século 19 “tratou de apagar qualquer traço que lembrasse as culturas nativas, apesar da sua indefectível presença no cotidiano em toda a América”.

O século 20 em especial foi marcado pelo militarismo ditatorial que dominou 12 dos 20 países da América Latina. Todos os regimes foram apoiados pelos EUA em meio à Guerra Fria, período no qual a nação explicitamente procurava estabelecer sua hegemonia global frente à ascensão soviética. 

Dora Longo Bahia, artista multimídia e doutora em poéticas visuais, ilustra uma das mais evidentes expressões de tal domínio: a Operação Condor, que abrangia Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai. “Ela era encabeçada pelos Estados Unidos para manter regimes ditatoriais de direita na América Latina. Não só enviavam armas e dinheiro, como também tecnologias de tortura. O manual que foi utilizado para treinar os nossos torturadores veio dos norte-americanos”.

O clima de barbárie e censura aqui lecionado e imposto foi inspiração para uma das exposições da artista. Campo e Contracampo, idealizada para os cavaletes de vidro do Museu de Arte de São Paulo (MASP), consiste de telas em branco cujos versos representam cenas de protesto e opressão. O vazio do primeiro plano remete a páginas do jornal Folha de S.Paulo, então deixadas em branco para explicitar silenciamento de notícias que ocupariam tal espaço.

Repressão a um protesto retratada em Campo e Contracampo, quadro de uma série que trata dessa construção da memória cultural. [Imagem: Reprodução/YouTube/MASP]
Repressão a um protesto retratada em Campo e Contracampo. [Imagem: Reprodução/YouTube/MASP]
O trabalho, que inicialmente representaria diretores das instituições culturais da Avenida Paulista — todos do mercado financeiro —,  foi alterado em negociações. O caso ilustra uma das contradições da profissão artística na contemporaneidade: a ocupação e o questionamento de espaços advindos das relações de poder que ainda oprimem o continente. Segundo Dora, o artista “tem seu trabalho na casa do presidente do banco, mas ao mesmo tempo está em protestos junto aos manifestantes de esquerda, com o MTST”. 

É, então, de difícil delimitação o que seria arte de resistência ou decolonial. Dora questiona: aquilo que origina-se e desenvolve-se sob os parâmetros e linguagem de setores dominantes de fato os confronta? Nesse sentido, o campo parece minado tanto aos criadores quanto aos espectadores — de um lado, as limitações que a artista credita ao capital e ao preciosismo em torno das estruturas de instituições; de outro, o sucateamento da educação e dos alicerces culturais. 

Desse modo, as brechas encontradas por artistas dentro desse sistema são imprescindíveis para a desestabilização de algemas. Quando a exposição de Dora ocorreu pela primeira vez, nem mesmo o título original de certas obras, como Presidente do Instituto Moreira Salles, pôde ser utilizado. Depois do encerramento, no entanto, a tela Campo e contracampo (Presidente do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) foi adquirida ao acervo do museu. Dora destaca que “esse presidente do MASP só no título corresponde ao lugar do poder, que é um lugar vazio, ocupado por quem chega lá, grita mais alto, tem mais dinheiro e mais amigos”.

Ademais, a potencialidade da arte frente às instituições latino-americanas não se limita ao escopo regional. O protesto é pertinente tanto dentro do continente quanto a debates internacionais e nações submetidas à mesma opressão. Um exemplo que justifica tal pertinência é a constante atenção de líderes globais às políticas ambientais tomadas na América Latina. Se, por um lado, a vigilância se mostra necessária diante de decisões duvidosas e discursos anti-ambientalistas de governantes latinos, por outro, ela esconde uma patrulha imperialista sobre os recursos naturais da região com fins meramente econômicos.  

Tais contradições sem resolução têm como consequência a manutenção da enorme devastação ambiental. É o que Dora Longo Bahia explorou em sua instalação Brasil X Argentina, em que a rivalidade futebolística assume papel divisor entre os dois países enquanto a união entre eles é estabelecida com a destruição de seus respectivos ecossistemas.

O derretimento das geleiras na Argentina e as queimadas no Brasil exibidas em Brasil X Argentina. [Imagem: Reprodução/YouTube/ZUM]
O derretimento das geleiras na Argentina e as queimadas no Brasil exibidas em Brasil X Argentina. [Imagem: Reprodução/YouTube/ZUM]
Dora conta que se impressionou ao conhecer a Patagônia e descobrir que a quantidade de degelo que antes se acumulava em cem anos, agora leva dez. Para ela, apesar de tentativas como a formação do bloco econômico Mercosul, a América Latina “possui um lugar comum de separação e de competição na destruição”.

A cultura dominante que aqui rege, então, carrega consigo o histórico de repressão e a perspectiva estrangeira que aliena expressões da tradição local. A arte latino-americana produzida na contemporaneidade procura pelo lugar comum a qual o continente foi privado, mesmo que este esteja na dor da destruição ambiental ou da poesia de Gullar. A expressão artística dá forma, som e dimensão aos clamores e às cicatrizes que ardem, tanto quanto abre espaço para o protagonismo de diferentes pontos de vista. 

Em sua complexa busca pela emancipação de moldes coloniais, a produção da América Latina não só eleva seu povo e cultura, como acompanha nações subdesenvolvidas pelo globo em busca de reparação. O reconhecimento de diferentes passados é pilar da valorização do presente e idealização de um novo futuro. Muito além de bens materiais, deve ainda ser repatriada a memória.

 

Imagem de capa: [Pinturas utilizadas: Dora Longo Bahia, Debret, Portinari, Benedito Calixto]

Especial América Latina | Jornalismo Júnior

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