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“Desculpa, querido. Aqui não tem protocolo”

Impressões sobre o evento “Na Linha de Tiro: Jornalistas e a Cobertura de Conflitos” Por Yasmin Oliveira (yasmin.oliveirac12@usp.br) e Renan Sant Ana (renan.sansou97@usp.br) Sábado de outono em São Paulo Por trás de toda cobertura de conflitos, há um repórter arriscando-se à procura de uma boa reportagem. O que acontece no bastidor da apuração da notícia …

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Impressões sobre o evento “Na Linha de Tiro: Jornalistas e a Cobertura de Conflitos”

Por Yasmin Oliveira (yasmin.oliveirac12@usp.br) e Renan Sant Ana (renan.sansou97@usp.br)

Sábado de outono em São Paulo

Por trás de toda cobertura de conflitos, há um repórter arriscando-se à procura de uma boa reportagem. O que acontece no bastidor da apuração da notícia foi o tema central de “Na Linha de Tiro: Jornalistas e a Cobertura de Conflitos”, evento aberto e organizado pela Jornalismo Júnior em parceria com o espaço Tapera Taperá no dia 26 de maio.

A primeira impressão vem do local onde foi realizado. Tapera Taperá, ou apenas Tapera, é espaço cultural, biblioteca e livraria localizada no centro de São Paulo, na Galeria Metrópole. “Um experimento político-cultural”, como eles mesmos se definem, em seu site. O espaço destinado ao evento, apesar de pequeno, é muito acolhedor e expressa bem a autodefinição da organização.

Mais importante, contudo, é quem faz o evento. Três convidados, profissionais de destaque na área, se uniram para compartilhar, além dos percalços de seu trabalho, suas histórias.

Apesar dos três terem sido denominados “palestrantes” no cartaz divulgado do evento, gosto de pensar que tivemos mais que uma palestra. Foi uma aula, e também um debate, sobre o papel do jornalista, da forma menos romantizada possível.

As dificuldades, os protocolos – ou a falta deles – nas ações de quem cobre conflitos devem ser expostos, foram expostos sem floreamentos. É muito interessante para quem adentra esse mundo reconhecer o que realmente acontece, mesmo que por relatos extremos.

Os palestrantes

Gabriela Biló é fotojornalista do jornal Estadão. Seu trabalho pelas manifestações da capital paulista é admirado por quem vê as imagens de sua autoria.

Sua primeira fala foi uma das que mais me marcaram. Após a apresentação de Moisés Rabinovici – que cobriu alguns dos conflitos armados mais relevantes da História – ela faz questão de ressaltar:  “Eu não cubro guerras, eu cubro conflitos urbanos. Não tenho a pretensão de dizer que é guerra. Sua vida está em risco de formas diferentes.”

É a única mulher entre os palestrantes.

Seu gênero não é o foco, mas inegavelmente gerou empatia nas que acompanhavam sua fala. Eu mesma, como estudante de jornalismo, senti admiração maior por uma mulher que conquistou seu espaço em um meio ainda visto como masculino. Indiretamente se torna uma inspiração.

Não fui a única, inclusive. Mariah Lollato, que estuda jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), comenta sua admiração pela repórter. Além do fato de ela ser mulher e jovem, “o quanto não deve ser forte e se impor. Ela coloca seu corpo na rua e faz seu trabalho, a todo tempo está buscando seu espaço e impondo respeito.”

Daniel Arroyo, Moisés Rabinovici e Gabriela Biló, da esquerda para a direita (Imagem: Jornalismo Júnior)

Daniel Arroyo é outro fotojornalista, que contribui para a Ponte Jornalismo. Se apresenta com uma frase que me marcou de maneira significativa – “numa manifestação não existe linha de tiro, não é uma área de guerra. Se torna um problema por causa da repressão.”

Por mais caóticos que sejam alguns episódios de conflitos em protestos, comparar algo a uma guerra é grave. Qual a diferença entre a guerra e  conflitos que presenciamos aqui, principalmente em São Paulo?

Posteriormente, Gabriela comentaria sobre isso. “Acho que o principal problema é a tensão. Você dá um passo e os policiais se sentem ameaçados.” Só que, diferente de um campo de guerra, isso não deveria ocorrer em uma manifestação comum. Nem sempre acontece, é verdade. Mas é justamente a imprevisibilidade que gera a ausência da tal “linha de tiro”.

(Válido lembrar que, em certo momento da discussão, um dos convidados cita o jornalismo na cidade do Rio – lá, sim, há uma guerra.)

Por último, falou Moisés Rabinovici, da EBC. É o mais velho e, consequentemente, mais experiente. Além disso, o único entre eles que vivenciou guerra declarada.

Começou sua carreira por acaso. Construiu-a e, no fim, cobriu do Iraque ao Yom Kippur, como correspondente internacional.  “O jornalismo que eu fazia não é mais o que se faz”, é uma de suas frases iniciais após ser apresentado. Mesmo assim, percebe-se que acompanhou bem a evolução da comunicação, como ele mesmo diz.

Experiências na linha de tiro

“No dia 24 de maio de 2017, houve uma passeata ‘Fora Temer’. O que aconteceu foi o seguinte: 29 feridos, uma mão decepada, 8 policiais militares feridos…” Daniel Arroyo nos dava números e números do que havia sido a manifestação. Mal era possível anotar conforme ele falava.

No telão, passavam imagens e mais imagens que ele mesmo fizera: sangue, balas reais e de borracha, escudos improvisados. “O Estado é o problema [nas manifestações]. Às vezes, todo mundo está ali se manifestando pacificamente, na boa, até que estoura uma bomba. Aí sai do prumo. A polícia não pode agir, ela tem que reagir ao problema”.

Não apenas da imagem vive o fotojornalista. Daniel reiteira mais de uma vez a força do vídeo para causar o impacto e capturar o momento.

Em certo momento, ele mostra uma gravação que me fez gelar. Com sua go pro na cabeça, foi abordado por policiais de maneira agressiva, mandando que ele apagasse as fotos da câmera de mão.

Eu me sentia ali. Como eu reagiria? A incerteza me fez ficar incomodado.

E foram só os primeiros quarenta minutos.

Aqui não tem protocolo

As fotografias que os palestrantes trouxeram mostravam tanto manifestantes quanto policiais. Curiosamente, há um Protocolo de Como usar balas de borracha. “Você tem que atirar na perna, para imobilizar quem você está mirando. Eles atiram com noventa graus em relação ao chão”, diz Daniel, mostrando uma pessoa ferida.

Eram cenas angustiantes. O peito nu de um homem sangrando por uma bala de borracha era assustador.

Biró vivenciou uma situação tão dramática quanto, ao cobrir a desocupação da cracolândia. “Queimaram uns colchões atrás da gente e a polícia vinha na frente, pra desocupar a área. Eles começaram a andar pra trás e dizer ‘recua! recua!’. Eu só disse pra ele ‘desculpa, querido, aqui não tem protocolo’”, rindo.

Uma rápida e sábia, passagem

Quem falou menos foi Moisés Rabinovici. Apesar disso, trouxe histórias de deixar qualquer jornalista de queixo caído.

Como dito, Moisés foi o único entre os convidados a cobrir uma guerra, além de não ser fotojornalista – o que implica em um olhar um pouco diferente sobre o assunto. Trazia confiança ao falar. O surpreendente era o modo calmo em que relatava suas histórias  sobre os conflitos que presenciou, a maior parte no Oriente Médio.

Ele gesticulava pouco, mas com bastante significado. Fazendo o sinal com a mão, ele dizia: “Você pergunta pro guerrilheiro ‘que arma que é essa?’, e ele te conta como é a arma, dá até uns tiros pra você ver”.

Eu me perguntava se a naturalidade vinha das múltiplas vezes em que ele vira a cena. Mas sua próxima frase incomodou ainda mais. “Eu tenho mais medo de andar em uma rua de São Paulo, de noite, do que de cobrir uma guerra”.

Ele nos fez pensar também sobre o papel do jornalista enquanto pessoa. Seu colega, um fotógrafo dinamarquês, ao fotografar um homem condenado ao “Colar de Fogo” (uma execução brutal em que um pneu é encaixado em volta do pescoço do condenado e posto em chamas, logo em seguida) na África do Sul, fora questionado por seus diretores, dizendo que, estivessem eles ali, teriam “apagado o fósforo”. “Ora”, diz Rabinovici, indignado, “a foto dele viajou o mundo! Gerou discussão e fez acabar com aquele sistema de punição bárbaro.”

Apagar o fósforo ou ter o clique? Seríamos nós daqui uns anos – e até agora mesmo – a fazer essa escolha.

Filho, leva a blusa

A pergunta foi “Que tipo de equipamentos de proteção vocês levam para cobrir as manifestações?”. Arroyo pensa, pensa, e afirma que leva uma mochila, um capacete, óculos, e afirma: “Essa é a minha proteção”.

Já Biló é mais direta. Sem pensar, ela diz: “Eu não uso óculos de proteção”, e eu, do alto da minha ingenuidade jornalística na cobertura de conflitos, imaginava ser uma questão de atrapalhar na hora de fotografar ou, até mesmo, uma birra estética. O que se sucedeu a isso me fez perder um pouco o ar. “Ele embaça na hora de correr”.

Eu imaginava aquela cena. Poderia ser eu, não usando proteção adequada porque ela atrapalha no momento de bater em retirada. “A cobertura não vale a pena se você perde um olho, se acontece alguma coisa com você”, ela anuncia.

O feeling do repórter

Cobrir um momento conflituoso envolve mais do que a necessidade e obrigatoriedade de repassar os fatos ao mundo – princípio fundamental do fazer jornalístico. A dualidade entre a integridade de quem o faz e seu dever como profissional é constante. Dois temas discutidos me intrigaram: como os repórteres lidam com o medo, e a questão dos direitos humanos, da ética.

Foi consenso que o medo é um sentimento positivo. No meio de uma manifestação com embates, de um conflito urbano, há o risco, a tensão. Não sentir medo é ignorar um instinto natural. Parece óbvio a um primeiro momento, mas a subestimação de tal sentimento pode ser fatal para um jornalista.

Biló ressalta a necessidade de sentir-se não confortável, mas bem em sua posição. “Não deveria existir posicionamento, mas infelizmente existe lugar certo e errado. Eu tenho cicatriz até hoje de estilhaços de bomba”, comenta. Para ela, medo é o aviso do corpo sobre o que o racional não percebe. E, de acordo com ela, segue à risca.

Já os direitos humanos se tornaram parte da discussão quando ela relata a história por trás de uma foto dramática: o resgate de um senhor cego em um incêndio por um policial. É um dilema pelo qual passou quando abandonou sua câmera para procurar ajuda a um cego, em meio às chamas. Outra questão que, à primeira vista, parece óbvia: perder a foto por uma situação de emergência.

Entra aí a história do Colar de Fogo e a importância do repórter, do fotojornalista, em relação ao coletivo. No caso de Gabriela, era o certo a fazer, sem dúvida. E quando a situação está além do controle do repórter? Ou quando as consequências do impacto seriam maiores a uma causa social?

“Existem muitos momentos na vida em que você fica em dúvida entre ser humano e ser fotógrafo. Um fotógrafo pode mudar um país”, é o que fala Moisés. Isso me fez refletir muito. A decisão entre salvar um terceiro, ou de não poder ajudá-lo mas precisar do registro, me parece árdua demais. O quão utilitarista devemos ser?

De volta à realidade

Ao ser anunciado o final da palestra, ao som de alguns desanimados aaaaahhhs, e ah, não!, os convidados começaram a contar histórias mais espirituosas.

“Eu não uso capacete azul, de imprensa”, diz Biló, “prefiro o meu, de skatista, que eu comprei, vermelho. Dá para toda a minha equipe saber onde eu estou. E minha mãe também, se eu sair na TV”. Ela faz o gesto de quem acena, com jeito brincalhão, para a câmera, em meio ao riso dos presentes.

Arroyo também se mantém vívido. “Eu tenho medo mesmo é de avião! Manifestação até que é tranquilo”, brinca.

Eu imaginava aquelas exatas cenas em almoços de família. Mãe, quando a senhora ligar a TV, procura um capacete vermelho. Sou eu. Mãe, eu tenho que cobrir uma manifestação em Brasília, mas avião… A senhora sabe como é.

Platéia do evento na Tapera Taperá (Imagem: Jornalismo Júnior)

Isso me fez olhar mais o lado humano, não glamourizado ou romantizado, do jornalismo. A cobertura é humana, pessoal, feita por pessoas, com medos e idiossincrasias. Ao fim do evento, quando Gabriela e Daniel são questionados sobre o porquê de continuarem a trabalhar com algo tão árduo, as respostas são variadas, mas trazem sinceridade. Para Daniel, “é o levante. Todos saírem de casa e protestarem por motivo X”. Gabriela traz uma motivação mais pessoal e comum a quem publica: “existe um lado pra mim muito egoísta que é se sentir significante no mundo, querer fazer a diferença. Uma forma de se tornar imortal é eternizar-se historicamente.”

A impressão de quem esteve por lá é positiva e os convidados, vistos com admiração. Beatriz Sayuri, estudante de Jornalismo da ECA-USP, declaradamente assume a admiração por quem se dispõe a uma profissão “tão perigosa”, que traz uma história por trás de cada imagem. Mariah Lollato comenta seu gosto pela cobertura de conflitos. Para ela, manifestações são um momento de união de pessoas em um estado atípico, em busca de algo: “Acho muito rico. Quando vemos uma foto dessas, é como se ela pudesse sintetizar algo muito forte de nossa existência e sociedade e de tudo que as pessoas são em um momento”.

O impacto pessoal

Entre mais de duas horas, muito foi discutido e apresentado.

Inevitavelmente, o papel e consequências da cobertura de conflitos vieram à tona. Surgiu a questão da violência que vem de todos os lados em um conflito. Temos a tendência de sentir empatia por um só, isso é ignorar a função primordial do jornalista: relatar o fato. Por mais que não existam notícias neutras, observar criticamente todas as versões de uma história é necessário.

Considerando o contexto apresentado, acho relevante trazer outra fala de Moisés Rabinovici. “Fica muito claro a culpa da polícia, mas eu vi também muita violência do outro lado. O jornalista não está ali, cobrindo o conflito, para tomar partido”. Cirúrgico.

Ao mesmo tempo, esses diferentes lados enxergam o repórter de maneiras diversas. Tanto manifestantes quanto policiais costumam agir com violência contra profissionais da imprensa, é sabido.  Apesar da posição de “neutralidade” (ou a tentativa dela), esta é geralmente desconsiderada no calor do momento. Não é apenas estar no meio de um confronto, é saber lidar com a iminência de ser mais que alguém que registra o acontecimento, uma vítima. Está aí mais uma necessidade do medo.

O poder do fotojornalismo também foi comentado. Dois terços dos ali presentes eram fotojornalistas, o que explica esse recorte.

Bianca Muniz, também estudante de Jornalismo da ECA, comenta suas impressões sobre o enfoque  dado ao olhar fotojornalístico. Para ela, a interpretação do fato pelo leitor depende de todos os fatores que envolvem a tomada da fotografia. Essa responsabilidade, adicionada à obrigação de cuidar da segurança pessoal e dos equipamentos, lhe parece complexa.

De fato, a imagem, por si, fala muito. A seleção de uma fotografia tem poder imensurável e a consciência disso é crucial. Em um contexto extremo, mudar um país. Mas mesmo nas menores coisas é uma responsabilidade que pesa. Afinal, é poder dado a uma pessoa, que registra com seu olhar o fato. O que vai ao público tem relevância e saber escolher é decisão difícil.

 

A  necessidade de ter medo, a consciência do poder do jornalismo, a importância de escutar todos os pontos de vista. Isso é o que me marcou.

No fim, o debate aborda não só como é a cobertura de conflitos, mas o poder da informação. É sobre o efeito do Jornalismo na sociedade.

Isso que torna o evento de sábado tão relevante para quem lá esteve.

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