“Eu tô vendo, ministro, que o senhor é ‘tigrão’ quando é com os aposentados, com os idosos, com os portadores de necessidade; é ‘tigrão’ quando mexe com os agricultores, com os professores; mas é ‘tchutchuca’ quando mexe com a turma mais privilegiada do nosso país.” Foi essa a declaração do deputado Zeca Dirceu (PT – PR) que inflamou o ânimo dos presentes, em especial do ministro Paulo Guedes, na audiência pública da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara para discutir a reforma da previdência no início do mês de abril.
O ministro, já exaltado, responde à altura: “tchutchuca é a mãe; é a avó”. Outros parlamentares também apontaram a falta de decoro do filho de Zé Dirceu. Em 2017, porém, o ministro Barroso ataca seu companheiro de suprema corte, dizendo que o ministro Gilmar Mendes é uma “mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”, e a reação de seus pares não é a mesma dos parlamentares da CCJ: os outros ministros permanecem pacientes.
Essa discrepância no comportamento dos ouvintes, dos espectadores, nos faz pensar – ou deveria – no porquê dessa diferença. Por que a linguagem em uma das situações seria mais bem aceita, apesar das críticas severas? A referência à música do grupo de funk carioca, o Bonde do Tigrão, teria agravado a situação? Ou seria a imagem gerada por “tchutchuca” e “tigrão”?
“‘Tchutchuca’ estaria relacionado a uma situação de passividade, e isso mostra algo que se tem notado: como é ofensivo ser comparado a uma mulher na sociedade de modo geral”, aponta Marina Legroski, professora do curso de Letras da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Para ela, são termos com os quais o ministro Guedes pode ter se sentido ofendido por essa razão, mas também tem a ver com o fato de ter uma origem no funk, uma referência mais popular, mal vista e marginalizada.
De acordo com Legroski, há uma diferença entre “palavrões” e ofensas. No entanto, se há uma palavra – palavrão ou não – em que há uma associação com o sexo, ela parece mais ofensiva.
É por isso que, quando alguém trata de sexualidade com naturalidade, as estruturas antiquadas da sociedade são abaladas. Em alguns casos, ironicamente e de maneira contraditória, a sexualidade pode ser bem recebida. Um exemplo é Hilda Hilst, que escreveu poesia, teatro, contos, crônicas e romances. Enveredou-se por todos os gêneros possíveis, pois tinha um desejo muito grande de atingir o leitor: um “problema de como chegar ao outro, como tocar o outro”, diz Luisa Destri, doutora em literatura pela FFLCH e pesquisadora da obra da autora.
Foi com essa angústia e num momento de desencanto que Hilst se envereda por uma fase obscena de sua literatura. Segundo Destri, nessa época, havia uma literatura comercial e erótica com muito interesse do público, que rendia muito dinheiro. “Hilst decide escrever esses livros pornográficos, como ela mesma os chama, já que tratar sobre as relações humanas (importantes para a autora) não chamava atenção.”
Essa fase é formada pelos romances O Caderno Rosa de Lori Lamby, Contos D’Escárnio/ Textos Grotescos e Cartas de um sedutor, mas também costuma se incluir os poemas de Bufólicas.
Pode-se dizer que a reação do público foi bem dividida. O crítico Leo Gilson Ribeiro, do Estado de São Paulo, não reagiu muito bem. Mesmo Lygia Fagundes Telles, grande amiga de Hilda, não recebeu bem a obra. O Caderno Rosa de Lory Lamby, porém, ganhou reimpressão – a contragosto de Massao Ohno, editor que considerava a obra “um pouco de baixaria, subliteratura” -, já que teve uma boa aceitação do público, muito provavelmente em razão da atenção que Hilst recebeu da imprensa.
O conteúdo era obsceno pesado para início dos anos 90: Lori Lamby é uma garota de oito anos que se prostitui. A patrulha da “moral e dos bons costumes” não se fez presente, e o livro foi reeditado e reimpresso. Seria porque Hilda Hilst já era uma escritora importante para a Academia?
Destri acredita que essa fase obscena não era apenas mercadológica, já que as mesmas características e questões de obras anteriores são tratadas. “São livros que não só correspondem ao projeto literário da autora, mas também significam uma radicalização desse projeto.” Assim, o choque causado por essas obras concerne à forma explícita com a qual Hilda trata esses temas, e não necessariamente com os assuntos em si, dado que ela já os inseria em obras anteriores.
“Ela trata de temas indesejados à sociedade para desconstruir as ‘verdades’ que garantem a perpetuação da mentira, da ganância”, afirma a pesquisadora. Os dois grandes temas de Lori Lamby “são muito espinhosos para a nossa sociedade: dinheiro e prostituição”.
Sobre parte da sociedade brasileira defender valores conservadores mas consumir esse tipo de conteúdo, Renan Quinalha, professor da Unifesp que pesquisa sobre políticas sexuais, comenta: “Pode-se chamar de hipocrisia pregar um moralismo extremamente restrito e conservador no campo da sexualidade, dos direitos sexuais e reprodutivos, das práticas sexuais, mas no fundo não seguir os valores e normas professados”.
Marina Legroski acredita que “a onda moralista na sociedade sempre é da boca para fora, no sentido de que ela não se reflete em práticas, ela é basicamente um discurso moralista com uma prática não moralizadora”. Para ela, há hipocrisia no sentido de que as pessoas se afetam muito mais pelo discurso do que pela prática. A professora ressalta: “como seres humanos, a gente tenta alinhar nossas práticas ao nosso discurso. Mas não sei se chegaremos em um momento no qual alinharemos totalmente essas duas condições.”
A contradição se reflete na nossa conjuntura. “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, disse o presidente Jair Messias Bolsonaro, conservador e defensor da família tradicional brasileira, da moral e dos bons costumes. Segundo Renan Quinalha, essa situação se relaciona “com uma narrativa brasileira que carnavaliza o desejo, tem uma relação muito permissiva com o corpo e com a sexualidade”, em um processo que envolve até uma sexualização da realidade brasileira. “Ou pelo menos alimenta essa construção do país de natureza exuberante e pessoas bonitas.”
Quinalha afirma que isso é resultado da “maneira com que a nossa cultura lida com a sexualidade. No Brasil há essa marca, de que tudo é livre, de que tudo é permissivo, e isso só é confirmado pelas nossas próprias autoridades”.
A atitude de defender um discurso moralista e não agir de acordo com ele se reflete no ditado “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Aparentemente inofensivo, esse pensamento é extremamente prejudicial na medida em que “certos grupos introjetam os valores morais da sociedade brasileira e, a partir deles, acabam policiando as suas próprias condutas, a fim de criar uma aparência pública de respeito, que é socialmente aceita”, continua Quinalha. Ele exemplifica: “há um cerceamento de conduta na comunidade LGBT para ter uma imagem moralmente tolerável. Isso reproduz um conservadorismo do qual são vítimas, porque são estigmatizados por discursos hegemônicos”.
Para Quinalha, hoje há uma abertura maior para se falar sobre conteúdos eróticos, pornográficos e sexuais nas nossas sociedades. “O próprio Foucault, quando escreve ‘História da Sexualidade’ aponta que a sexualidade nunca foi um tabu na modernidade, já que fomos exortados, estimulados e incitados a falar sobre o sexo.”
Para Foucault, o poder não é só proibitivo, não é só interdição; é também um fazer-falar. Dessa forma, movimentos sociais buscam tratar tabus naturalmente. “Uma das lutas dos movimentos LGBT e feministas é trazer as questões de gênero e sexualidade de uma maneira mais natural, de forma a reconhecer que isso faz parte da existência humana”, conclui Quinalha.
Em relação às políticas sexuais do Brasil, há um grande avanço, principalmente em contraste com a ditadura, mas ainda há muito a ser feito. Todo Estado tem um política sexual em relação à sua população: como as famílias são constituídas, como a reprodução humana acontece, taxa de natalidade, taxa de reprodução, opera até mesmo regulando o corpo das pessoas. “Me parece, hoje, que há uma política sexual extremamente conservadora”, pontua Quinalha. Ele exemplifica: quando ministra Damares diz que menino veste azul e menina veste cor-de-rosa; a ideia que os homens devem abrir a porta para as mulheres e dar flores; a desqualificação de certas práticas sexuais, como os fetiches, e relações homossexuais. “Isso mostra como o governo se pauta por uma política sexual extremamente conservadora, e que não está adequada ao que, no século XXI, já é aceito na maior parte das nações minimamente avançadas e abertas, em que há liberdade sexual”.
Para ele, ainda faltam campanhas de educação sexual nas escolas. “Acho que se fala e se vive essa sexualidade, mas de maneira muito restrita e policiada; há certos controles e certos tabus que ainda acontecem apesar da aparência do Brasil como paraíso sexual.”
Sou a Bruna de Souza, e quero parabenizar você pelo seu artigo escrito, muito bom vou acompanhar o seus artigos.