Ye, novo nome do cantor Kanye West, tem uma trajetória pouco conhecida pela geração atual, que o conheceu em sua fase mais polêmica, que pode ser representada pela inconformidade de Ye pelo prêmio recebido por Taylor Swift no VMA de 2009. O apoio de Ye ao ex-presidente Donald Trump, a candidatura à presidência dos Estados Unidos em 2020, e o divórcio com a celebridade Kim Kardashian formam uma imagem caótica do artista na atualidade. Donda (2021), no entanto, vem mostrar ao público sua potencialidade como produtor e rapper ao proporcionar uma experiência que reúne lembranças, controvérsias, religiosidade e autoconfiança do cantor.
Uma profunda homenagem póstuma à Donda West
O álbum carrega o nome de Donda West, mãe e uma das primeiras referências de Ye, que faleceu em 2007, com 58 anos, devido a complicações após uma cirurgia plástica. Por trás das polêmicas, Ye vivia o luto de maneira conturbada por perder a mãe, que acompanhou sua carreira profissional de perto e que era uma inspiração na vida do artista.
Sob os holofotes, Ye não viveu o luto na época e prosseguiu na indústria musical, recebendo pelas suas produções. O rapper aos poucos se tornou uma celebridade para os paparazzis, principalmente após o VMA de 2009 e o casamento com Kim Kardashian em 2014. Por trás de todo o glamour, Ye esteve presente em ocasiões complexas de alardes e de atitudes polêmicas. Seus momentos de autoconhecimento mostram uma fase em que o artista se permite viver o luto pela mãe, principalmente a partir da revelação do diagnóstico de bipolaridade em 2018, e Donda é um resultado admirável desse processo como inspiração para o artista.
Uma experiência única proporcionada pela redenção pessoal
O toque peculiar do álbum está no encontro de gerações que as suas músicas promovem, o que revela a potencialidade de Kanye como produtor para reunir e adaptar os diversos estilos musicais dos tempos atuais. A combinação das batidas de trap ou drill com a linhagem dos rappers convidados, como Playboi Carti, mostra a versatilidade do artista em formar um storytelling moderno e pessoal.
Jail é a segunda faixa do álbum e, logo, já impacta com a musicalidade composta pela guitarra seca e autotune e com a participação de Jay-Z, ícone dos anos 2000 e grande parceiro de Ye. Após conflitos, os dois grandes nomes do hip hop se reúnem em uma mistura de desabafo e conselho. Nos versos da música de Jay-Z no álbum Donda, ele aconselha Kanye a “parar com o boné vermelho”, referindo-se ao apoio de Ye a Donald Trump.
A religiosidade de Ye acompanha o novo álbum e God Breathed é uma das músicas que evidencia esse cristianismo. A parceria com Vory traz um ambiente religioso que mentaliza a fé e a confiança na orientação de Deus na vida do artista. Praise God, com Travis Scott e Baby Keem, apresenta um hip hop enérgico e contagiante, como no verso “Even if you are not ready for the day, it cannot always be night” — em tradução livre: “mesmo se você não estiver preparado para o dia, não pode ser noite para sempre” —- que viralizou no TikTok. A colaboração de The Weeknd em Hurricane é uma das mais marcantes do álbum, contando com um refrão angelical e versos que formam um testemunho de Ye sobre julgamentos alheios e crença na sua religião.
A quarta faixa do disco, Off The Grid conta com a participação de Playboi Carti e Fivio Foreign para falar de questões pessoais e do afastamento de Kayne durante a turbulência vivida no casamento de quase sete anos com Kim Kardashian. A música Lord I Need You também segue essa linha ao refletir sobre a situação do divórcio com a mãe de seus quatro filhos: North, Saint, Chicago e Psalm West. A participação de Tyler The Creator na produção de Come To Life enaltece a letra, que fala sobre os medos pessoais de Ye, como sua relação com a depressão e a solidão.
Buscando grandes referências, Pure Souls proporciona um encontro de gerações ao colocar Roddy Ricch e Shenseea para cantar sobre a fama e o sucesso na indústria musical de diferentes gerações. Outras homenagens importantes são feitas em Believe What I Say, com o sample de Doo-Wop de Lauryn Hill, e em 24, referindo-se ao ex-jogador de basquete Kobe Bryant.
Com duas faixas, Jesus Lord é um grande monólogo cantado em que Ye faz uma reflexão exaustiva sobre a sua vida, memórias e carreira. Ao entrar nessa experiência, o público se vê em um mar de “Kanyes” controversos: um que é vulnerável e firme, outro que é inseguro e confiante.
De “Jesus Walks” a “Jesus Is King”
A presença do cristianismo na vida de Kanye possui um histórico de família: seu pai, Ray West, foi uma grande influência na vida do menino. Desde a sua fase mais estruturada no mundo do rap, especialmente nas criações de samples para seus clientes, o artista tinha como base os ensinamentos religiosos em seus versos. Em The College Dropout (2004), seu primeiro álbum, o rapper apresentou ao mundo a música que alavancou seu sucesso na época: Jesus Walks fala sobre a aproximação de Kanye com Deus de um jeito inovador no mundo do hip hop. Outras faixas do álbum, como All Falls Down e Through The Wire, são notáveis por representar o início da carreira de Ye como rapper na indústria.
Após lançar outras produções, Kanye voltou a trabalhar com o estilo gospel no álbum Jesus Is King(2019) lançado para firmar sua religiosidade em sua música. Ainda nesse ano, o artista iniciouo Sunday Service Choir, um grupo gospel americano liderado pelo rapper para realizar cultos religiosos, inicialmente praticados em sua residência. Em abril de 2019, Kanye levou o coral para cantar no Coachella ao lado de Chance The Rapper, Teyana Taylor, Kid Cudi, entre outros.
Kanye seguiu a linha de Jesus Is King em Donda, unindo seu lado espiritual com reflexões sobre sua vida. Em julho e agosto de 2021, o rapper realizou a divulgação do álbum em Atlanta e Chicago, respectivamente. A segunda apresentação ao vivo dispunha uma casa no centro do palco com uma cruz no telhado, que se assemelha à casa onde Kanye cresceu em Chicago. A casa representa a memória e a história do artista na cidade, além das lembranças que tem de Donda, que sempre o acompanhou de perto. Ye proporcionou uma experiência única para o público ao montar o show sem a intenção de cantar nele. O cantor queria apenas mostrar as músicas e trazer apoios visuais: além da casa, o show foi enriquecido pelas pessoas de preto andando e dançando em volta do centro com “DONDA” escrito em suas camisetas.
Donda traz recordações de momentos importantes da carreira do produtor, assim como a série documental jeen-yuhs: Uma Trilogia Kanye (2022). Produzida por Coodie Simmons e Chike Ozah, a série remonta sua ascensão nos anos 2000 até o seu último álbum. Kanye West, em Donda, dá à luz uma obra muito pessoal e ao mesmo tempo controversa, que combina a genialidade musical como produtor e rapper, além de seu ego como criador e precursor de sua arte.
Foto de capa: Divulgação/BFA/Yeezy