Já parou para pensar como uma espécie se transforma em outra? E por que o “elo perdido” é considerado um termo incorreto nesse processo de especiação? Essas e outras questões serão respondidas nesta reportagem.
O primeiro passo é classificar o próprio conceito de espécie. De modo geral, uma espécie é delimitada pelo isolamento reprodutivo, capacidade de gerar descendentes férteis e do fluxo gênico (troca de genes) ocorrer apenas entre indivíduos desse grupo. Marcus Aloizio Martinez de Aguiar, professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador em simulações computacionais na área de evolução, determina que espécie é um “grupo de organismos que são reprodutivamente isolados, o que quer dizer que um organismo de um grupo não consegue se reproduzir com um de outro grupo e produzir um descendente fértil”.
Em outras palavras, o que faz de nós, Homo sapiens sapiens, uma espécie única tem a ver com o fato de que nosso grupo é capaz de gerar novos humanos, com essa mesma capacidade (fertilidade), desde que esse cruzamento seja feito entre indivíduos do mesmo clube – e isso, é o isolamento reprodutivo. Mas, dentro desse clube da mesma espécie, que a ciência chama de população, algumas diferenças genéticas tendem a ocorrer – só que a constante troca de genes entre nós (fluxo gênico) garante que as diferenças sejam reduzidas. (E nós vamos falar disso mais para frente.)
O que gera as diferenças são as mutações. Mas, para que elas apareçam em populações a ponto de modificar os indivíduos e pôr em risco a reprodução, alguns fatores são importantes e responsáveis para isolar os grupos na cadeia de linha reprodutiva, isto é, para que ocorra o processo de especiação. Eles podem ser barreiras geográficas, condições climáticas (um grupo se adaptar melhor a certo clima e os descendentes com essa adaptação gerarem uma nova espécie, o que é a seleção natural) e, como os estudos feitos por Aguiar, isso pode ocorrer pela distância.
Marcus Aguiar diz que a existência de um espaço muito grande, por exemplo em um lago, seria uma “barreira” e poderia impedir a troca de genes dos indivíduos que estão em suas extremidades. “Nesse cenário, há mecanismo de redução do fluxo genético a partir do próprio espaço físico”, ressalta.
Isso significa que, o surgimento de uma nova espécie acontece quando duas situações se sucedem: uma população se divide fisicamente e mutações diferentes concorrem entre elas. Sem o papel do fluxo gênico em misturar essas novidades genéticas entre elas e reduzir suas diferenças, com o tempo, as características entre os dois grupos se diferem tanto a ponto de, se juntos novamente, não serem capazes de gerar indivíduos férteis – e esse é um dos critérios para caracterizar espécie, lembra?
Desse modo, muitos fatores podem influenciar a ocorrência da especiação, o que separa os grupos de indivíduos e interrompe o fluxo genético entre eles. Entretanto, não é um casal que não conseguiu atravessar o lago que terá mutações e descendentes pertencentes a outra espécie, de maneira instantânea. Esse processo é gradativo, pois há indivíduos que fazem a ponte entre uma espécie e outra, um tipo de transição – são os em cima do muro da evolução. De acordo com o explicado pelo professor, tais indivíduos que fazem a ponte vão se reproduzir com os dois grupos que estão “especiando”. Isso vai acontecendo até que eles morrem e as duas espécies se separam de vez.
Por isso, a ideia de “elo perdido”, ou seja, a de que um único ser ou casal de seres deu origem sozinho à linhagem dos chimpanzés e dos hominíneos (grupo da família dos hominídeos que inclui todos da linhagem “Homo”, como Homo sapiens e Homo erectus, por exemplo) e desapareceu em seguida, não é plausível na especiação. Uma mesma espécie, por meio da origem de diversos indivíduos com mutações diferentes, separação de populações e seção do fluxo gênico, pode gerar várias outras. No caso em questão, os cientistas acreditam que o Sahelanthropus tchadensis (que viveu há de 7 milhões de anos) teria dado origem a alguns sujeitos com mutações. Esses, por sua vez, originaram as duas linhagens, todavia, ainda tinha alguma semelhança entre si. Essa nova geração deu origem a mais seres, que se adaptaram e conceberam de vez os dois ramos evolutivos.
E essas mutações só não se perderam para sempre na linha evolutiva graças às mudanças climáticas que vinham ocorrendo há cerca de 8 milhões de anos. De acordo com Danilo Vicensotto Bernardo, coordenador do Laboratório de Estudos em Antropologia Biológica, Bioarqueologia e Evolução Humana (LEAB) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), por volta de 8 milhões de anos houve mudanças ambientais severas no planeta, que afetaram fortemente o continente africano. Ele destaca que a reconstituição paleoclimática, isto é, o estudo das variações climáticas daquele período, aponta que as florestas diminuíram consideravelmente, e isso, do ponto de vista energético, facilitou outras formas de locomoção.
Essa mudança climática favoreceu a bipedia que, para Vicensotto, foi um dos pontos cruciais na história evolutiva da linha hominínea, pois garantiu a essa linhagem uma novidade não vista no grupo dos chimpanzés. “A linhagem dos hominíneos, essa clivagem em relação a partir do ancestral comum em relação aos chimpanzés, a gente acha que é muito devido a mudanças ambientais e essas mudanças ambientais se relacionaram à eficiência energética da bipedia”, expõe o também docente do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Resta saber agora como pode ter ocorrido o processo de especiação para o surgimento dos seres humanos. Conforme Vicensotto, por volta de 300 mil anos podemos ter surgido na África ou em vários lugares simultaneamente (multirregionalismo) – nesse caso, como descendentes do Homo erectus (surgiriam assim Homo sapiens asiático, europeu, africano etc.). Sendo assim, podemos imaginar alguma mutação que deu origem a um novo indivíduo. Este serviu de ponte entre Homo erectus (pelo menos dentro da teoria do multirregionalismo) ou espécie ancestral e Homo sapiens até que o fluxo gênico fosse quebrado e nos consolidássemos como espécie.
Segundo o pesquisador na área de Antropologia Biológica, ainda poderíamos estar em processo de especiação, seguindo a ideia de que somos descendentes do Homo erectus. “Talvez não tenha dado tempo suficiente para separar. No final das contas, não é que seria o Homo sapiens africano, asiático, europeu; nós seríamos todos ainda Homo erectus em transformação”, supõe.