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Evolução da fotografia amplia os limites da nossa percepção de mundo

Imagine não poder registrar imediatamente, ou de forma precisa, um momento importante da sua vida. Ou não ser possível tirar foto de uma cena inusitada na rua. Essa era a realidade até meados do século 19, quando o registro dependia fortemente de desenhos e pinturas, habilidades artísticas que nem todas as pessoas dominam. Da relação …

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Imagine não poder registrar imediatamente, ou de forma precisa, um momento importante da sua vida. Ou não ser possível tirar foto de uma cena inusitada na rua. Essa era a realidade até meados do século 19, quando o registro dependia fortemente de desenhos e pinturas, habilidades artísticas que nem todas as pessoas dominam. Da relação com a arte até os mais modernos programas de edição gráfica, o desenvolvimento da fotografia popularizou e diversificou a forma como documentamos o mundo, seja na aproximação máxima com o real ou na criação de cenários que só existem na imaginação.

Quando Henry Talbot, na Inglaterra, e Louis Daguerre, na França, conseguiram congelar a imagem em papel tratado com prata, ainda na primeira metade do século 19, a sociedade estava dividida entre reações de deslumbramento e suspeita. A ruptura foi marcante no campo da arte, especialmente da pintura, e causou incômodo entre aqueles que consideravam que o registro fotográfico não poderia ser considerado artístico. Mas o incômodo inicial não impediu que fotografia e pintura passassem a se influenciar mutuamente.

Segundo Andreia Falqueto, pesquisadora de História e Arte na Universidade de Granada, na Espanha, essa influência foi bastante forte sobre pintores do Impressionismo. Artistas impressionistas muitas vezes partiam de uma fotografia ou de uma perspectiva propiciada pela lente fotográfica para criar suas telas. Ela exemplifica com a obra As banhistas (1853), de Gustave Courbet, inspirada em uma foto de Julien Villeneuve. Outro exemplo é a pintura A canoa sobre o Epte (1890), de Claude Monet, que tem um recorte difícil de ser feito a olho nu, sem interferência da “janela” da câmera.

A tela A canoa sobre o Epte (1890), do pintor impressionista Claude Monet, é um exemplo de como o recorte fotográfico pode influenciar a pintura. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons].
A tela A canoa sobre o Epte (1890), do pintor impressionista Claude Monet, é um exemplo de como o recorte fotográfico pode influenciar a pintura. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons].
Mas a relação entre fotografia e pintura é uma via dupla. No sentido oposto da influência, está o Pictoralismo, movimento estético que marcou a fotografia na segunda metade do século 19 e no qual as fotos tentavam imitar a aparência de quadros pintados. Andreia explica que “os artistas dessa corrente geravam composições que remetiam a tendências da história da arte tradicional, como paisagismo e retratos, e criavam uma ampla gama de cinzas com um uso bem controlado das luzes”.

Desenvolvido em um período em que os fotógrafos ainda lutavam para conseguir um espaço de prestígio no meio artístico, o Pictoralismo foi alvo de muitas críticas por tentar se aproximar da pintura em vez de explorar as possibilidades da estética fotográfica. Mas essas rivalidades ficaram para trás. Hoje a fotografia consolidou seu lugar não só na arte, mas no modo de a sociedade perceber e representar o cotidiano.

 

Fotografia como janela para cores da vida

A capacidade de fazer um registro instantâneo acabou por popularizar as possibilidades de narrativas sobre si mesmo e sobre as pessoas ao redor. Bruna Dalcim, web designer apaixonada por fotografia, usa a câmera para registrar pessoas e eventos inusitados e criar histórias sobre o que vê. Ela considera que essa é sua forma particular de interpretar a realidade do outro e contar o que está posto no mundo, mesmo que não seja uma narrativa verdadeira.

A composição de uma imagem sobre o entorno passa pelo efeito fundamental das cores. Interessada em fotografia analógica, Bruna conta que costumava fotografar em preto e branco porque gostava da estética e facilitava o processo de revelação em um laboratório caseiro. Mas ela começou a sentir falta dos tons que deixam a vida mais vibrante. Foi então que passou a fazer fotografias coloridas e a apostar nos contrastes e na saturação. “Minhas fotos têm muito vermelho, rosa, azul, cores fortes. E gosto muito de fotografar céu e pessoas trabalhando em andaimes, em contraste com o céu”, afirma. 

O desenvolvimento da fotografia colorida está ancorado nos estudos do físico James Clerk Maxwell sobre captação de cores pelo olho humano. Seus experimentos em parceria com Thomas Sutton resultaram na primeira fotografia colorida da história, apresentada em 1861. Mas a aplicação prática de seu trabalho só ocorreu décadas depois, com a disponibilização em 1907 do primeiro filme colorido no mercado, o Autocromo. Os filmes coloridos evoluíram com o tempo e tornaram-se populares a partir da década de 1960. 

Pesquisas do físico James Maxwell possibilitaram o desenvolvimento da fotografia colorida. [Imagens: Reprodução/Wikimedia Commons (esquerda) e Reprodução/Wikimedia Commons (direita)]
Pesquisas do físico James Maxwell possibilitaram o desenvolvimento da fotografia colorida. [Imagens: Reprodução/Flickr (esquerda) e Reprodução/Wikimedia Commons (direita)]
A atração pelas cores se justifica pelos efeitos psicológicos que elas despertam. Elas modificam a percepção a respeito de um local, objeto ou momento e, embora a identificação dos tons varie individualmente, seu efeito é universal. 

Segundo princípios da Psicologia das Cores, tons de vermelho, amarelo e laranja são classificadas como quentes e têm propriedades estimulantes no observador. Já cores como azul, violeta e verde, chamadas de frias, têm o efeito de suavizar sensações. De forma consciente ou não, a pessoa que fotografa responde aos sentimentos que as cores despertam nela e se atenta aos efeitos que terão em quem observa a imagem.

Andreia ressalta que aspectos biológicos e psicológicos têm um papel central na percepção de cor, mas que sua simbologia também é afetada pela cultura. “Uma roupa preta para nós é luto, mas no Oriente o luto é branco. As cores são de grande importância porque por meio delas entendemos o mundo, então imagens artísticas lidam com esses valores, usando abertamente leis ópticas e físicas das relações cromáticas”, diz.

Contraste entre paisagens com cores frias e quentes. [Imagens: Alessandra Mariano/Wikimedia Commons (esquerda) e Eduardo Amorim/Flickr (direita)]
Contraste entre paisagens com cores frias e quentes. [Imagens: Alessandra Mariano/Wikimedia Commons (esquerda) e Eduardo Amorim/Flickr (direita)]

 

Fotografia como espelho

Além de ser uma janela para o mundo, a fotografia pode atuar como espelho. Bruna não gosta de tirar fotos de si mesma, mas garante que esse tipo de registro tem um papel importante na construção da autoestima. Ocasionalmente ela faz ensaios de autorretrato e percebe que a beleza, que muitas vezes considera estar escondida, na verdade está ao alcance do olhar. A câmera é apenas a mediadora do confronto com a própria imagem. “Já fiz ensaio com pintura artística no rosto, mas também já tirei uma sequência de fotos sem maquiagem. Tudo depende de como preciso me enxergar naquele momento. E depois sempre me pergunto por que não faço mais vezes, por que não me olho dessa forma com mais frequência”, diz.

No olhar para si, a fotografia tem ainda a função de materializar a memória sobre as próprias experiências. Para Pedro Brondi, designer, diretor de arte publicitária e marido de Bruna, as fotos oferecem um panorama de diferentes períodos da vida. Em uma sociedade marcada por selfies de exibição para o outro, Pedro prefere usar as fotos para representar o que está sentindo no momento e criar um relicário de transformações pessoais que permite um olhar amadurecido sobre o passado. “Tirar uma foto focada em mim, em que o ambiente ajuda a compor o que estou sentindo, me ajuda a validar o que sou hoje. Acabo vendo o meu eu de antes de uma forma diferente do que via na época em que a fotografia foi tirada”, conta ele.

O desenvolvimento da técnica fotográfica também está associado ao desejo do ser humano de superar seu caráter mortal. Pesquisadores do começo do século 20, como o filósofo Vilém Flusser, já afirmavam que pessoas buscam se eternizar em imagens para aliviar a angústia de saber que deixarão de existir. Cada geração supre essa angústia com as formas de registro disponíveis em sua época. A fotografia foi um passo técnico revolucionário justamente por permitir a produção rápida de um grande número de imagens por uma grande quantidade de pessoas.

Perfis em redes sociais proliferam imagens do cotidiano de milhões de pessoas no mundo. [Imagem: Reprodução/Pixabay]
Perfis em redes sociais proliferam imagens do cotidiano de milhões de pessoas no mundo. [Imagem: Reprodução/Pixabay]

 

Objetividade e representação dos fatos

Outro aspecto que tornou a fotografia revolucionária foi o caráter de objetividade associado a ela. Os registros deixaram de ser feitos pela mão dos artistas e passaram a ser mediados por uma máquina, fruto da técnica e da ciência. A ideia de isenção associada ao processo fotográfico, ainda que desmistificada hoje, influenciou uma atividade social que historicamente se inspira na representação objetiva dos fatos: o jornalismo. 

O fotojornalismo teve início em preto e branco, seguindo a trajetória da própria fotografia, e contribuiu para o fortalecimento da aura documental em torno da ausência de cores. O uso de fotografias coloridas nos jornais só começou timidamente a partir dos anos 1950, em parte devido à rivalidade com a televisão, como explica Wagner Souza, pesquisador de fotografia documental e cultura digital na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). 

Nos anos 1980, o avanço da tecnologia impulsionou ainda mais a tendência colorida, com maior presença da impressão em cor nos jornais. “As cores passam a ser um elemento importante dentro da produção fotojornalística, mas dependem enormemente da condição luminosa com a qual o fotógrafo se defronta. Por isso, muitas vezes o fotojornalista acaba limitado às opções do momento da captura [da foto]”, afirma Wagner.

A cobertura fotojornalística garante imagens exclusivas e com enfoques característicos de cada veículo. [Imagem: Reprodução/Pxhere].
A cobertura fotojornalística garante imagens exclusivas e com enfoques característicos de cada veículo. [Imagem: Reprodução/Pxhere].
Para melhorar as imagens, os fotojornalistas contam com técnicas de pós-produção. É nesse momento que eles podem melhorar a saturação das cores e os contrastes em um processo chamado de dinamização tonal. Para Wagner, a definição desses e de outros elementos de composição fotográfica, seja na captura ou no tratamento posterior, já é um modo de o fotógrafo opinar sobre a situação registrada. 

Mas isso não significa um desvio da ética jornalística. “O fotojornalista também tem em mente a preocupação de estar ali como um atestado de presença em relação ao ocorrido. Então ele pode trabalhar possibilidades de intervenção, desde que se mantenha alinhado com a verossimilhança daquilo que registrou”, ressalta.

A manipulação que altera a realidade do acontecimento segue inaceitável no jornalismo. Mas outros tabus da intervenção gráfica se modificam à medida em que a tecnologia e a própria relação da sociedade com as imagens se alteram. As possibilidades de dinamização tonal para valorizar elementos da foto é um exemplo desse processo. Wagner considera que “há um amadurecimento não só da tecnologia, mas do próprio público consumidor e, de alguma maneira, esse refinamento do nosso contato com as imagens contribui para o alargamento dos limites éticos de intervenção”.

 

Infinitas possibilidades criativas

Enquanto no jornalismo as possibilidades de edição são restritas pela natureza documental, em outros campos a criatividade é ilimitada. É o caso da publicidade. Pedro conta que a manipulação de fotografias ocupa boa parte do seu dia. Ao pensar no design de um produto ou na história retratada em uma propaganda, ele precisa adaptar e criar imagens que despertem no consumidor os sentimentos de interesse da marca. Em alguns casos, a mudança passa pelo manejo das cores no mundo real, como a associação do verde a produtos orgânicos, de forma a lembrar elementos da natureza. 

Em outros casos, é preciso representar cenários que não existem. Ele cita uma propaganda de empresa de tecnologia em que uma nave espacial sai da tela de um celular, em uma indicação futurista das possibilidades da marca. Pensar composições novas requer muita criatividade, desenvolvida com repertório cultural amplo e uma boa dose de treino. 

Para Pedro, imaginar cenários fora do padrão é uma forma de resgatar e exercitar atributos da infância. “Quando somos crianças, os adultos nos ensinam a pintar dentro das linhas do desenho ou dizem que pessoas não podem ser pintadas de verde. Isso acaba limitando a criatividade. Por que uma pessoa não pode ser verde em um desenho? Por que não posso experimentar minha criatividade?”, questiona. 

Imagens não realistas podem ser produzidas com técnicas de edição gráfica. [Imagem: Reprodução/Pixabay] 
Imagens não realistas podem ser produzidas com técnicas de edição gráfica. [Imagem: Reprodução/Pixabay]
As possibilidades criativas tiveram um salto com o desenvolvimento dos softwares de edição de imagem. Com poucos toques, é possível retirar ou adicionar elementos de uma fotografia, mudar as cores, inverter posições. Além da publicidade, as facilidades técnicas permitem mudanças na arte e ampliam a liberdade do artista em manipular fotos e criar paletas de cores próprias. 

Mas Andreia destaca que a popularização de ferramentas de edição não exclui o papel do conhecimento técnico: “Hoje, com o uso de filtros e aplicativos de edição nos smartphones, a manipulação se tornou muito popularizada. Mas não é porque se tem acesso às ferramentas que sabemos como usá-las. Percebo que a teoria por trás disso ainda está ligada a uma busca pessoal do artista, ao estudo das cores”.

Por mais que os processos de manipulação estejam popularizados no mundo digital, suas raízes vêm de contextos analógicos. Pensar nos processos físicos que baseiam as mudanças digitais é uma forma de resgatar a história da fotografia. Bruna considera que esse resgate também é um exercício criativo. “Não gosto tanto de usar programas de edição para alterar minhas fotos. Eu até poderia usar, mas sempre me pergunto: como posso produzir um efeito na prática, na hora da foto na vida real? Isso requer criatividade e conhecimento”, comenta. 

Seja por meio analógico ou digital, a fotografia mudou a forma como registramos e interpretamos o mundo. Na cultura de culto à imagem, é preciso estar atento para que a vivência e as memórias sejam experienciadas além da lente objetiva. 

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