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Futebol e violência: não generalize as torcidas organizadas

Ao invés de banir, fortalecer a institucionalização das torcidas pode ser um caminho para diminuir os conflitos e aumentar a festa nos estádios.

Ônibus do Bahia é atacado com bomba. Meio-campista do Grêmio sofre traumatismo craniano ao ser atingido por uma pedra. Torcedores do Paraná Clube invadem o campo para agredir os jogadores. Faca é encontrada no gramado na semifinal da Copinha. Torcidas de Náutico e CSA se envolvem em briga. Torcedor morre antes do clássico entre Cruzeiro e Atlético Mineiro.  Confusão dentro da própria torcida do Palmeiras termina em homicídio. Organizada do Botafogo invade centro de treinamento e cobra jogadores.

Esses são apenas alguns, dos muitos, casos de violência que aconteceram no futebol brasileiro em 2022 – e ainda estamos no meio do ano. Uma pesquisa realizada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2009 revelou que para 68% dos torcedores entrevistados, a violência é a principal causa do afastamento do público dos estádios.

E se antes a violência era só entre as torcidas, agora também é comum ver ameaças aos jogadores, técnicos e árbitros. Para Bernardo Buarque de Hollanda, doutor em História Social da Cultura e professor da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), existe uma sensação de escalada da violência, mas, na verdade, ela está presente há algum tempo: “se nós retrocedermos duas ou três décadas, vamos observar as notícias da imprensa sobre a cobertura em torno desse fenômeno. Curiosamente, também há sempre essa descrição de que estamos no momento desgovernado, descontrolado, em que alguma coisa precisa ser feita. E, muitas vezes, os pontos de virada são tragédias”.

O torcedor é violento por natureza? 

Uma corrente de ideias acredita que a violência expressada no futebol é um reflexo de suas próprias características: um ambiente com emoções afloradas, competitividade e rivalidades. Mas Bernardo discorda: “acreditar que existe uma índole violenta, que o torcedor é por natureza violento, é ignorância”.

De acordo com o professor, a origem do futebol é outra: na virada do século 19 para o 20, junto com uma série de transformações da vida pública, esse esporte entra com uma ideia de preparação do corpo físico e de modalidade coletiva, que integra as pessoas, promove relações e une as cidades e os países a partir dos encontros futebolísticos. Da mesma forma, embora as torcidas organizadas sejam frequentemente associadas à violência, sua origem é distante disso.

Charanga Rubro-Negra (primeira torcida organizada do Brasil) em vitória do Flamengo sobre o Vasco por 3 a 0 no Maracanã em 1969. Na primeira fileira à esquerda está Jayme de Carvalho, fundador e chefe de torcida da Charanga. [Imagem: Reprodução/Facebook @charangarubronegra]
 No Brasil, as torcidas organizadas surgiram na década de 1940, pois era preciso ordenar a massa que se aglomerava no estádio de forma caótica e anônima. As organizadas setorizavam o público no estádio, cada uma coordenada por um chefe de torcida, que era visto como um parceiro do chefe de polícia: “Ele era visto como um elemento que contribuía com a ordem, porque a violência, a princípio, estava nos não organizados, exatamente por não estarem identificados [com a camisa do time]”, explica o professor.

Em um segundo momento, na virada da década de 60 para 70, surgem dissidências dessas torcidas oficiais, que até então eram únicas. Aparecem, assim, as torcidas jovens “com perfil mais rebelde e insubordinado, de pressionar e se colocar de fora para dentro do clube, como uma força fiscalizadora”, explica o professor.

Com a constituição do Campeonato Brasileiro, rivalidades – antes vistas apenas entre times do mesmo estado –, passaram a ser também interestaduais. Além disso, se estabelecem alianças entre torcidas de estados diferentes, em uma lógica de alinhamento e oposição. Galoucura (Atlético Mineiro), Mancha Alviverde (Palmeiras) e Força Jovem (Vasco); e Independente (São Paulo), Camisa 12 (Internacional) e as torcidas Jovem do Flamengo e do Sport são alguns exemplos. 

Se nos anos 70, as amizades e inimizades entre torcidas estavam sendo esboçadas, nos anos 80, elas estão consolidadas e começa a ocorrer um direcionamento delas para o conflito. É aqui que a violência ganha força.

Futebol e sociedade: uma coisa só

Para o professor, a sistematização da violência nas torcidas nos anos 80 é um reflexo imediato de outros problemas sociais, como a explosão urbana, a constituição das favelas de forma mais massiva no Rio de Janeiro e a entrada do tráfico de drogas de forma mais estruturada: “no Brasil há o agravante de vivermos em uma sociedade muito violenta e armada, em que nós temos uma juventude periférica sem vínculos políticos atualmente, sem referências políticas, que canaliza e extravasa seu ódio”.

Só em 2021, foram registradas quase 450 mil novas armas em circulação no país e, embora apresente uma ligeira queda, os homicídios chegaram a cerca de 41,1 mil casos somente no ano passado. “Estamos discutindo no futebol as questões que são sensíveis da sociedade”, afirma o professor, “por isso esse microcosmo que o futebol consegue proporcionar faz com que a discussão sobre racismo, guerra, violência, geopolítica e tolerância, que são as grandes questões da humanidade, estejam lá colocadas. Porque não existe o futebol e a sociedade como se fossem esferas diferentes. É uma coisa só”, complementa.

De acordo com o professor, estudantes das classes médias e baixas e, principalmente, da juventude periférica vão aderir fortemente às organizadas nos anos 90: “Se nos anos 80, tem a sistematização das brigas, os números das torcidas ainda são quantitativamente pequenos. Mas nos anos 90, elas crescem exponencialmente e saltam de mil para até 50 mil associados”, afirma Bernardo. Isso proporciona um aumento do descontrole.

Esses jovens são reflexos da violência na sociedade, da falta de emprego e de expectativa para o futuro, além da falta de investimentos na área da educação e no acesso às questões básicas do dia a dia como lazer, entretenimento e cultura. Entretanto, embora as torcidas organizadas tenham começado a ser vistas como “marginais”, “vândalos” e até “grupos criminosos” nos noticiários, estudos do sociólogo Maurício Murad mostram que os grupos violentos que se infiltram nas torcidas são minoritários.

Ponto de virada?

Assim como a Inglaterra teve tragédias marcantes como Heysel, em 1985, e Hillsborough em 1989, o Brasil teve a batalha campal do Pacaembu em 1995, em que 102 torcedores ficaram feridos e um morreu durante confronto entre as torcidas de Palmeiras e São Paulo. Este foi o ponto de virada, pois a partir desse momento, o Ministério Público entrou em ação.

Batalha Campal do Pacaembu, em 20/08/1995, na final da Supercopa São Paulo de Juniores. [Imagem: Agência Estado/Djalma Vassão]
Fernando Capez, promotor público à época, pediu a extinção das torcidas organizadas de São Paulo, proibindo-as também de entrarem nos estádios. O Estatuto do Torcedor foi sancionado em 2003, visando garantir os direitos e a segurança dos torcedores. Todas essas medidas asfixiaram as organizadas nos anos 2000. Sua reorganização ocorreu a partir das escolas de samba e das associações de torcidas, que abdicam das rivalidades, temporariamente, para impedir o desaparecimento desses grupos.

Hoje, as torcidas se nacionalizaram e se tornaram empresas, mas Bernardo ressalta uma contradição: “se por um lado elas estão cada vez mais institucionalizadas e estruturadas, por outro lado elas também se marginalizam agindo nos bastidores, que são o submundo das torcidas organizadas, em que cada vez mais existe uma lógica [de violência] que vem se radicalizando”.

Com o Estatuto do Torcedor, a violência se dispersa. Antes dentro dos estádios, as brigas passaram a ocorrer em um raio cada vez mais distante do local da partida. Subgrupos se juntam em seus bairros de origem para encontrar seus rivais – mesmo que seja um jogo de torcida única – , e o confronto termina, muitas vezes, com casos fatais, que podem ser por linchamento ou por uso de arma de fogo.

Além das rivalidades entre organizadas, há também conflitos dentro da própria torcida, confrontos com a polícia e até mesmo com outros atores do futebol. Atualmente, os jogadores são o alvo mais preponderante dessa violência. Para Bernardo, “a via repressiva e a via judicial têm se mostrado um rotundo fracasso”.

Existe solução?

Na opinião do professor, não existe uma solução objetiva: “ela envolve uma série de procedimentos, ações de curto, médio e longo prazo, repressivas, preventivas, socioeducativas e reeducativas”.

As medidas adotadas até hoje têm se mostrado falhas para conter a violência: implantação de torcida única em clássicos em três estados brasileiros desde 2016, cadastro das torcidas organizadas, aumento da segurança nos estádios e punição aos clubes com multas e perda de pontos e mando de campo. Nada disso trouxe resultados. Segundo o Centro de Pesquisa de Mestrado da Universo, entre 2009 e 2019, pelo menos 157 mortes foram registradas devido a brigas entre torcidas. 

Em relação a torcida única, especialistas apontam que a violência saiu do estádio e se transferiu para a periferia e locais públicos, além de outras categorias de partidas, como as competições sub-17. O professor concorda que esse não é o melhor caminho: “com a torcida única, você está decretando que as pessoas de fato não conseguem coexistir e conviver. Então não precisa nem ter torcida. Melhor do que torcida única, é fazer futebol sem torcida. Com isso, realmente, não terá problema nenhum, só que não tem sociedade se não tiver relação social”.

As políticas públicas para a prevenção da violência, que vinham avançando, foram descontinuadas após a passagem da Copa do Mundo em 2014 e da extinção do Ministério do Esporte (2019). A forma tradicional de encaminhar o problema, delegando para a polícia ou judicializando, não funciona, pois, para Bernardo, seu princípio está errado: “entregar as torcidas à própria sorte, especificamente à polícia militar, que faz a repressão apenas na ponta, no dia de jogo, em um movimento de ir atrás dos efeitos quando a briga já está posta [não resolve a questão]”, aponta o professor. 

A polícia dispersa a torcida de forma “pouco inteligente, repressiva, usando os seus instrumentos tradicionais de quem apenas é preparado para bater e não necessariamente para pensar com inteligência, se antecipar, identificar individualmente aqueles responsáveis, aqueles promotores desses encontros premeditados, que muitas vezes não está no centro, mas em subgrupos das torcidas”, complementa Bernardo. 

A judicialização também tem se mostrado pouco eficiente: “esse ordenamento jurídico político de apenas proibir a coletividade já se mostrou ineficiente, porque quem pune todo o mundo não pune ninguém”, comenta o professor. Além disso, tira-se o foco daquilo que deve ser o elemento construtivo da torcida: organizar-se para fazer a festa dentro da arquibancada. 

Sublimar a violência

Segundo Bernardo, uma solução efetiva começa com a corresponsabilização: “não é apenas um problema de polícia e não é apenas uma solução jurídica. É também, mas não é apenas”. Isto envolve jornalistas, dirigentes e também os próprios jogadores: “qual exemplo que eles dão para milhares de pessoas? Ou seja, se os jogadores brigam, por que eu não posso brigar aqui?”.

No curto prazo, é necessário monitorar, rastrear e antecipar os confrontos. O professor também sugere adotar modelos que foram bem sucedidos em outros países, como o Projeto Torcedor na Alemanha, que apresenta uma abordagem sociopedagógica, com serviços sociais e psicólogos disponíveis ao torcedor. A Bundesliga também destina 5% da sua receita para a prevenção à violência. Outro ponto interessante foi a retirada da polícia de dentro do estádio na Europa e a sua substituição por stewards, que são figuras não armadas, porque, de acordo com Bernardo, “a polícia dentro do estádio insuflava a violência”.

A maior presença de mulheres nos estádios e nas torcidas, assim como a popularização do futebol feminino, também pode ser um ponto positivo. As pesquisas da professora Heloisa Helena Baldy, que estuda a violência no futebol, apontam que a raiz do problema passa pela “masculinidade tóxica“. De acordo com Bernardo, nas brigas de torcida “há um código de hombridade e masculinidade, de se afirmar pela força. Isso vem muito dessa lógica grupal de homens confrontando homens, pela afirmação da virilidade”.

 

Após brigas em partidas anteriores, o time turco Fenerbahce abriu sua arquibancada apenas para mulheres e crianças com até 12 anos de idade em setembro de 2011. No primeiro teste, durante partida contra o Manisaspor, mais de 41 mil pessoas lotaram a arquibancada. Não houve registro de conflitos. [Imagem: Reprodução/Twitter @classicshirts]
Isso não significa dizer que o homem briga e a mulher não, afinal, são ambas construções sociais, mas a presença crescente das mulheres traz questões e “as torcidas estão tendo que lidar com a discussão de gênero, que em uma cultura extremamente homofóbica e sexista desses grupos têm gerado alguns ruídos, mas têm gerado mudanças”, reflete o professor.

Bernardo aponta que a solução para a violência também passa por criar o interesse na festa: “Vemos a torcida do Borussia Dortmund fazendo a muralha amarela e ficamos com inveja, porque no Brasil praticamente não deixam mais nada. Em São Paulo, há 25 anos, se proíbe o uso de mastros de bandeira. Uma coisa completamente estapafúrdia. Não há razão nenhuma para não deixar ter bandeira, que é justamente o que vai deixar mais bonito o estádio”.

Muralha Amarela na torcida do Borussia Dortmund. [Imagem: Reprodução/Twitter @bet365]

Torcida organizada não é só violência

Para além da violência, as torcidas organizadas são um espaço de socialização e convivência, com criação de vínculos e amizades: tem festas, feijoada, churrasco, campeonato de futebol de salão, encontro da velha guarda. Para além do lazer e do esporte, há também o departamento social, que realiza ações filantrópicas como campanha do agasalho, doação de sangue e distribuição de alimentos para população carente. “Eu vejo isso como algo a ser fortalecido, para que justamente esses grupos encontrem mais a via da institucionalização do que da marginalização”, comenta Bernardo.

Isso não quer dizer que não terão mais brigas: “Existe essa dimensão da força. Isso está colocado. Mas também conseguimos fortalecer esses aspectos institucionais”. No carnaval, por exemplo, nos dois dias de desfile, há pessoas circulando com uniformes de agremiações diferentes e não há a mesma lógica que ocorre no dia de jogo. “Eles percebem como isso é bom, que ter visibilidade dá força para eles. O nome deles circula nos meios de comunicação positivamente. O carnaval foi uma solução que a torcida encontrou que foi muito benéfica para eles. Tomara que continue assim”, conclui o professor.

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