Por Livia Bortoletto (liviafb@usp.br)
A prisão de Guantánamo é um centro de detenção localizado na Base Naval americana em Cuba. Foi criada em 2001 para encarcerar os acusados de praticar atos terroristas, em resposta aos ataques de 11 de setembro, e, desde então, diversas denúncias têm sido feitas em relação a práticas de tortura e maus tratos exercidos dentro da prisão. No início de 2025, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva para ampliar o complexo, com o intuito de conseguir aprisionar até 30 mil imigrantes ilegais que habitam os Estados Unidos.
Em entrevista à J. Press, Carina Barbosa Gouvêa, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos do Instituto de Advogados do Brasil (IAB) e autora de uma pesquisa sobre Guantánamo, explica a história da prisão, como se dão os julgamentos em Guantánamo e a recente decisão de Trump em relação à expansão do centro.
J. Press – O que é Guantánamo?
Carina Barbosa Gouvêa – Guantánamo é uma cidade do sudoeste de Cuba, que é a capital da província de Guantánamo. Nessa cidade, há uma prisão militar, localizada dentro da estação naval dos Estados Unidos em Cuba. Essa prisão é um complexo grande: ocupa uma área territorial de terra e água de aproximadamente 116,5 km quadrados. Ele é operado por uma força tarefa conjunta e está sob a responsabilidade do Departamento de Defesa Americano.
A prisão foi fundada por George W. Bush com duas finalidades: manter os suspeitos de terrorismo e aqueles que os EUA chamam de inimigos combatentes – uma pessoa não cidadã dos Estados Unidos que é ou que foi membro da Al-Qaeda; ou que participou, auxiliou, incentivou ou conspirou para os atos de terrorismo internacional; ou que abrigou conscientemente qualquer indivíduo que esteja ligado às ramificações da Al-Qaeda. Isso tudo foi criado após os ataques de 11 de setembro, no contexto da Guerra ao Terror, cujo objetivo principal era desmantelar a Al-Qaeda e, principalmente, capturar o seu líder, Osama bin Laden.
O complexo começou a funcionar em novembro de 2001, quando houve uma ordem militar executiva permitindo a detenção indefinida de estrangeiros mesmo sem acusação e impedindo todos os detidos de contestar legalmente a sua detenção.
Em alguns casos, eram oferecidas recompensas de milhões de dólares pela captura ou entrega de indivíduos. Os estudos de Mark Denbeaux [professor da Universidade de Seton Hall que foi advogado de alguns detentos de Guantánamo] revelaram que houve milhares de cópias de panfletos e pôsteres distribuídos pelo governo dos Estados Unidos para divulgar o programa de recompensas.
J. Press – Por que os Estados Unidos controlam Guantánamo, sendo que ela está em território cubano?
Carina – Isso envolve o contexto histórico da Guerra Hispano-Americana, que foi a guerra de independência de Cuba em relação à Espanha, em 1898. Durante o conflito, os Estados Unidos ajudaram Cuba a vencer os espanhóis, e, por isso, em 1891, quando a primeira Constituição cubana foi forjada, houve uma emenda que permitia a intervenção dos EUA em assuntos locais.
Em 1903, foi criada a Emenda Platt, que estabeleceu a base legal para a presença americana na Baía de Guantánamo. Esse acordo dizia o seguinte: “houve um contrato de arrendamento do território, sem data de validade”. E é isso que reverbera até hoje com relação à ocupação da Baía de Guantánamo. Em 1934 houve um novo acordo bilateral que substituiu esse acordo anterior, mantendo o arrendamento.
A posição do Estado cubano em relação à ocupação americana só mudou em 1959, depois de o governo ter se tornado comunista na Revolução Cubana. O governo de Fidel Castro considerava a presença dos Estados Unidos em Guantánamo completamente ilegal e solicitou reiteradamente a devolução do território.
J. Press – Qual o posicionamento atual de Cuba em relação a Guantánamo?
Carina – O governo cubano, enquanto Estado soberano, considera a ocupação completamente ilegal. E há também uma revolta da população e dos movimentos sociais. Falando especificamente do movimento social, ele reivindica a saída total e plena do que é considerada uma invasão territorial norte-americana. Eu considero esse um ponto extremamente importante, porque não é comentado na mídia. Para você ter uma ideia, em março de 2025, houve um protesto popular em Guantánamo, em que mais de 50 mil pessoas participaram exigindo o fim da base militar dos Estados Unidos, argumentando que a presença militar viola a soberania nacional de Cuba. E isso tem total apoio do governo cubano.
Esse protesto foi descrito como uma das maiores mobilizações populares contra a presença dos Estados Unidos na ilha nas últimas décadas. Isso demonstra que o tema da devolução da base continua central na identidade e na política cubana.
J. Press – Qual é o perfil dos prisioneiros de Guantánamo ao longo da história da prisão?
Carina – Ao longo da história da prisão, já foram encarcerados homens de 48 países diferentes, mas a grande maioria dos detidos são muçulmanos. Segundo um relatório de Mark Denbeaux, o qual analisou 517 detentos, 55% deles não foram acusados de nenhum ato hostil contra os Estados Unidos. Apenas 8% eram combatentes da Al-Qaeda, 40% não tinham qualquer conexão comprovada com a Al-Qaeda ou com o Talibã e 18% não tinham nenhuma filiação com grupos terroristas reconhecidos pela Organização das Nações Unidas. E 95% desses detidos foram capturados por mercenários ou por outras forças em troca de recompensas.
J.Press – O que dizem os relatos e documentos sobre as torturas em Guantánamo?
Carina – Falando especificamente das torturas, é uma situação que nós não podemos negar que acontece. Temos vários relatórios que comprovam isso, como um documento publicado em 2004 pela Cruz Vermelha, os relatos dos ex-detentos e e-mails vazados do FBI (Federal Bureau of Investigation: Departamento Federal de Investigação, em português).
Os detentos são submetidos a barulhos altíssimos, a temperaturas extremas, a espancamentos e à privação de sono. Outra prática comum é fazê-los permanecer até 24 horas acorrentados em posição fetal, sem água e nem comida. Eles são obrigados a defecar e urinar em si mesmos.
Os prisioneiros também alegaram serem encapuzados de forma prolongada, sofrerem humilhação cultural e sexual e serem forçados a tomar injeções da medicação Prozac, o Soro da Verdade. Eles são interrogados centenas de vezes, sendo torturados com caco de vidro, arame farpado, cigarros acesos e agressões sexuais.
Outra questão muito importante é tortura ligada à religião. Diversos detentos que já foram libertados ou transferidos relatam que os militares cometiam atrocidades com o Alcorão: o jogavam no vaso sanitário, o desfiguravam, escreviam comentários e observações ofensivas nele, arrancavam suas páginas e negavam aos detentos o acesso a uma cópia.
J. Press – Houve um episódio em que os prisioneiros recorreram a greves de fome como forma de protesto?
Carina – Sim. Em maio de 2013, por exemplo, houve o início de uma greve de fome generalizada pelos detentos, como forma de resiliência e revolta. Então, o governo americano passou a realizar a alimentação forçada através de tubos. Sem nenhum tipo de anestésico, eles enfiavam os tubos diretamente na boca dos detidos. O objetivo era tentar sufocar essa tentativa de protesto, porque a greve de fome é um suicídio progressivo.
A estratégia utilizada pelo governo na mídia foi de ocultação dos efeitos da greve, principalmente para controlar a narrativa pública. Eles fraudaram a contagem dos detentos em greve, utilizando práticas religiosas do Ramadã como subterfúgio para reduzir as estatísticas.
Em 2014, o governo Barack Obama tentou fazer uma mudança de estratégia: passou a se referir à greve de fome como um jejum não religioso de longo prazo. Foi uma tentativa de descaracterizar politicamente as greves de fome, minimizando a sua natureza de protesto e resistência.
Eu acho que vale a pena nós falarmos também de um outro momento de protesto e resistência, que é pouquíssimo falado pela mídia. A advogada Alka Pradhan, que representou um paquistanês chamado Ammar al-Baluchi, tentou conquistar na justiça americana o direito à produção artística pelo detento. E aqui há uma restrição absoluta por parte do governo dos Estados Unidos. Desde 2017, o governo norte-americano proibiu que os detidos enviassem suas obras de arte para fora de Guantánamo, alegando preocupações, novamente, com a segurança nacional. E, claro, com o controle da imagem pública da prisão.
Muitos consideraram que essa censura artística é uma extensão da opressão psicológica e física imposta no contexto da detenção indefinida. Isso não afeta somente os direitos de livre expressão dos presos, mas também limita a sua capacidade de manter conexões emocionais e culturais com a sua identidade. Apesar disso, o governo americano ainda diz que toda e qualquer obra que é produzida no interior de Guantánamo é propriedade do governo.
J. Press – Como se dão os julgamentos dos prisioneiros?
Carina – A ordem executiva emitida por Bush ao criar a prisão determinou que os detidos seriam julgados por comissões militares. Elas possuem uma jurisdição completamente exclusiva, ou seja, os detentos não podem buscar nenhum refúgio na Constituição ou em tribunais americanos.
Existe um documento próprio para regular essas comissões militares e estabelecer a base jurídica dos julgamentos, que é o Military Commission Act (Decreto da Comissão Militar, em português). Aqui você tem uma aplicação totalmente controvertida, porque ele difere dos tribunais de guerra tradicionais e ignora tratados internacionais, como as Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais.
O procedimento de acusação se baseia integralmente em um documento chamado Summary of Evidence (Sumário de Evidências, em português). Ele determina que as acusações são embasadas em informações ultrassecretas obtidas pela inteligência americana ou por relatos indiretos. Nesse último caso, fica posto que a acusação poderia ser feita com base no relato de terceiros, ou seja, daqueles que foram pagos para entregar os detidos.
J.Press – Quais são as principais falhas e violações neste sistema jurídico das comissões militares em Guantánamo?
Carina – Podemos ver uma ampla margem para uso de provas frágeis e indiretas ou obtidas sob tortura e coação. E o mais absurdo é que toda prova considerada ultrassecreta não é acessível à defesa. Sendo assim, é praticamente impossível elaborar os argumentos para contestar a acusação. Já houve casos de indivíduos presos há mais de 15 anos sem acusação ou julgamento, simplesmente detidos.
O acusado tem direito à assistência de um advogado militar designado pela própria comissão ou de um advogado civil. Um outro ponto em que ocorre uma violação gravíssima dos Direitos Humanos é na utilização de um tradutor, já que muitos dos acusados não falam inglês. A própria comissão militar oferece o tradutor. Então, também não há segurança de que aquilo que é falado pelo detido vai ser transmitido corretamente.
Mais uma violação de direitos que ocorre em Guantánamo é a quebra de sigilo entre advogado e cliente, porque as salas de reuniões são equipadas com dispositivos de escuta. Isso viola frontalmente o devido processo legal e a defesa plena do detento. A prisão de Guantánamo é totalmente um Panóptico [modelo de prisão idealizado por Jeremy Bentham em que os prisioneiros são vigiados a todo momento], pois é totalmente controlada pelo sistema.
É um sistema jurídico totalmente excepcionalista, que viola princípios do direito internacional. Os juízes detêm o controle sobre as acusações, as provas e a designação dos membros. É aquilo que chamamos de justiça de exceção.
J. Press – O número de prisioneiros já foi muito maior do que é hoje. O que causou essa diminuição?
Carina – Houve uma pressão internacional muito grande para que Guantánamo fosse fechada. Foram elaborados inúmeros relatórios que a consideram uma prisão completamente inconvencional diante das convenções de Direitos Humanos. Por conta desse contexto, entre 2005 e 2008, foi iniciada a transferência ou a libertação de cerca de 540 detentos.
Em 2009 houve uma questão política muito interessante, que trouxe uma reviravolta. Susan Crawford, então secretaria de defesa, admitiu que houve episódios de tortura em Guantánamo. E isso gerou um mal-estar no contexto político global, principalmente para os Estados Unidos, que defendem abertamente a democracia.
Devido a essa situação, o fechamento de Guantánamo foi uma promessa de campanha de Barack Obama naquele ano. E o que aconteceu? No início do mandato, ele tinha uma ordem executiva que determinava o fechamento da prisão. Contudo, ele sofreu uma forte oposição partidária no congresso, a qual impediu que sua promessa se realizasse. Ao longo do governo Obama, foram feitas muitas transferências e libertações, mas tentativas de fechar a prisão sempre eram barradas pelo legislativo americano.
Dando um salto no tempo, o presidente Trump, em 2018, assinou uma ordem para manter o campo de detenção aberto indefinidamente. E, durante a sua administração, somente um prisioneiro foi repatriado. Já Joe Biden, depois de assumir o cargo em 2021, prometeu fechar a prisão antes do término do seu mandato. Embora o seu governo continuasse expandindo tribunais e outras instalações em Guantánamo, 25 detidos foram libertados até o fim de 2024. Dessa maneira, chegamos ao número de 15 detidos, que é a quantidade atual de presos.
J. Press – A prisão está sendo utilizada para prender imigrantes irregulares?
Carina – Sim. Em 29 de janeiro de 2025, Trump assinou um memorando para iniciar a expansão do centro de operações de Guantánamo, com o objetivo de conseguir abrigar até 30 mil imigrantes na prisão. Porém, eles ficariam separados dos presos acusados de práticas terroristas.
A justificativa oficial foi: reter a invasão da fronteira, desmantelar cartéis de criminosos e restaurar a segurança nacional. O intuito seria fornecer um espaço adicional para “estrangeiros criminosos de alta prioridade” presentes ilegalmente nos Estados Unidos e atender as necessidades de fiscalização da imigração.
J. Press – Os Estados Unidos já sofreram algum tipo de punição internacional?
Carina – Essa é uma questão interessante. Em 2022, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos emitiu um documento muito importante, em alusão aos 20 anos da chegada dos primeiros detidos em Guantánamo. Eles condenaram com notoriedade a prisão de Guantánamo e alegaram que ela representa uma mancha no compromisso dos Estados Unidos com o estado de direito e com a democracia.
Houve uma solicitação reiterada do fechamento da instalação, para encerrar este capítulo de violação de Direitos Humanos, tortura sistemática e maus-tratos — que seriam, segundo o próprio documento, símbolos de falta de responsabilização e de impunidade estatal. Também é explicitado no documento que a população carcerária atual está envelhecida e doente, e que muitos deles estão sofrendo sequelas físicas e psicológicas da tortura, não têm acesso a um tratamento médico adequado e nem à reabilitação.
Entretanto, os Estados Unidos jogam de uma forma muito inteligente no contexto internacional geopolítico. Eles são membros das Nações Unidas, mas não celebram determinados acordos e convenções internacionais. O país é um dos cinco membros do Conselho de Segurança da ONU, o qual seria capaz de estabelecer uma sanção devido à manutenção da prisão. Porém, como possui poder de veto, jamais permitiria que uma sanção a si próprio fosse aprovada.
Outra questão é que os Estados Unidos não se submetem à jurisdição internacional. Eles não se submetem ao Tribunal Penal Internacional, que condena e responsabiliza diretamente aqueles que praticam crimes de genocídio e de tortura. Também não são signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Ou seja, quem poderia responsabilizar os Estados Unidos no cenário internacional? Ninguém.
