por Sofia Calabria
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Há quem diga que de louco todo mundo tem um pouco. Mas de obsessivo, aí o grupo já fica mais seleto. E as obsessões e neuroses de Lourenço formam uma pequena coleção. Resumo: Bundas, objetos e um ralo que fede no banheiro anexo à sua sala.
O filme O Cheiro do Ralo (idem, 2007) se inicia com o close de uma bunda de mulher caminhando com seu shortinho estampado de ilha e mar. A música semi-havaiana ao fundo como que se junta a isso e diz: o paraíso é aqui.
E uma das sagas começa. Lourenço come todos os lanches porcaria da lanchonete pra poder olhar aquele “monumento” da garçonete quando ela se vira ou se abaixa pra pegar um “refri”, como diz.
Paralelo a isso, discorre o dia a dia do cara, comprando coisas velhas dos outros para revender depois. Mas enquanto seu corpo está na sala, sua cabeça está fixa no cheiro do ralo. “O cheiro que você tá sentindo é do ralo”, diz ele pra todo mundo que entra para fazer negócio. O cheiro o incomoda mais que tudo, porque aquilo não pode ser dele. “Eu não me importo com ninguém. Eu só não quero que eles pensem que o cheiro do ralo é meu”. Isso até o homem do violino aparecer. Nada como o desmerecimento para que as palavras que pungem venham à tona.
– Isso aqui cheira a merda
– É, do ralo ali.
– Não é não…
– É, o cheiro vem do ralo ali
– O cheiro vem de você
– Não amigo, Eu to com um probleminha ali no ralo.
– E quem usa esse banheiro?
– Eu..
– E quem mais?
– Só eu…
– Então, de onde vem o cheiro?
O roteiro do filme, baseado no livro homônimo de Lourenço Mutarelli se utiliza bastante de diálogos secos e diretos, que dizem mais que qualquer verso lírico. A poesia não cabe muito nessa obra.
Um olho de vidro à venda é levado por um homem para Lourenço (a personagem, não o autor), que se encanta. Ele o compra e o homem que o vende diz que “esse olho já viu de tudo”. “Esse olho ainda não viu tudo”, pensa Lourenço.
Começa então mais um jogo no qual agora, o cheiro do ralo, o olho e os problemas da vida da personagem passam a estar associados. Ele precisa acabar com aquele cheiro. O ralo é um dos portais do inferno pelo quais os demônios observam as pessoas, o olho é do mal, e é por causa da bunda que o cheiro existe. Essas algumas das associações feitas por Lourenço e logo desfeitas por sua mente turva.
O filme, de uma forma geral, trata da solidão, loucura e paranóia reunidas, não só em Lourenço, mas nas personagens estranhas que o rondam e o visitam todos os dias.
O ralo passa a não ser só um ralo que denuncia um problema de encanamento e o olho passa a resumir em si um pai que o personagem nunca conheceu e que teria morrido na Segunda Guerra. Tudo isso junto passa a fazer parte de uma conspiração na vida do homem solitário, que se tornou frio ao longo dos anos e, como ele mesmo diz, que não gosta de ninguém.
Para que essa atmosfera de caos seja transmitida, os recursos que o filme utiliza são interessantes: câmera acelerada em alguns momentos, congelamento em outros, muitas falas em off nas quais Lourenço comenta a própria cena como se estivesse observando de fora. No entanto, O Cheiro do Ralo acaba por pecar um pouco na confusão. A personagem em si já é confusa, as situações e as pessoas são esdrúxulas, muitas atitudes e diálogos se valem do non-sense para transmitir um raciocínio abstrato. Assim, tudo isso junto já é bastante caótico e o espectador acaba ficando meio perdido. Tudo começa pela obsessão pela bunda, depois pelo cheiro, depois pelo olho, depois por tudo isso junto, depois pelo pai. Muita informação reunida que não se fecha em um sentido muito claro. Dá-se a impressão que Lourenço passa a ser mais lunático que problemático. Assim, não se fecha um sentido claro para todo aquele amaranhado de estranhices. Não que tudo tenha que fazer sentido no cinema, mas em certos casos, não fazer sentido é que é o foco, o x da questão. Não parece que é este o caso.
Por outro lado, a partir desses mesmos elementos juntos, é que o filme fala do abuso de poder. Uma vez que Lourenço não se liga sentimentalmente a nada e a quase ninguém, acha que pode pagar por tudo o que quer e falar e fazer o que bem entender. E isso resulta em humilhação e barbárie. É nessa relação que o filme mais conversa com o público, que é capaz de fazer associações e analogias a partir da frieza de Lourenço. Frieza esta que se reflete nesses abusos e faz com que o espectador projete a ocorrência dessas ações na sociedade.
Pensando em separado os elementos que juntos são caóticos, é possível depreender simbologias. A preocupação com o cheiro do ralo resume a importância que as pessoas dão ao “que os outros vão pensar?”, “o que vão dizer?”. O olho, direcionado a tudo, apesar de não ver mais que os olhos reais de Lourenço, representa a necessidade de registro de tudo, mais do que na própria memória. E a bunda, a bunda… aí acho que é gosto pessoal mesmo.