Em 19 de novembro de 2021, durante os treinos livres e classificatórios da etapa do Catar do campeonato mundial de Fórmula 1, o piloto britânico Lewis Hamilton utilizou, pela primeira vez, um capacete que apresenta a bandeira LGBTQIA+. Como clara forma de protesto às leis homofóbicas do governo local, o equipamento também apresenta a frase “We Stand Together” (Permanecemos Juntos, em tradução livre para o português).
O Catar é uma das nações que ainda proíbe relações homossexuais e as considera um crime. Além disso, o país é constantemente denunciado por violações aos direitos humanos. Assim, de modo a explicitar a dimensão universal de sua luta, o piloto utilizou o equipamento e fez críticas à situação discriminatória do país durante as entrevistas que ocorreram durante e após os treinos. O heptacampeão ainda comentou que faria uso do mesmo capacete nas etapas da competição realizadas na Arábia Saudita e Abu Dhabi.
Não é a primeira vez que o piloto, ao longo de seus 14 anos competindo na Fórmula 1, se posiciona a favor de movimentos sociais pela defesa de direitos. Desde o início da sua trajetória dentro do automobilismo, principalmente nos últimos anos, Hamilton tem se pronunciado e atuado em prol da defesa de direitos sociais, na luta contra o racismo e pela igualdade. Com isso, o piloto constrói um legado que vai muito além das pistas.
2007: O início de tudo
Lewis Hamilton, como muitos outros pilotos, iniciou sua trajetória no automobilismo por meio do kart. Nas diferentes categorias que competiu, o atleta fez muito sucesso e sagrou-se campeão da GP2 Series, atual Fórmula 2 em 2006 ― categoria de corrida criada no automobilismo em 2017 e ambiente de treinamento prévio para a Fórmula 1.
Na temporada seguinte, Hamilton ingressou, de fato, na Fórmula 1 aos 22 anos de idade. Nesse momento, tornou-se o primeiro piloto negro da categoria. Além disso, ainda em seu ano de estreia, Hamilton quase foi campeão da competição. Porém, Kimi Raikkonen, piloto da Ferrari, levou a melhor e tirou a possibilidade do estreante tornar-se o atleta mais jovem a ganhar um título mundial.
Em 2008, o campeonato foi equilibrado e sua decisão ocorreu apenas na última etapa da temporada, realizada em Interlagos, São Paulo. Na visão de Bruna Arimathea, jornalista do Q3 Podcast, “Hamilton é o piloto capaz de virar todas as controvérsias a favor dele”. E foi isso que aconteceu nesta prova.
O britânico ultrapassou o alemãoTimo Glock nas voltas finais com chuva e terminou a corrida na quinta colocação. Com isso, após um ano, Hamilton fez com que Felipe Massa não ganhasse o título que dependia do último resultado em Interlagos e, assim, sagrou-se o mais jovem a conquistar o campeonato mundial. Para Sérgio Siverly, integrante do Boteco F1 ― primeiro canal especializado de Fórmula no Youtube ― “se o Hamilton não tivesse vencido nesse ano, provavelmente a carreira dele seria totalmente diferente nesse momento”.
O ano de 2009 foi desafiador para Lewis Hamilton. Competindo pela McLaren, esse período ficou marcado pelas diversas punições e polêmicas. Dentre elas, destaca-se a prova de Melbourne, na Austrália. Neste GP, Hamilton afirmou que havia sido ultrapassado pelo seu colega de equipe, Jarno Trulli, durante o período em que o safety car estava na pista, o que é proibido pelas regras da competição. O piloto britânico ainda relatou que apenas seguiu as instruções da equipe que havia solicitado para que tal ultrapassagem fosse permitida
Nesse cenário, o piloto perdeu o seu destaque, momentaneamente, de “fenômeno” e finalizou o campeonato na quinta posição.2009 foi um dos piores na história da equipe McLaren. Desde o início da temporada, essa teve dificuldades significativas por não adequar seus carros da melhor maneira possível, de acordo com as novas regras que haviam sido recém-implementadas.
Lewis Hamilton foi recuperando o seu espaço de destaque dentro do esporte gradativamente. A temporada de 2010 rendeu protagonismo à equipe e ao atleta. Porém, a recuperação foi temporária e, em 2011, novos desafios surgiram. O piloto britânico enfrentou problemas em suas vidas pessoal e profissional, envolvendo-se inclusive em um acidente com Felipe Massa durante a corrida na Índia.
As temporadas seguintes foram marcadas por altos e baixos. Destacam-se os períodos 2015, 2016 e de 2017. Primeiramente, em 2015, após migrar para a equipe da RedBull Renault, Hamilton fez uma temporada histórica e, de maneira antecipada, tornou-se tricampeão, além de se igualar a Ayrton Senna em número de vitórias.
“Para mim, a última grande virada na chave do Hamilton foi o campeonato de 2016, quando ele perdeu pro Rosberg”, conta Siverly. Ambos pilotos da Mercedes tiveram uma temporada disputadíssima, em que a decisão só se deu nas últimas provas do ano. Já, em 2017, sem um colega de equipe tão competitivo quanto Rosberg ― que havia lhe tirado o título no ano anterior ―, o britânico conquistou o seu tetracampeonato, também por antecipação.
Competições recentes e Hamilton dentro das pistas hoje
Mais recentemente, Lewis Hamilton teve a temporada de 2020 marcada pelo seu sétimo título mundial. Ainda que tenha iniciado o ano ainda na quarta posição, as dificuldades restringiram-se apenas ao primeiro GP da Áustria, vencido por Valtteri Bottas.
Depois desse momento, Hamilton venceu as provas realizadas em Estíria, estado da Áustria, e na Hungria. Com isso, o atleta assumiu a liderança do campeonato mundial. Posteriormente, o piloto não só venceu nove GP’s como também esteve em todos os pódios, com exceção do GP da Itália, onde terminou a prova na sétima colocação.
O sucesso do piloto britânico é evidente quando se analisa o número de pontos acumulados ao longo da temporada. Hamilton marcou 347 pontos, quantidade superior ao obtido pela equipe Red Bull, que fez 319 pontos. 2020 torna-se ainda mais histórico para Lewis Hamilton, já que superou o número de poles positions de Michael Schumacher. O atleta alcançou a marca de 98 largadas na primeira colocação frente às 91 de Schumacher.
“A característica de entender a corrida e saber ser competitivo de uma forma consistente é o que faz dele ser um heptacampeão mundial”, afirma Siverly. Bruna relata algo semelhante: “Ele tem completo domínio do que está acontecendo fora da pista, dentro do carro e do que está acontecendo dentro da cabeça dele. Ele consegue ficar 100% na prova e fazer o que quiser”.
Hamilton também desfrutou de um bom equipamento nos últimos anos. Para Bruna, caso ele não tivesse esse grande controle, o bom desempenho não seria algo garantido. “Se a Mercedes conseguiu fazer estratégias tão boas é porque Hamilton estava ali proporcionando condições para eles fazerem essas estratégias corretas no tempo correto, da forma correta”, diz a jornalista.
A temporada de 2021 já se tornou mais um novo capítulo repleto de histórias para a carreira do atleta. Bruna afirma: “depois de muito tempo, talvez desde de 2016 em que aconteceu com Rosberg, esta talvez tenha sido a disputa mais acirrada de Hamilton”. A decisãodo campeonato mundial só ocorreu na última, já que Max Verstappen e Lewis Hamilton estavam empatados até esse momento com 369,5 pontos. Como critério de desempate, o número de vitórias fornecia uma pequena vantagem ao piloto holandês. “Nessa temporada, aquele que errasse menos teria certa vantagem”, pontua.
A corrida de Interlagos foi de perder o fôlego. Largando na décima posição, Hamilton conquistou nove posições em dezenove voltas. Durante 59 voltas, ameaçou a liderança de seu rival Verstappen e conseguiu fazer a manobra decisiva que lhe rendeu a vitória no último momento . Assim, colocou fim a um jejum que durava desde setembro, quando o piloto venceu o GP da Rússia.
O GP da Arábia Saudita, realizado no dia 5 de dezembro, foi uma corrida emocionante e determinante para o desenrolar do campeonato, visto que esse resultado gerou o empate entre Verstappen e Hamilton. A prova foi marcada por incidentes que resultaram na entrada do safety car e, também, o acionamento da bandeira vermelha, além de punições aplicadas, inclusive, para Verstappen devido à ocorrência de um toque entre o seu carro e o de Hamilton.
Final classification after a crazy race in Jeddah 👇#SaudiArabianGP 🇸🇦 #F1 pic.twitter.com/d1pvEnL5Ei
— Formula 1 (@F1) December 5, 2021
A corrida de Abu Dhabi fez jus às fortes emoções da temporada. Nessa última prova, Hamilton e Verstappen correram pelo tudo ou nada. O piloto holandês largou da pole, mas logo perdeu a liderança para o britânico. Na curva um, as rodas dos carros dos oponentes chegaram a se tocar. Mas, no final da corrida, o melhor foi Verstappen. No términoda prova, o safety car foi acionado devido a uma batida de Nicholas Latifi. Com isso, o piloto holandês conseguiu se aproximar de Hamilton e fez a ultrapassagem na última volta.
A equipe da Mercedes chegou a protocolar dois protestos após a corrida. As alegações eram de que a ultrapassagem de Verstappen ocorreu durante a presença do safety car na pista e que as regras de relargada não foram cumpridas pela direção da prova. Porém, ambos os pedidos foram negados. Max Verstappen tornou-se o campeão mundial da Fórmula 1 de 2021 e tirou o octacampeonato das mãos de Lewis Hamilton.
Ser piloto também é ser um sujeito político
A temporada de Hamilton de 2020 foi histórica, também pela ação política do piloto. Em meio a onda de protestos do Black Lives Matter, Hamilton optou pela resistência em detrimento do silêncio. Além de participar das mobilizações populares em Londres após o assassinato de George Floyd, durante as corridas e premiações, o britânico fez uso de camisetas, óculos, capacete e elementos em seu carro que remetessem à luta e os ideias do movimento antirracista.
Durante a execução do hino na corrida da Áustria, realizada em setembro de 2020,, todos os pilotos utilizaram camisetas com frases antirracistas , dos quais 13 se ajoelharam, recuperando o gesto de Colin Kaepernick, quarterback que iniciou protestos contra o racismo na NFL em 2016. Desde então, Hamilton segue se posicionando publicamente e reafirmando a importância não só da luta antirracista, mas também da luta mais ampla por direitos e contra diferentes formas de opressão.
Em 2021, fora do ambiente das pistas, a figura de Lewis Hamilton ganhou destaque mais uma vez pela sua postura politizada e crítica. Na edição anual do Met Gala, o piloto britânico comprou uma mesa inteira no evento ― um dos mais significativos no cenário mundial da moda ― e convidou designers jovens negros.
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Os escolhidos foram Edvin Thompson, Jason Rembert e Kenneth Nicholson, o qual desenhou a vestimenta do piloto. O objetivo era dar visibilidade aosnomes de pessoas negras do mundo da moda e reafirmar a importância da representatividade nesses espaços. “Queria dar um lugar a pessoas que nunca tiveram oportunidade de ir a um evento como esse”, afirmou o atleta em entrevistas sobre a ocasião.
Hamilton tem sido uma das vozes quecobra a organização das principais competições do automobilismo, como a Fórmula 1, a respeito da necessidade de um maior envolvimento com questões políticas e sociais, já que o esporte faz parte da vivência em sociedade. Nas palavras do piloto: “o sonho que me move este ano é tornar este esporte mais abrangente, mais inclusivo, um novo caminho dedicado a engenheiros e outras pessoas que nem sequer sonhariam em fazer parte da Fórmula 1”.
Como resposta a essa pressão por uma postura mais crítica, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA), que regula a F1, criou o programa We Race as One (Nós corremos como um, em português). A ideia inicial era que o programa pudesse colaborar com maior diversidade dentro da modalidade e da inclusão de debates sobre pautas como o antirracismo no contexto da Fórmula 1. Porém, a iniciativa é vista mais como uma estratégia de marketing do que uma proposta que vise a mudança e procure repensar a questão do racismo dentro e fora das pistas.
“Infelizmente, esse tipo de mudança não acontece da noite pro dia, o próprio Hamilton fala isso e uma forma de gerar mais inclusão na sociedade como um todo é pela educação”. Nesse sentido e diante de propostas pouco eficazes da organização reguladora da competição, outras ideias surgem, inclusive com a autoria de pilotos e participantes da Fórmula 1, como a figura de Lewis Hamilton.
The Hamilton Commission
Com o fim da temporada de 2019, Hamilton começou a trabalhar no projeto The Hamilton Commission, com o intuito de investigar as causas e consequências da não inclusão de pessoas negras e da baixa diversidade na Fórmula 1 entre os pilotos e os bastidores das equipes. Após anunciar a mudança na pintura do carro da temporada de 2020, a sua atual equipe, Mercedes, revelou que apenas 12% de seus funcionários são mulheres e 3% são racializados.
A comissão foi organizada em parceria com a Real Academia Britânica de Engenharia ― dirigida por Hayaatun Silleme ― e também conta com Martin Whitmarsh, que chefiou a McLaren entre 2009 e 2014.
Mission 44
Anunciada em julho de 2021, a nova fundação de Lewis Hamilton visa colaborar com a diversidade nos mais diferentes setores da sociedade e combater desigualdades. Inicialmente, recebeu um investimento pessoal do piloto de aproximadamente 140 milhões de reais, além de ter como objetivo capacitar e incluir pessoas negras e racializadas em cargos científicos no automobilismo.
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A primeira ação da Mission 44 foi feita em parceria com a Teach First, instituição de ensino britânica, em prol de uma educação mais igualitária. O projeto criado selecionará 150 educadores ao longo de dois anos para atuar em comunidades carentes no Reino Unido. A motivação derivou da análise de dados contidos no relatório pela The Hamilton Comission, o qual apontou que apenas 2% dos professores do país são negros e quase metade das escolas não possuem um quadro diverso de educadores.
Hamilton tem uma voz potente dentro da modalidade, marcada ainda por um tradicionalismo e um elitismo, que afasta compulsoriamente grande parcela da população seja por questões de raça, de gênero ou de sexualidade. Esse ambiente da Fórmula 1 começou a ser transformado justamente a partir da presença de figuras como a do piloto britânico, que além de garantirem um tipo de representatividade, articulam-se politicamente e socialmente de modo a dar um sentido para a ocupação desses espaços marcados pela exclusão.
Nesse sentido, Bruna pontua: “Hamilton é uma presença extremamente necessária porque ele é um ponto muito fora da curva dentro do mundo corporativo da Fórmula 1. Quando ele sair, acho que vai demorar muito pra gente ter uma voz tão ativa”. Por isso, iniciativas como as de Lewis Hamilton são tão significativas, já que pensam e garantem uma mudança, mesmo que a longo prazo. Desenvolver ações políticas e sociais de inclusão e contra as diferentes formas de opressões é pensar não só no presente, mas como também nas futuras gerações no esporte.