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‘Laranja Mecânica’: dê-me logo mais um copo de Moloko

Em uma sociedade decadente, a história de um jovem delinquente ilustra todo seu contexto

Por J. Perossi (jgp.brito@usp.br)

Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, é um livro bastante singular. Estando ao lado de grandes distopias do século 20, como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, a narrativa retrata um futuro próximo pessimista, deprimente e, acima de tudo, autoritário. Mas o que diferencia Laranja Mecânica das outras distopias, e Burgess de seus contemporâneos, é o grau de realismo da obra, além do uso evidente da ultraviolência.

Diferente de um governo totalitário psicossocial que invade até mesmo o inconsciente individual, como em 1984, ou uma droga milagrosa que obriga todos no mundo a serem felizes, como em Admirável Mundo Novo, o elemento ficcional de Laranja Mecânica é mais simples: um copo de leite com alguns entorpecentes. Numa Londres sombria e pobre, em que velhos imploram por migalhas em toda esquina, uma onda de delinquência juvenil invade as ruas. Gangues de adolescentes realizam assaltos, espancamentos, estupros coletivos e confrontos com outras gangues, tudo isso regado ao chamado “moloko-com”, uma droga fortíssima que, tomada junto ao leite, desperta instintos violentos e hiperatividade. É tomando um desses macabros drinks num “lactobar”, bar especializado em vender o “moloko”, que somos introduzidos ao nosso protagonista, o jovem e ambicioso Alex, de 16 anos. Junto a três outros delinquentes, Alexander DeLarge passa suas noites atropelando pedestres, invadindo casas, molestando mulheres e espancando qualquer um que apareça no caminho. Tudo é descrito com detalhes o suficiente para embrulhar qualquer estômago. É numa dessas noites de crime que Alex é pego.

Quando uma invasão de propriedade dá errado, Alex, que narra a história em primeira pessoa, é preso com brutalidade pela polícia, e, em vez de ser levado novamente para uma escola correcional, acaba em um presídio superlotado. É nessa prisão que Burgess expressa as principais reflexões e a linha condutora de todo o livro: o que é a maldade? E de quem é a responsabilidade por ela? Enquanto Alex desce mais e mais ao fundo do poço, percebemos como a sociedade retratada na obra é defeituosa em cada aspecto. Os presídios superlotados apenas servem para esconder a evidente negligência do Estado, que falha com tantos jovens, assim como aconteceu com Alexander. E, quando uma nova técnica (que é basicamente tortura) promete acabar com o “reflexo criminoso” e transformar a psique de um indivíduo, fica evidente que a única preocupação estatal é com a capacidade produtiva de cada um. Bastante familiar, não acha?

É no presídio que somos confrontados com o realismo de Burgess, que imagina uma sociedade futurística e distópica e antecipa com boa precisão a Necropolítica atual: a crescente violência tanto da polícia quanto de criminosos, a preocupação do governo de mascarar os problemas para garantir a próxima eleição por meio de uma política eugenista e as desigualdades sociais que esses problemas desencadeiam. O brilhantismo da obra não acaba por aí: como qualquer grupo social, as gangues de Burgess também desenvolvem uma cultura própria, que é expressa principalmente pelo vocabulário.

Uma nota de 14 páginas escrita pelos tradutores está presente na edição da Editora Aleph (2019). Nela, é explicado como a maneira Nadsat de falar foi o jeito encontrado pelo escritor para “atemporalizar” a obra. Empregar gírias já comuns entre as gangues de Londres na primeira metade do século 20 faria de Laranja Mecânica um livro antiquado em poucas décadas. No lugar disso, Burgess inventou vocábulos novos, misturando russo com inglês vulgar, o que  originou trechos icônicos, como  “viddy well, little brother, viddy well” ou a gíria “horrorshow”.

No geral, o livro de Anthony Burgess é espetacular, desde o estranhamento causado pelo Nadsat até a revelação da grande metáfora da obra apenas no último capítulo. Há, como em todas as narrativas, aspectos questionáveis, especialmente quanto à falta de solução proposta pelo autor. Mas, talvez, essa falta seja deliberada, para deixar o velho gosto amargo na boca que toda distopia que se preze deve deixar.

*Imagem de capa: reprodução/Editora Aleph

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