“Eu certamente poderia escrever para sempre sobre nada. Desde que eu tivesse nada a dizer.”
Patti Smith ama muitas coisas. Uma delas é Haruki Murakami, autor japonês de romances de realismo fantástico. Mesmo antes de ela citar no livro a importância de A crônica do pássaro de corda em sua trajetória pessoal, essa influência fica clara logo nas primeiras páginas de Linha M (Companhia das Letras, 2016), cujo ponto de partida é um sonho no qual a autora conversa com um caubói estranhamente sábio em um cenário desértico.
E, dentro da narrativa, faz todo o sentido. “Sobre o que é esse livro?”, você pode se perguntar. Tudo e nada ao mesmo tempo. Ou melhor: sobre como Patricia Lee Smith, poetisa, pioneira do movimento punk e ser humano norte-americano nascido em 1946 enxerga tudo aquilo ao seu redor. Os pensamentos sobre os assuntos mais diversos, sempre registrados em sua linguagem caracteristicamente poética e geralmente motivados por viagens (ao longo do livro, Patti passa por Inglaterra, México, Japão e Guiana Francesa), ligam-se por um único fio: as experiências da autora compartilhadas com seu marido, Fred ‘Sonic’ Smith, que faleceu em 1994. Por um pequeno instante, somos convidados a participar da vasta constelação de significados que configura o universo particular de Patti Smith, compartilhado visceralmente com seu falecido amor por tantos anos que sua estranheza em lidar com as ausências deixadas por sua partida é palpável.
Linha M se adequa, por mais que alguns puristas possam o negar, à uma cultura moderna do compartilhamento: assim como fazem os jovens em algum dos muitos aplicativos que hoje contam com a função stories, a autora acredita serem dignas de nota as coisas mais banais — que geralmente se desdobram em reflexões e são incorporadas a uma narrativa maior que compreende a vida inteira da artista. Imersa em uma crença no sentido de tudo aquilo ao seu redor (talvez a versão mais pura de fé possível), a autora tem epifanias provocadas até pelas coisas aparentemente mais insignificantes, como um balão dourado na calçada no primeiro dia de um novo ano. E mesmo assim, em nenhum momento sentimos que essa leitura é relevante somente por provir de Patti Smith — o que nos motiva a continuar a explorar aqueles caminhos difusos é puro deslumbramento e um estranho senso de paz que vem de observar alguém tão profundamente em paz com a vida, mesmo em momentos de solidão.
Na sua leitura, fica evidente que, tal qual um diário, seus escritos serviram como um exercício intelectual. Mas a genialidade da escrita de Patti está aí: ela consegue fazer do livro um exercício pessoal e coletivo — suas descrições emergem o leitor, que navega junto a ela em meio ao seu mundo leve onde tudo é um pouco místico e repleto de sentido. Ela consegue realizar o feito quase impossível de ser hiperbólica e fugir do exagero: suas palavras transbordam sabedoria, mas ela mantém uma inocência e uma empolgação quase infantil em seu hábito de enxergar tudo que lhe aparece como novo, fantástico e repleto de potencial. Mas inocência não é bem a palavra certa. Talvez fosse em Só Garotos (Companhia das Letras, 2010), mas não mais: essa é a visão de alguém que fez uma escolha consciente de continuar aberta a todas as sensações que o mundo pode lhe provocar. E que aprendeu a aceitar os rumos para os quais elas podem lhe encaminhar.
Linha M também nos coloca frente a frente com a natureza profundamente uncool de sua autora: se em Só Garotos ela chocou pessoas da cena musical ao dizer que nunca havia injetado heroína devido a um misto de desinteresse e pavor de agulhas, o seu segundo livro registra seu amor incondicional por personagens fictícias (no caso dela, a detetive Linden, do seriado The Killing); suas viagens para conhecer túmulos e casas de ídolos, seu amor honesto a uma rotina — ir ao seu amado Cafè ‘Ino, pedir um café acompanhado de uma torrada com azeite — e a hábitos completamente previsíveis. Dentro do livro, só lembramos que ela é uma estrela do rock de prestígio ao pensar que ela faz algumas viagens para falar em conferências e tem permissão para entrar em lugares como a Casa Azul de Frida Kahlo fora do horário de visitação.
Dizer que Linha M é o equivalente biográfico de um espelho quebrado cujos cacos refletem a luz (e a imagem de sua autora) em uma multiplicidade de direções parece o mais correto, mas ainda seria uma grande simplificação. Uma frase dessas é incapaz de transmitir o alívio que sentimos ao pegar emprestada, por pouco mais de 200 páginas, a conexão de Patti Smith com o mundo. E entender que ele também é nosso.
Por Bárbara Reis
barbara.rrreis@gmail.com