Por Júlia Sardinha (jusardinha.eca@usp.br)
Quem nunca ouviu o ditado de que “a grama do vizinho é sempre mais verde”? Ao menos era isso o que os cientistas da Guerra Fria — em especial da NASA — pensavam quando disputavam com a antiga URSS o conhecimento inédito dos astros. Mas o universo não é o único vizinho misterioso e intrigante dos seres humanos. Há uma “grama” com potencial de ser ainda mais verde e, como bônus, bem mais próxima de nós: os oceanos.
Quando a humanidade já conhecia muito sobre a superfície terrestre e se preocupava em explorar os cosmos, uma pioneira da geologia e da cartografia se dedicou às águas. A cientista Marie Tharp é, hoje, reconhecida como a responsável por desenhar os primeiros mapas modernos do oceano e por comprovar as teorias da Tectônica de Placas e da Deriva Continental.
Antes dos seus mapas conquistarem o mundo, a comunidade científica acreditava que o fundo do oceano era plano e se assemelhava a uma enorme banheira. Em uma época em que a misoginia era tida como a base dos comportamentos sociais, Tharp enfrentou um longo caminho para ter o seu trabalho aceito e, sobretudo, respeitado.
“Eu tinha uma tela em branco para preencher com possibilidades extraordinárias, um quebra-cabeça fascinante para montar.”
Marie Tharp para o Columbia Climate School
Geóloga, matemática, linguista, musicista… Marie Tharp!
Se pudéssemos definir Marie em uma única palavra, “intrigante” estaria no topo da lista. Além de ter explorado diferentes ramos de conhecimento, a cientista — falecida em 2006 — não economizava elogios para dizer o quanto o seu trabalho tinha sido importante para a humanidade. “Eu acho que os meus mapas contribuíram para a revolução do pensamento geológico, o que, de certa forma, se compara à revolução de Copérnico”, declarou ao Columbia Climate School da Universidade de Columbia.
Nascida em 30 de julho de 1920 na cidade de Ypsilanti (Michigan, EUA), Marie Tharp se encantou pela cartografia ainda pequena. O pai dela, William Edgar Tharp, era um topografista de solos que a levava junto em seus trabalhos. Mesmo sem planejar seguir a mesma carreira que o pai, Marie acabou envolta pelo mundo dos mapas e das contas enquanto crescia.
Tharp buscava trabalhar com o que a fizesse feliz e, nessa jornada pela satisfação, aventurou-se em vários campos de estudo. Na sua época, as opções no mercado de trabalho para as mulheres não eram muitas, o que a levou a se graduar em Língua Inglesa e em Música pela Universidade de Ohio. Mas a jovem aspirante às ciências não estava contente.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Universidade de Michigan passou a aceitar mulheres como estudantes devido à falta de homens para atuar em profissões de áreas como a indústria petrolífera, por exemplo. Marie aproveitou a oportunidade e obteve mais um diploma, desta vez em Geologia. Mais tarde, ela ainda se graduou em Matemática pela Universidade de Tulsa.
Ainda à procura de uma profissão que realmente a interessasse, Tharp se mudou para Nova Iorque no fim da década de 1940 e logo foi contratada pelo Lamont-Doherty Earth Observatory, instituição especializada em estudos sobre as ciências terrestres e as mudanças climáticas. No início, Marie exercia as atividades de uma assistente aos docentes da instituição, como Bruce Heezen, com quem trabalhou em conjunto durante anos.
Mesmo sendo companheiros de pesquisas, Tharp e Heezen tinham discussões acaloradas e frequentes. O oceanógrafo Bill Ryan compartilhou com a Columbia Climate School a sua experiência ao encontrar com Marie pela primeira vez: “Ela rasgou uma folha enorme na qual estava trabalhando há mais ou menos um mês. E eu pensei: ‘Oh meu Deus, isso é ciência”.
O encontro tarda, mas não decepciona
A professora da Universidade de Brasília (UnB), Susanne Maciel, demorou a conhecer a história e o impacto de Marie Tharp. Atuante na área de sismologia — fortemente influenciada pela teoria da Tectônica de Placas que foi comprovada pelo trabalho de Tharp —, ela afirma que só conheceu a cientista quando iniciou o seu doutorado em Matemática Aplicada e Geofísica pela Unicamp.
“É curioso [não ter conhecido a cientista antes] porque nós já aprendemos sobre a teoria da Tectônica de Placas na escola, mas eu nunca tinha ouvido falar da Marie Tharp.”
Susanne Maciel
Susanne não foi a única que conheceu a cartógrafa apenas no ensino superior. O oceanógrafo filiado à Associação Brasileira de Oceanografia (ABO) Guilherme de Lima declara: “A primeira vez em que eu ouvi falar do trabalho da professora Tharp foi na disciplina de Geofísica Marinha. Nessa disciplina, abordávamos questões sobre o fundo oceânico e seus comportamentos como a [formação da] Cordilheira Meso-Atlântica e a Deriva Continental”.
Mesmo em áreas que tiveram as suas pesquisas beneficiadas pelas descobertas de Marie Tharp, como as mencionadas por Guilherme, tardou até a geóloga ser reconhecida por mais pessoas. A bióloga e mestranda em Ensino de Astronomia pela USP, Beatriz Zanon, é mais um nome na lista dos “ex-desconhecedores” de Tharp.
A história de Marie encantou Beatriz de modo tão profundo que a estudante decidiu incluir a cartógrafa no seu website de divulgação científica — nomeado Cientistas Brilhantes — sobre importantes nomes femininos na ciência. O projeto procura abarcar mulheres que atuaram e atuam nos campos de estudos do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.
Diretor do instituto, Ricardo da Trindade é mais um que se junta ao grupo. Doutor em Geofísica e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), ele diz que também não conheceu a história de Marie Tharp enquanto estava na escola. “Ela é uma figura importante. Todo mundo que trabalha, hoje em dia, com a tectônica de placas e com a mudança da geografia terrestre tem muita influência da descoberta dela”, afirma.
Lugar de mulher é na ciência
Para ter grandes descobertas referentes ao fundo oceânico, havia a necessidade de se coletar dados em alto-mar. Mas, por ser mulher, Marie Tharp era proibida de fazer parte das tripulações — formadas somente por colegas homens — que se aventuravam nas águas. Apenas em 1968, quando ela e Bruce Heezen reconheceram a existência de fraturas no oceano Atlântico, que Tharp pôde fazer parte das pesquisas a bordo dos navios.
A geóloga passou a depender das informações obtidas pelos seus colegas – em especial Heezen –, para prosseguir com o seu trabalho que, à princípio, não tinha a intenção de fazer quaisquer mapas sobre o assoalho oceânico. Na verdade, Marie tinha recebido a tarefa de apenas descobrir como utilizar os dados coletados de forma significativa.
Os dados eram intrigantes e Tharp começou a analisá-los. As contas matemáticas e os desenhos cartográficos não tardaram a marcar presença no cotidiano do observatório Lamont. Mas, com a insuficiente tecnologia da época, as pesquisas em alto-mar não eram capazes de captar informações precisas e Marie tomou uma decisão que desafiava a racionalidade e a lógica científicas: usar a sua intuição.
Claro que os mapas não foram feitos “no chute”: além da sua intuição, a cartógrafa também fez uso dos seus conhecimentos em Geologia. Com alguns esboços dos mapas do assoalho oceânico já feitos, ela percebeu que todos continham uma “forma V” — um rift, evidência de ruptura da crosta terrestre — e comprovou que as teorias da Tectônica de Placas e da Deriva Continental não eram tão heréticas quanto a comunidade científica pregava na época.
A descoberta de Tharp ocorreu em 1952 e por anos permaneceu reconhecida apenas por si mesma. Não bastasse a descrença de Heezen, seu principal parceiro de projetos, sobre as suas constatações, a cientista ainda teve que enfrentar comentários pejorativos sobre o seu trabalho, chamados de “papo de garota” por outros companheiros do instituto.
“A reação da comunidade científica variou do espanto ao ceticismo e ao desprezo. (…) A descoberta do sistema de dorsais meso-atlânticas foi uma revelação.”
Marie Tharp para o Columbia Climate School
Mesmo após décadas do pioneirismo de Marie Tharp, ser mulher ainda é motivo para inferiorizar os trabalhos de cientistas. “Nós ainda vemos muito assédio. Nós ainda temos muito que caminhar nas ações de educação dos homens”, diz Susanne Maciel.
Ricardo da Trindade acrescenta que ainda é preciso avançar na promoção da igualdade de gênero na ciência. Segundo ele, os avanços são lentos até mesmo no seu local de trabalho. Apesar de existir há mais de um século, foi apenas em 2021 que o IAG-USP elegeu a primeira mulher para assumir um cargo da diretoria: a vice-presidente Beatriz Barbuy.
A exclusão das mulheres no ramo científico perpetua até os dias atuais e, muitas vezes, de forma semelhante às discriminações sofridas por Tharp na década de 1960. “Durante a minha faculdade, existia o trabalho de ‘observador de bordo’ para fiscalização de barcos pesqueiros. Naquela época [meados dos anos 90], as mulheres não eram selecionadas para o trabalho porque não havia segurança. Um absurdo”, declara o oceanógrafo Guilherme de Lima.
Frente aos desafios enfrentados pelas mulheres na ciência, prêmios que valorizam a atuação feminina no campo científico surgiram. Guilherme menciona o Prêmio Marta Vannucci como exemplo, que busca valorizar e reconhecer o trabalho de mulheres no conhecimento sobre o mar no Brasil.
A criadora do website Cientistas Brilhantes, Beatriz Zanon, afirma que teria tomado decisões diferentes no decorrer da sua trajetória acadêmica se tivesse conhecido a história e a luta de Marie Tharp antes. Hoje, como professora, ela procura trazer para os seus alunos exemplos de mulheres que fizeram e fazem a diferença na área científica.
Louros à Marie
Apenas no ano 2000, os trabalhos e as contribuições de Marie Tharp passaram a ser reconhecidos mundialmente. Só que até o momento de receber os louros, a cientista teve de lidar com problemas além da masculinidade opressora, como os aparatos tecnológicos disponíveis para criar os seus mapas.
Na época, a principal ferramenta utilizada foi o Sonar, um sistema de detecção de objetos embaixo da água que utilizava a reflexão de pulsos de ondas, e que continua em uso até hoje. Susanne trabalha com pesquisas sismológicas que foram muito beneficiadas pelo mapeamento do assoalho oceânico e pelas técnicas empregadas por Tharp.
“Nós explodimos uma bomba em uma região onde colocamos sensores e calculamos quanto tempo demora para essa onda ‘sair’. Dependendo do tempo que demora, conseguimos entender quais são as estruturas embaixo da terra. A Marie Tharp utilizou essa técnica”, explica Susanne.
O oceano continua a ser um grande mistério para a vida dos seres humanos e, por isso, ainda é objeto de diversas pesquisas. As tecnologias se desenvolveram a ponto de ser possível obter dados com maior precisão. E em um mundo globalizado, compartilhar resultados tem se mostrado um método tão eficiente quanto as trocas de informações que a própria Marie Tharp realizou com os seus colegas do Lamont.
“Eu acho que a ciência que ela fez foi uma ciência globalizada [porque] já foi uma ciência que partia de dados em escala mundial. Isso não era comum na época.”
Ricardo da Trindade
Tharp declarou ter trabalhado nos bastidores durante a maior parte da sua carreira como cientista. Sem ressentir as atitudes machistas de seus companheiros, ela mostrava contentamento pelas atividades que exercia: “Eu pensava que eu era sortuda por ter um trabalho que era tão interessante”.
Nas profundezas do legado
A compreensão moderna da Geologia e dos oceanos foi fortemente construída com os esforços de Marie Tharp. “Você não pode encontrar algo maior do que isso [as dorsais meso-atlânticas], pelo menos não neste planeta”, ressaltou a geóloga ao Columbia Climate School.
Em 1977, Marie e Bruce publicaram o primeiro mapa global de todos os oceanos. O impacto do projeto foi tamanho que até hoje é utilizado por pesquisadores e acadêmicos da área. Mas, ainda há muito a ser explorado nas águas: apenas cerca de um quinto do assoalho oceânico está mapeado em detalhes.
De acordo com Susanne Maciel, o mapeamento das áreas dos oceanos “ainda é um campo de estudo muito ativo”. Como exemplo, a geóloga e cientista Vicki Ferrini tem feito parte de um projeto de colaboração global para o remapeamento do assoalho oceânico até a próxima década, chamado Seabed 2030.
“É indiscutível a contribuição do trabalho dela para a compreensão do ambiente oceânico e até do planeta.”
Guilherme de Lima
Outros projetos, além do ramo científico, foram influenciados por Marie Tharp. A UnB realizou encontros do Projeto Mulheres Cientistas, um no qual Susanne realizou junto à Sociedade Brasileira de Geofísica (SBGf). O instituto Lamont, onde Tharp iniciou os trabalhos que revolucionaram o mundo, lançou uma série de reportagens para comemorar os 100 anos da cientista, em 2020. Dentre os conteúdos, há um episódio de podcast sobre a vida e o legado da geóloga: Pod of the Planet.