Por Amanda Nascimento (amanda_nascimento@usp.br)
Os Medicamentos Isentos de Prescrição (MIP) são fármacos que dispensam receita médica para serem vendidos. Disponíveis ao público geral em farmácias e drogarias, os produtos de autocuidado por vezes circulam sem que haja apuração quanto a seu perfil e qualidade farmacológica.
Tendo isso em vista, o estudo intitulado “Mapeamento das evidências de medicamentos isentos de prescrição registrados no Brasil: análise comparativa segundo o método Grade”, publicado hoje (31) na revista “Saúde em Debate”, buscou elaborar esse balanço. Os cientistas da Universidade de Brasília (UnB) examinaram 188 fármacos entre as bases de dados consultadas, a Anvisa e o Micromedex.
O artigo, que manteve um enfoque acerca dos efeitos dos MIP em grávidas, lactantes e crianças, observou que 67% desses remédios não podem ser usados por menores de 6 anos. Além disso, entre os 112 liberados para o uso durante a gravidez, 95% não possuem bases que comprovem sua segurança, ao passo que 90% das grávidas os utilizam. Sobre lactantes, 87% carecem de ensaios clínicos para referência.
Em entrevista ao Laboratório, Nara Laismann, uma das autoras do artigo, expressa que o enfoque está ligado às lacunas acerca de pesquisas nesse eixo. “Existe uma limitação por questões legais, éticas e de segurança [para com esses grupos]”, completa.
Para que um medicamento seja fornecido sem receita, critérios como tempo mínimo de comercialização, segurança (frequência de sequelas), ser manejável pelo paciente e não provocar dependência química devem ser respeitados. Dos 188 fármacos, 19 deles estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).
Metodologia
O recorte feito pelo estudo contou com a análise de fármacos presentes na Lista de Medicamentos Isentos de Prescrição (LMIP), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Publicado no Diário Oficial da União, o regimento consta o que caracteriza um MIP e quais estão presentes no mercado nacional.
A partir da identificação, coletou-se informações básicas como nome, locais de ação, características químicas e indicações terapêuticas desses fármacos. Para qualificar a amostra disponível, a base de dados Micromedex, sistema de suporte à decisão clínica, foi o ponto de partida do estudo.
As informações reunidas foram classificadas conforme o método Grade (Grading of Recommendations, Assessment, Development and Evaluations). Usado para graduar a qualidade de evidências e a força de recomendações, a metodologia é usada a fim de facilitar a interpretação de leitores e da comunidade científica.
Com isso, o nível de evidência, isto é, a qualidade da mostra científica disponível, foi fracionado em quatro categorias. A primeira delas, a alta, designa fármacos com ensaios clínicos elaborados e sem inconsistências significativas; a moderada refere-se àqueles com possíveis erros sistemáticos, chamados de riscos de viés; a baixa corresponde aos mesmos problemas, porém intensificados; e a muito baixa remete a falhas graves.
O parâmetro ainda levou em conta os Graus de Recomendação do Grade. Por tratar-se de um parecer opinativo de pesquisadores ou cuidadores sobre o uso, o sistema é dividido entre graus de forte e fraca indicação. Na primeira, entende-se que os benefícios superam os efeitos negativos; na última, não há um consenso sobre sua eficácia.
“O objetivo [da pesquisa] foi contribuir para que o profissional consiga identificar qual seria o melhor medicamento para o paciente”
Nara Laismann
Uma cilada chamada automedicação
A análise do perfil e do uso de diferentes remédios foi dividida em 10 grupos, que representam sua categoria anatômica. O grupo (A) Trato Alimentar e o grupo (R) Sistema Respiratório tiveram o maior número de fármacos disponíveis, configurando 19% cada. Produtos (D) Dermatológicos e do Sistema Nervoso (N) seguem com 16% e 15%, respectivamente.
No que concerne à verificação dos níveis de evidência e força de recomendação, encontra-se um percentual hostil expressivo. Enquanto a qualidade de 61% dos remédios é alta/moderada, contra 39% como baixa/muito baixa/sem evidência, o jogo vira no quesito recomendação: 55% tem força de recomendação fraca.
Os dados sinalizam que, embora a circulação desses medicamentos implique em um certo grau de segurança, seu uso impróprio pode resultar em graves consequências. A automedicação, proveniente do autodiagnóstico, também pode mascarar problemas sérios e postergar o tratamento adequado.
O mapeamento cita como exemplo os fármacos procurados para tratar doenças digestivas e respiratórias — como gripes e resfriados. Devido à grande demanda, a aplicação generalizada dos remédios ocasiona em uma atuação farmacêutica deturpada. Em contrapartida, ainda que existam evidências de baixa qualidade, é inegável o papel dos MIP em manejar doenças.
“A Farmácia Comunitária é às vezes o único estabelecimento de saúde que aquele paciente tem acesso”
Nara Laismann
Atenção redobrada
Os ensaios clínicos são, em sua maioria, feitos em adultos não-gestantes e não-lactantes, o que torna as pesquisas sobre os efeitos dos fármacos na demografia analisada inconclusiva. Adiciona-se a essa conjuntura as diferentes respostas farmacocinéticas nas crianças em comparação aos adultos.
Segundo a pesquisa, não há estudos suficientes que comprovem a segurança desses medicamentos em grupos vulneráveis, e muitas dessas informações são recebidas somente pós-comercialização. Por isso, é vital que haja um cuidado em sua aplicação, já que, por exemplo, recém-nascidos são receptores passivos dos remédios tomados pela lactante, e o dano fetal não pode ser descartado em mais da metade das grávidas.
Na maioria dos casos, o mais recomendado é interromper a amamentação durante o tratamento com remédios e cessar seu uso na gestação. Mas buscar o aconselhamento profissional também é uma etapa indispensável. “O farmacêutico é bem capacitado para fazer a prescrição de medicamentos e orientar as pessoas a fazerem o uso racional”, conclui Laismann.
*Imagem de capa: pch.vector/Freepik