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Mentes brilhantes e criatividade destrutiva: a ciência da Rússia e sua Bomba-Rei

Por Eduardo Passos (enbpassos@usp.br) e João Pedro Malar (joaopedromalar@gmail.com) Esse texto faz parte do Especial da Rússia da Jornalismo Júnior. Para mais textos, clique aqui. Apesar de muitas vezes esquecida ou, simplesmente, desconhecida, a contribuição da Rússia para a ciência e a sociedade é vasta. Desde o fim do século 19, diversas descobertas e invenções russas …

Mentes brilhantes e criatividade destrutiva: a ciência da Rússia e sua Bomba-Rei Leia mais »

Por Eduardo Passos (enbpassos@usp.br) e João Pedro Malar (joaopedromalar@gmail.com)

Esse texto faz parte do Especial da Rússia da Jornalismo Júnior. Para mais textos, clique aqui.

Foto: DepositPhotos

Apesar de muitas vezes esquecida ou, simplesmente, desconhecida, a contribuição da Rússia para a ciência e a sociedade é vasta. Desde o fim do século 19, diversas descobertas e invenções russas e soviéticas trouxeram grandes avanços para a humanidade, influenciando diretamente no nosso cotidiano. Além disso, vários acontecimentos marcaram a ciência russa e o mundo. Mas afinal, quais são os feitos russos nas áreas da ciência?

Protagonista da corrida espacial, a Rússia levou o primeiro artefato e o primeiro homem ao espaço, permitindo ao mundo descobrir que a ‘Terra é azul’. Vieram do maior país do planeta, também, contribuições na física e matemática, inovações telecomunicativas e novidades resultantes da engenhosidade de um exército poderoso, um serviço secreto eficiente e um território povoado por mentes brilhantes. A Pátria-Mãe conseguiu, até mesmo, a proeza de combater as armas nucleares construindo o maior artefato bélico de todos os tempos.

Para um povo nascido e criado sob temperaturas extremas e que enfrentou revoluções sangrentas e guerras mundiais que vitimaram mais cidadãos seus que qualquer outra nação (em torno de 30 milhões), vencer teoremas e incógnitas sempre foi questão de tempo — coisa fácil diante de tantas intempéries. Se no futebol, as chances são poucas, na ciência, a Rússia sempre é favorita.

 

Breve histórico

Com poucos investimentos em pesquisas em meio a um ambiente socioeconômico ainda atrasado, a Rússia contribuiu pouco para a ciência no século 19. No século 20, porém, essa situação mudaria por completo. Com a Revolução Russa (1917) e a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), uma política de investimentos massivos em pesquisas científicas foi iniciada, gerando inúmeras descobertas importantes. Tudo isso ocorreu dentro do contexto da Guerra Fria, caracterizada pela disputa entre URSS e EUA, englobando também a área das ciências.

Francisco Assis de Queiroz, professor de história da ciência da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) ressalta, entretanto, que se por um lado a Guerra Fria permitiu um grande desenvolvimento em algumas áreas da ciência e tecnologia da Rússia, ela também foi um obstáculo, já que a pesquisa era controlada ou deveria estar de acordo com as determinações do governo. Por isso, certas áreas de estudo ficaram simplesmente estagnadas.

A partir da década de 1970, esse quadro passaria por uma nova mudança. Com uma desaceleração da economia soviética, os investimentos em tecnologia e pesquisa sofreriam uma grande redução. A situação iria piorar no fim da década de 1980 e início da década de 1990, quando o fim da URSS e transição da economia russa para uma economia de mercado gerariam uma forte crise econômica no país. Os investimentos chegaram a subir nos anos 2000, em especial em áreas como energia e indústria farmacêutica, mas, hoje, ainda sob os efeitos da crise de 2008, os recursos para tecnologia e pesquisa são muito baixos, dificultando novos avanços e descobertas.

Vale ressaltar que a Rússia e a URSS somadas possuem um total de 13 prêmios Nobel nas áreas de física (10), química (2) e medicina (1); a nação é a sexta maior detentora de prêmios Nobel no mundo. O país também é detentor de nove Medalhas Fields, considerada o Nobel da matemática.

 

Imagem: Carlos Ferreira/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior

Presença no cotidiano

Uma grande invenção que influenciou e ainda influencia a sociedade e a forma de agir e de se comportar de cada indivíduo é a televisão. E a criação desse aparelho deve-se, em parte, às pesquisas do cientista Vladimir Zworykin. Outro aparelho ligado à comunicação, o rádio, também tem as suas origens ligadas a um russo, o cientista Alexander Popov. Por fim, ainda na área da comunicação, Aleksandr Poniátov foi um pioneiro no desenvolvimento dos métodos de captura de vídeo.

A ciência russa também fez importantes contribuições na área de transportes. Fiódor Pirotski desenvolveu os primeiros veículos elétricos, base para metrôs e trens, por exemplo. Já Igor Sikorski ficou conhecido por criar os primeiros modelos de helicópteros, e Sergei Vasiljevich Lebedev criou o primeiro tipo de borracha sintética, utilizada para o desenvolvimento dos pneus de carros, caminhões e motos.

Além disso, os cientistas russos também possuem contribuições que não são tão perceptíveis para a população em geral. O renomado químico russo Dmitri Ivanovic Mendeleev foi o responsável pela criação da tabela periódica, extremamente importante para a química atual. Ainda nessa área, Nikolay Semenov ganharia um prêmio Nobel de Química pelos seus estudos de transformações químicas, com destaque para as reações em cadeia e para as reações de combustão, extremamente utilizadas no setor industrial hoje em dia.

A influência russa também chegou na física e na matemática. No primeiro campo, destacam-se Pavel Cherenkov, Igor Tamm e Ilya Frank, pela descoberta e estudos do chamado Efeito Cherenkov — utilizado em experimentos astrofísicos, na área de física de partículas e no monitoramento de reatores nucleares. Andre Geim e Konstantin Novoselov também são cientistas russos de destaque, que ganharam, em 2010, o Prêmio Nobel de Física pela descoberta do grafeno, um material extremamente resistente que já possui múltiplas utilizações em áreas ligadas à alta tecnologia, como armazenamento e conversão de energia e produção de baterias e eletrônicos.

O próprio Francisco Assis de Queiroz destaca a matemática como uma área de excelência da ciência russa. Entre os matemáticos ligados à ela, estão Nikolai Lobachevsky, que buscou estudar a chamada geometria não euclidiana ainda no século 19, Andrei Markov, que trabalhou com limite de integrais, teoria da aproximação e limite central hoje utilizadas em diversas áreas das ciências, incluindo sociais aplicadas — e Grigori Perelman, que ficou conhecido por resolver a chamada Conjectura de Poincaré, um problema matemático que fazia parte dos sete desafios do milênio (sete problemas matemáticos que ainda não haviam sido resolvidos até o século 20). Perelman recebeu a Medalha Fields em 2006, mas se recusou a receber a honraria alegando não precisar de nenhum prêmio ou atenção pela realização.

 

Poderosa e arrogante como Júpiter

No dia 1º de maio de 1960, o capitão da Força Aérea dos Estados Unidos, Francis Gary Powers, sobreava o Cazaquistão em uma missão secreta de reconhecimento territorial. Logo abaixo de Powers, no cosmódromo de Baikonur, repousava algumas das maiores novidades soviéticas da Corrida Espacial, e qualquer detalhe que pudesse ser obtido através de fotografia aérea era imprescindível para a vitória americana.

Após decolar do Paquistão e adentrar o espaço aéreo soviético, o moderno U-2 de Powers — a despeito de inovadores mecanismos de invisibilidade a radares —, porém, foi detectado e abatido por mísseis inimigos. Capturado com vida, o aviador se tornava pivô de um dos maiores escândalos da Guerra Fria e, dentre os desdobramentos daquele Dia do Trabalhador, logo chegaria ao mundo a notícia da fúria nuclear elevada à última potência.

O chamado ‘Incidente do U-2’ provocou um grande mal-estar diplomático entre os EUA e União Soviética, causando o cancelamento da abertura de uma cúpula marcada em busca de negociações de paz entre as potências. Com os diálogos cessados, iniciou-se uma série de provocações entre os países: ao passo que Iuri Gagarin se tornava o primeiro ser humano a ir ao cosmos — em 12 de abril de 1961 —, atrasos no programa espacial americano impediam que Alan Shepard obtivesse essa honra. Programado para deixar a Terra em outubro de 1960, Shepard só pôde decolar em maio de 1961, perdendo o seu lugar na história por apenas um mês e ferindo o orgulho estadunidense. No campo político, sobretudo, as coisas seguiam ainda mais acirradas e, quando a Agência Central de Inteligência (CIA) organizou uma invasão falha a Cuba, a fim de derrubar o regime de Fidel Castro — forte aliado soviético —, era de se esperar que a resposta oriental viesse. Dentre toda a tensão que envolvia o período, o premiê soviético Nikita Khrushchev decidiu que era hora de desenvolver algo que impusesse, então, não apenas respeito e admiração, mas também medo.

 

Bombas de fusão nuclear

As primeiras bombas nucleares da história se valiam da chamada fissão nuclear — isso é, a quebra de átomos gerando a energia das explosões. Entretanto, com o avanço da tecnologia bélica, um novo tipo de armas nucleares foi levado à prática. Popularmente chamadas de ‘bombas H’, as bombas de hidrogênio foram o tipo mais popular das bombas de fusão nuclear produzidos. Nesse modelo, idealizado pelo húngaro Edward Teller, a força da fissão nuclear era utilizada para comprimir átomos de hidrogênio até que eles se unissem, formando hélio. Essa união, responsável, por exemplo, pelo modelo de funcionamento do Sol, produz quantidades assombrosas de energia, e tornou possível o passo além na disputa bélica.

Valendo-se das bombas de fusão, Khrushchev foi claro ao dar ordens à sua equipe: em 15 semanas deveriam construir o maior artefato explosivo da história, com potência inicial calculada de 100 megatons. Tendo energia equivalente a 100 milhões de toneladas de dinamite, a bomba seria detonada em uma localidade remota e depois apresentada ao mundo como prova da força russa.

 

Imagem: Carlos Ferreira/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior

O dia em que a Terra tremeu

A vida dos habitantes da remotíssima Nova Zembla havia mudado desde 1955. Apesar do isolamento geográfico ter poupado-os dos horrores da Segunda Guerra Mundial, os moradores desse arquipélago, localizado no Círculo Polar Ártico, estavam familiarizados com os testes nucleares que ocorriam a algumas centenas de quilômetros de distância da vila local, Severny.

Em uma pacata terça-feira, mais um avião militar sobrevoava a área, a longínquos 11 km de altitude. A aeronave, um russo Tupolev Tu-95, só podia ser notada pelos nativos devido ao rastro de condensação que seus motores deixavam no dia de céu parcialmente nublado e pelo reflexo da tinta especial que o cobria, numa espécie de refratário da explosão que estava por vir. Acompanhado de perto por um jato que carregava câmeras fotográficas e medidores laboratoriais, o Tu-95, adaptado especialmente para a missão, carregava um artefato de peso equivalente a 25 carros populares e, por isso, seguia em velocidade reduzida.

Às 11h32 de Moscou, os locais sentiram uma onda de choque como nunca antes experimentada, ao passo que todas as casas de Severny foram completamente destruídas. O Exército soviético percebeu, empiricamente, que a explosão ocorrera, mas não tinha certeza sobre a integridade da tripulação envolvida: dentre as anomalias provocadas pela bomba, a intensa ionização da atmosfera incapacitou comunicações via rádio em uma larga área. Paralelamente, a 900 km de distância, relatos davam conta de janelas quebradas a partir de uma onda de choque que surgira ‘de repente’ — em comparação, Porto Alegre está a 850 km de São Paulo. Posteriormente, soube-se que tal onda percorreu a Terra três vezes antes de dissipar toda sua energia.

A bomba de Khrushchev foi batizada de ‘Tsar Bomba’ (em tradução livre do russo, Bomba-Rei). Na cultura russa, ela foi também alcunhada de ‘Mãe da Kuzma’ (na Rússia, ‘mostrar a mãe da Kuzma’ significa mostrar algo impressionante, e foi essa a expressão utilizada em um discurso anti-ocidental do premiê soviético).

Lançada a 10,5 km de altitude, a bomba contava com um largo paraquedas, que retardou sua queda e permitiu o afastamento das aeronaves. Além disso, seu detonamento ocorreu a 4 km do chão, por questões de segurança. A onda de choque gerada, porém, refletiu no solo e voltou num movimento ascendente rumo ao hipocentro do fenômeno. Desse modo, a bola de fogo se achatou na parte de baixo e assumiu feição semelhante a meia laranja. Ao mesmo tempo, o cogumelo de fumaça radioativa formado chegou a 60 km de altitude, atingindo a mesosfera. Já a 270 km de distância da explosão, um dos operadores fotográficos notou o clarão através de seus óculos especiais e descreveu o que pôde ver.

“As nuvens abaixo do avião e à distância se acenderam com o poderoso clarão. O mar de luz emergiu abaixo da minha escotilha e até mesmo as nuvens começaram a brilhar e se tornar transparentes. No momento, nossa aeronave saiu da camada de nuvens e, na lacuna de visão, uma brilhante bola laranja estava crescendo. A bola era poderosa e arrogante como Júpiter. Silenciosa e lentamente ela engatinhou para cima. Após romper as nuvens ela seguiu crescendo e parecia sugar toda a Terra para si. O espetáculo foi fantástico, irreal, sobrenatural”, espantou-se.

 

Explosão pela metade

A equipe comandada pelo Major Andrei Durnovtsev havia realizado a maior explosão de origem humana da história, porém a Tsar Bomba operava apenas pela metade de potencial de 100 megatons. Dentre as razões para a cautela, havia o medo de que o comboio não pudessem se afastar a tempo de não ser engolido pela bola de fogo e a incerteza dos danos que seriam causados por tamanha quantidade de energia. Por fim, a pressa na sua produção também gerava riscos de acidentes, e ninguém queria um apocalipse não-desejado no próprio quintal.

Ainda que com 50 megatons, a Tsar Bomba superou qualquer artefato nuclear, e equivaleu a dez vezes a energia de cada bala e bomba disparada ao longo dos seis anos de Segunda Guerra. Somados.

Diante dos sucessivos avisos de Khrushchev, os EUA já monitoravam constantemente as atividades nucleares na Europa e logo captaram o gigante soviético. Passado o experimento, o medo surgiu dos dois lados: os americanos sabiam, agora, do poder comunista e esses temiam revanche vinda de Washington. Logo, ambos, junto do Reino Unido, iniciaram tratativas para conter a proliferação atômica e evitar a chamada ‘destruição mútua assegurada’ (teoria de que, em caso de guerra nuclear, não haveria vencedores, dado que ambos os lados seriam exterminados pela força das bombas inimigas).

A Tsar Bomba, sobretudo, não possuiria valor tático em um conflito. Ela era extremamente pesada e, por isso, era transportada por um avião lento e grande, facilmente atacável. Puro instrumento de propaganda, porém, a arma acabou tornando-se um ponto de virada na corrida armamentista, de modo que, nos anos seguintes, iniciou-se uma tendência gradativa de diminuição dos testes do tipo. Assim, no final da década de 60, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares era assinado, e iniciava-se o declínio da energia nuclear não-pacífica.

Ao expor o horror máximo da guerra atômica, a Rússia, sem querer, iniciava a jornada por um mundo mais seguro. Ao passo que Albert Einstein morreu arrependido de ter cooperado com o surgimento das primeiras armas nucleares — o físico pretendia utilizá-las contra a Alemanha de Hitler, e, ao ver o ataque ao Japão, ficou enfurecido por ter sugerido-as a Franklin Roosevelt —, as brilhantes mentes russas do laboratório de Arzamas-16, situado próximo a Nizhny Novgorod, sede da Copa, correram contra o tempo para satisfazer a vontade de Khrushchev. Mal sabiam que ali, às margens do rio Volga, contribuíam pelo fim de bolas de fogo ‘poderosas e arrogantes como Júpiter’.

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