Por Pedro Malta (pedromalta@usp.br)
Há quem separe a música e a literatura como duas formas de arte muito distantes. Quando a música em questão é o Rap, a união das duas categorias parece ainda mais inimaginável. A aceitação do gênero como música foi e ainda é um desafio, sob justificativas como a falta de melodia e harmonia, mas, nos dias atuais, já faz parte do senso comum o fato de que o Rap é uma manifestação musical. No entanto, dizer que é literatura ou mesmo que o Rap se relaciona com ela ainda não é um conceito difundido.
A partir desse cenário, algumas movimentações têm ajudado a construir essa relação no imaginário das pessoas. Entre 2020 e 2023, o clássico Sobrevivendo no Inferno (1997) do Racionais MC’s integrou a lista de leituras obrigatórias para o vestibular da Unicamp, segunda melhor universidade do Brasil segundo o QS World University Ranking, sendo o primeiro álbum musical a compor a lista desde a criação da prova. Além disso, livros como Cabeça de Porco (Objetiva, 2005) de MV Bill, Ideias que Rimam Mais que Palavras (LiteraRUA, 2019) de Rashid, A Guerra Não Declarada na Visão de Um Favelado (Saraiva, 2012) de Eduardo Taddeo e até mesmo o livro infantil Amoras (Companhia das Letrinhas, 2018) de Emicida revelam a proximidade que rappers têm com o trabalho literário.
A realidade é que a conexão do gênero que surgiu nos guetos de Nova York com a escrita, leitura e a educação é muito mais profunda.
Afinal, Rap é literatura?
“Claro, sem dúvida nenhuma”, afirma o professor de literatura Jonathan Henrique Semmler. “A poesia nasceu com o acompanhamento musical, existem manifestações do século oitavo antes de Cristo de músicas acompanhadas da lira. O termo poesia lírica vem, provavelmente, por causa disso”, contextualiza, localizando o Rap dentro do gênero poético. Em seguida, ele explica que por volta do século 15 depois de Cristo, ocorreu uma separação entre a música como algo popular e a poesia como parte de uma erudição de elite. Jonathan ressalta que promover esse rompimento é algo ultrapassado: “É engraçado porque hoje em dia a gente está nessa discussão de novo”.
O professor cita alguns artistas do Rap nacional para explicar a riqueza poética do gênero. “É difícil a gente falar que as músicas do Racionais não são poesias. Têm aspecto estilístico, construção estilística e a estruturação típica. Além disso, elas são uma manifestação cultural periférica de um contexto histórico muito importante de ser refletido.” Ele também menciona a música Principia do Emicida por sua pluralidade de estilos musicais, que vão desde o Rap até o gospel e ritmos característicos da MPB. “A cabeça explode com as possibilidades do que dá para entender a partir da música.”
Ainda sobre a separação entre a música Hip-Hop e outros gêneros considerados mais próximos do literário, Jonathan amplia a visão do que é popular ao defender que o Rap e as demais expressões marginalizadas também fazem parte da MPB. “Por mais mal faladas que elas sejam, até mesmo dentro das escolas, essas músicas precisam ser pensadas como manifestação cultural e obra literária dentro da concepção de obra clássica também.” Para o professor, limitar o gênero é um erro. “Não que seja um problema estudar Chico Buarque, mas a MPB não está resumida à ditadura militar.”
Na sala de aula
“Pela janela da classe olhava lá fora
A rua me atraía mais do que a escola”
Tô Ouvindo Alguém Me Chamar, Racionais MC’s
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2019, o segundo motivo mais frequente para o abandono escolar entre os jovens é o desinteresse, com 29,2%, atrás somente da necessidade de trabalhar. As causas dessa falta de interesse são muitas, mas entre elas está a falta de proximidade da escola com o universo do aluno, como aponta o estudo “O que pensam os jovens de baixa renda sobre a escola” (2013).
Jonathan prepara os alunos para o vestibular e, graças a lista de leituras obrigatórias da Unicamp, teve a oportunidade de trabalhar com o álbum do Racionais MC’s em sala de aula. Em relação à questão da proximidade, o professor coloca em contraste as diferentes realidades com as quais ele tem contato. “Eu trabalho em colégios que são elitizados e trabalho em escolas da periferia de Campinas. O modo como esses textos são entendidos é muito diferente”, relata. “Para o aluno da periferia de Campinas que ouve funk, Rap e samba, aquela música é uma manifestação cultural local de legitimação desse indivíduo no espaço que ele está. Acaba sendo uma forma de existência e resistência”, ele comenta, enfatizando a semelhança sonora das duas palavras.
O educador também relata que se emocionou com um caso que ocorreu durante uma aula com uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Na ocasião trabalhava o conto Olhos D’água de Conceição Evaristo. Durante a leitura, alguns alunos choravam lembrando da infância, ou mesmo de dois anos antes, quando passavam fome tal qual a personagem da história. “Eles achavam curioso essa coisa de falar da fome, da pobreza, da miséria que eles viviam, mas de uma forma muito bonita e que emociona”, ele relata. A autora do conto, inclusive, já manifestou o desejo de escrever um Rap.
O professor explica como a recepção das obras marginalizadas acontece de outra forma nas escolas privadas. “Um aluno de elite vê pobre normalmente quando está no semáforo pedindo dinheiro, vê a periferia quando tem notícias de violência, ou então como a culpada pela manutenção das drogas ilícitas, que acontece também como uma forma de agravar a situação e construir um olhar genérico para a periferia”, ele problematiza. O educador esclarece que, quando esses estudantes têm contato com o Rap, a interpretação acontece de forma antropológica e curiosa: “eles vêem a realidade periférica como uma coisa exótica.”
Delord, nome artístico da MC e poeta Lívia Camargo (20), diz que o sistema educacional também limita o que é ou não abordado na sala de aula, em especial nas escolas privadas. “Às vezes a gente tem sorte de achar um professor que consegue falar mais abertamente sobre alguns assuntos, mas tem outros que o ambiente não deixa. Não sabem como vai ser a reação [da direção da escola]. Pensando no vestibular, se você não vai atrás de se aprofundar, tem vestibulandos que ficam perdidos porque a realidade não chegou para eles”, ela comenta.
Delord também propõe “falar sobre assuntos que atingem o todo, ou pelo menos a maioria”. “Isso vai expandir muito mais a cabeça das crianças e adolescentes e realmente tornar a sociedade melhor”, ela adiciona, como crítica a falta de proximidade entre os alunos e os temas tratados em sala de aula. “Numa batalha de rima ou em qualquer outro movimento cultural, a gente fala sobre problemas sociais com muito mais abertura. Uma sala de aula é riquíssima de conhecimento, mas com muito mais tato na hora de falar, não é a mesma coisa”, complementa a jovem, que atualmente organiza a Batalha do Beco em Cordeirópolis – SP.
Todo mundo é escritor
A ligação do Rap com a literatura não termina no leitor, mas possibilita o entendimento de que qualquer pessoa pode escrever. O segundo episódio da série documental Hip-Hop Evolution (2016) relata a história do MC Grandmaster Caz e conta com um depoimento do cineasta Charlie Ahearn, que classifica o artista como o “primeiro verdadeiro poeta do Hip-Hop”. Grandmaster Caz foi pioneiro na escrita de rimas elaboradas, na época em que os MCs ainda cumpriam a função de animadores de festas e não tinham a intenção de construir letras completas.
A figura do rapper como um poeta das ruas é amplamente presente na cultura e costuma ser citada nas obras do gênero:
“Poetisa, só escrevo o que vivi
Muita coisa que eu sei, na escola eu não aprendi”
Stefanie em Mulher MC
“Guerreiro, poeta, entre o tempo e a memória”
Edi Rock em Negro Drama
“Repressão não me fez um vilão, fez um poeta
Os soldados da rua tão de Glock e Beretta
Convocado pra guerra mas só me deram a caneta”
Rincon Sapiência em Porque Eu Rimo
Nesse sentido, Jonathan revela que teve uma experiência em sala de aula que exemplifica o potencial do Rap de gerar escritores. “Ano passado eu trabalhei Racionais MC’s com alguns alunos do nono ano aqui da periferia de Campinas e eu nunca os vi tão felizes indo para a minha aula. Curiosamente, alguns alunos ali escreviam Rap.” O educador explica que, ao final da sequência de todas as aulas, foi realizado um campeonato de slam dentro da escola. O slam é um formato de competição de poesias que tem ligação íntima com o Rap no Brasil, por tratar das mesmas temáticas, mas sem a parte musical. “Eles escancararam várias coisas [nas letras declamadas]. Desde a fome, até assédio e questões que a gente supõe que os alunos de fundamental, por exemplo, não tem um repertório. Mas eles acabam tendo repertório de experiência de vida, o que é fantástico.”
Para Delord, a escrita veio antes da música, e no Rap a artista encontrou sua forma de expressão. “Eu estava no oitavo ano e tinha um trabalho de escola que tínhamos que entregar algum tipo de arte que tivesse um tema relevante socialmente. Desde pequena eu sempre me importei com a questão da desigualdade social e do racismo, então eu levei para esse trabalho escolar uma poesia.” Ela conta que essa foi a primeira poesia que escreveu, chamada Desigualdade.
A obra da artista extrapolou o ambiente da escola e rendeu convites importantes para a escritora, entre eles um evento de Hip-Hop, onde ela descobriu, por meio de outro poeta, que o que ela estava fazendo era a poesia marginal. “Ambos são movimentos que surgiram de algo marginalizado, que as pessoas viam como feio ou como rebeldia e saem totalmente do padrão que a gente costuma aprender nas escolas”, ela comenta.
Apesar do surgimento no Brasil na década de 1970, o movimento fortificou a relação com o Rap a partir da série Literatura e Poesia Marginal. Lançada no canal do YouTube da Grito Filmes desde 2016, MCs hoje consolidados no cenário musical como Djonga, Xamã e Baco Exu do Blues já declamaram suas poesias em frente às câmeras. Além disso, a produtora audiovisual carioca já organizou seu próprio Slam, cuja última edição filmada ocorreu em 2017, vencida pela poeta, cantora e atriz Gabz.
Delord também conta que apesar de ter uma mãe bibliotecária e uma relação próxima com a escrita hoje em dia, não gosta de ler e brinca que é “uma escritora hipócrita”. Seu interesse por escrever veio de uma tentativa de expressar sentimentos em uma época difícil de sua vida. Com o tempo, mais inserida no mundo da poesia, Delord começou a se enxergar nos autores, e então a leitura de livros passou a fazer sentido. “Me apresentaram poetas homens brancos de elite, então a poesia que eu aprendi no começo de tudo não era uma coisa que eu me identificava, eu não me via nas escritas”, confessa. A artista relata que sua visão expandiu quando conheceu autores negros como Carolina Maria de Jesus, Machado de Assis, Cruz e Souza e Conceição Evaristo. “Eu falei ‘Nossa, eu posso estar nas prateleiras também, a minha pessoa é a minha história’.“
Leitura para quem não lê
“Ninguém incentiva o favelado a ler e escrever
Nós já nascemos preparados pra morrer”
Funkero em Favela Vive 2
Saber ler é um marcador social na sociedade brasileira. De acordo com dados da PNAD Contínua de 2022, realizada pelo IBGE, a taxa de analfabetos de 15 anos ou mais na população negra é de 7,4%, mais que o dobro da taxa na população branca de 3,4%. Entre os maiores de 60 anos, a diferença é mais expressiva, com 9,3% de analfabetos brancos para 23,3% negros. Além do recorte racial, a questão se mostra mais grave na região nordeste e se agravou de modo geral nos últimos anos.
A literatura marginal e o Rap cumprem um papel importante relacionado a essa questão, em um movimento que remete a raízes históricas, como conta o professor Jonathan. “Desde o século 12, a arte sempre foi muito elitista. Em especial a literatura, porque ela exige que você saiba ler para conseguir entender aquilo que está escrito. Os marginais, sempre foram muito importantes, porque enquanto a literatura clássica tradicional registrava a vida da monarquia, os conflitos da aristocracia etc., a literatura marginal tinha uma dimensão muito maior.” Ele lamenta a perda desses textos, pois eles costumavam ser transmitidos de forma oral. “Boa parte das pessoas que produziam literatura marginal não sabia escrever”, ele explica.
Além disso, para ler, não basta ser alfabetizado, é necessário ter interesse pela leitura, o que também se torna um obstáculo. A literatura nacional tem autores que constroem histórias mais próximas da realidade da maior parte da população brasileira, mas a existência de plataformas como o Spotify e o Youtube que permitem ouvir músicas sem custo ainda tornam o acesso às canções muito maior do que aos livros.
É isso que aborda “O rap pode funcionar melhor que o livro didático”, artigo de Victor Hugo Liporage. O texto evidencia a potência educacional da música Hip-Hop a partir do livro Cabeça de Porco. O trecho final da tese mostra que o poder do Rap como literatura não está só em seu conteúdo ou forma, mas principalmente em quem ele atinge.
“Parece simples dizer que o menor pode trocar a pistola por um livro de história, mas quem conhece sabe que não é fácil. Agora, experimenta botar o moleque pra ouvir MV Bill.”
Victor Hugo Liporage