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Misoginia em pequenas pílulas

Entenda o que é ‘red pill’, um movimento masculinista que ganha diariamente mais adeptos, saindo das redes e chegando até o cotidiano

Em fevereiro de 2023, Livia La Gatto, atriz e humorista, denunciou a ameaça de morte feita por Thiago Schutz, coach do red pill e dono da conta “manualredpill” no Instagram, na qual ele pedia para a humorista apagar um conteúdo humorístico feito utilizando uma situação relatada por ele afirmando que, caso contrário,  ela receberia “processo ou bala”.

Desde então, os olhares se voltaram para o red pill, um conteúdo até então desconhecido para muitos, mas que possui uma máxima conhecida há anos no mundo: a misoginia.

A história do red pill

Cena do filme Matrix que cunha a expressão “red pill” [Imagem: Reprodução/Matrix/YouTube]

“Você escolhe a pílula azul e a história acaba, você acorda em sua cama e acredita no que quiser. Você escolhe a pílula vermelha, continua no país das maravilhas e eu posso te mostrar até onde vai a toca do coelho.”. 

Isso é o que diz Morpheus para Neo na cena do filme Matrix, lançado em 1999 e famoso entre os fãs de ficção científica. Como Morpheus apresenta, a pílula vermelha é uma forma de enxergar a realidade em sua forma real, escapando das mentiras que cercam os personagens da obra. 

Em um grupo sobre o red pill, o termo é definido como: “O reconhecimento e a conscientização de como o feminismo, feministas e seus cavaleiros brancos afetam a sociedade”. Esses cavaleiros brancos seriam homens que por emoção ajudam mulheres sem pensar duas vezes, ignorando situações em que elas estejam erradas. Há ainda um aviso no final do conceito: “Extremamente politicamente incorreto, espere julgamento vindo da sociedade por apenas mencionar o termo”.

De forma geral, o red pill é um movimento que prega a libertação do homem através do próprio desenvolvimento. A partir do reconhecimento de um sistema que favorece as mulheres em detrimento dos homens, o público masculino é encorajado a não buscar relacionamentos amorosos ou tê-los com mulheres que estejam “à altura”. 

Aqueles que, nesse contexto, acordaram para a realidade se opõem aos “blue pills”, chamados assim por ainda estarem presos a um outro mundo. Há outras oposições, como entre os betas e os alfas, o primeiro grupo é de homens que estão sempre buscando validação de mulheres e agindo conforme a vontade das mesmas (sendo preteridos por conta disso) e o segundo de homens que possuem traços dominantes e sexualmente atrativos.

O surgimento da alt-right, ou direita alternativa,  também caminhou com o surgimento do red pill. Os movimentos da “machosfera” encontraram na direita alternativa norte-americana, núcleo de ideias conservadoras propagadas em plataformas digitais e em fóruns anônimos, pautas em comum como o antifeminismo. 

É justamente essa sobreposição que faz com que seja fácil transitar entre os dois mundos. Essa noção é explicada na fala de Michele Prado, autora do livro Red pill – Radicalização e Extremismo: “A ideia de uma ordem social hierarquizada por gênero está muito vinculada a sistemas sociais hierárquicos. Você começa a criar empatia por regimes fascistas e neonazistas sem perceber e depois começa a pensar que na época da Alemanha nazista era melhor do que hoje na democracia, mas por quê? Porque você está desejando uma ordem social hierarquizada por gênero e você se radicaliza nisso e pode chegar ao extremismo violento.”

No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro em 2018 e a onda de conservadorismo apontam um cenário parecido com o do exterior, onde políticas extremistas de direita acompanharam o crescimento de bolhas red pill. [Imagem: Reprodução/Eduardo Bolsonaro/Twitter]

Red pill em fóruns

Aviso antes de entrar na comunidade afirmando que o fórum é dedicado a conteúdo chocante ou extremamente ofensivo, mesmo assim é possível acessar as postagens. [Imagem: Reprodução/Reddit]

Criado em 2012, a comunidade de red pill no Reddit (rede que permite que usuários postem conteúdo de forma anônima) apresenta como descrição “Discussão de estratégia sexual em uma cultura cada vez mais carente de identidade positiva para homens”. No fórum o conteúdo é variado, tendo desde dicas gerais para melhoria pessoal até “análises de campo”, na qual as pessoas relatam as tentativas de flerte realizadas.

Tradução da discussão: Quebrando o estilo de vida do “Weekend Warrior”(aventureiro de final de semana): Como parar de beber e construir uma vida social verdadeira. [Imagem: Reprodução/Reddit]

Discussão no tópico de Análise de campo, onde são discutidas estratégias de flerte, na imagem: 2 abordagens – tentei “sou um garçom” para começar – um trio e uma dupla na praça. [Imagem: Reprodução/Reddit]

Nas dicas de conteúdo para iniciantes, o fórum recomenda entre os textos uma espécie de manifesto feito em novembro de 2012 e o relato de uma pessoa identificada como “Michael”.

A seção do manifesto começa com a pergunta “Por que nós [fórum TheRedPill] crescemos tão rápido?” e responde apontando que homens estão descobrindo que o mundo ao redor mudou e não é o mesmo da época de seus pais. “[…] O que seus pais ensinaram, o que a televisão e filmes de garota ensinaram, o que a Igreja e a escola ensinou… está tudo errado”.

O relato de Michael apresenta pontos em comum com o manifesto. Ao contar sua história pessoal, ele afirma que fez tudo “certo” (cresceu em um lar católico, frequenta a academia de 3 a 4 vezes por semana, tem um bom emprego e boa renda, um carro de luxo e um apartamento caro), mas que passou por um período no qual foi extremamente rejeitado. Frequentou a mesma universidade que os pais e tinha a esperança de viver o mesmo que eles, uma história de amor, pois eles se conheceram lá, mas afirma que as mulheres do local, jovens em sua maioria, apenas queriam sexo casual e rejeitavam todas as suas investidas.

Em um conto recheado de descrições sobre como era rejeitado durante esse período e como as mulheres estavam em busca de parceiros passageiros e não tinham olhos para ele, a narrativa amarga aponta o fato de após os 30 anos as mulheres começarem a procurá-lo, pois a partir dessa idade elas começam a perceber que não tem mais o poder de antigamente e precisam encontrar um parceiro para o resto da vida. Esse ponto recebe um termo: “the wall” – a parede – “ocorre geralmente como um choque para as mulheres quando elas percebem que seus poderes sobre os homens eram temporários e que sua beleza está indo embora”.

“Eu não vou casar com uma dessas trintonas envelhecidas que com certeza tem um plano. Eu quero ser casado apenas uma vez. O casamento deve durar para sempre. Eu não serei um marido iniciante para nenhuma dessas mulheres usadas. Eu não posso contar o número de homens que conheci que casaram tarde e foram recompensados perdendo tudo que eles passaram a vida construindo. Do meu ponto de vista eu tenho as seguintes escolhas: casar com uma mulher com mais de trinta anos, casar com uma na casa dos vinte anos, ser solteiro e aproveitar meu dinheiro”, e o relato é finalizado. 

Michael não é o único a passar por rejeições amorosas e seu relato encontra um eco em diversos homens ao redor do mundo. É possível inclusive classificá-lo como o típico “cara legal”: alguém que tem grandes expectativas amorosas e pode parecer o par perfeito, mas nunca é escolhido, muito provavelmente por jogar suas fantasias nas mulheres ao redor, resultando em uma pessoa extremamente ressentida e que acredita ser a vítima da situação.

Nesse caso, o ressentimento gerou radicalização. A fantasia perpetuada pelos parentes, a vida considerada perfeita se estiver nos moldes heteronormativos, quando não alcançada gera a sensação de que algo está errado. Esse sentimento é encarado combatendo o inimigo, as mulheres que não dão o devido valor ao homem.

A presença em ‘mesacasts’

Episódio número 50 do mesacast RedCast que contou com a presença de Thiago Schutz. [Imagem: Reprodução/YouTube]

“Nosso trabalho é trazer a red pill para a sociedade. Tem mulher que fala pra mim ‘puta conteúdo escroto’, é minha amiga, a gente tá tentando salvar uma sociedade podre. Agradece a gente daqui a 5 anos, não vejo outra forma de fazer homem e mulher enxergar a sociedade que não seja pela red pill”.

Essa é uma das falas de Thiago Schutz, dono do perfil no Instagram “manualredpill” que conta com mais de 300 mil seguidores. Um dos primeiros assuntos abordados no começo do vídeo é a marca de 100 mil seguidores alcançada por Thiago, seguida por uma reflexão sobre a rede social ser menos liberal com esse conteúdo em comparação com o YouTube, visto como uma plataforma mais “tolerante”. Os presentes na mesa também discutiram como o Instagram é uma rede “feminina e feminista”, afirmando que as mulheres foram as primeiras a postarem suas fotos e que só conseguem seguidores rapidamente mostrando o corpo.

O RedCast é um mesacast – formato de podcast onde a gravação é transmitida ao vivo em plataformas como Twitch e YouTube e é acompanhada por vídeo – que recebe convidados com algum tipo de contato com o red pill, recebendo dinheiro daqueles que estão acompanhando em tempo real.

Mulheres também participam dos comentários da live, nesse caso, vsm significa “valor sexual de mercado”, um demonstrativo do poder sexual de uma pessoa. [Imagem: Reprodução/YouTube]

Mensagem enviada com a contribuição de 20 reais, dessa forma há uma possibilidade maior do texto ser lido. [Imagem: Reprodução/YouTube]

O fórum em inglês TheRedPill no Reddit e o conteúdo que circula em plataformas brasileiras é parecido, o acesso a esse conteúdo é fácil e em uma era na qual todos podem ser influenciadores digitais, o número dessas páginas cresce.

O criador da conta “@sejaredpill” no Instagram contou como entrou em contato com o conteúdo red pill: “A primeira vez que vi foi no canal do Copini, só que ele falava sobre sair da matrix em uma perspectiva mais ampla, e não apenas voltado à relacionamentos. Particularmente eu aprecio mais a abordagem dele: red pill pra vida como um todo – relacionamento, profissional, pessoal, política, espiritual, etc”.

Sobre seu público alvo, ele afirmou: “Sei que muitos vieram achando que seria mais um lugar onde só falam mal de mulheres. Muitos procuram uma válvula de escape para suas frustrações e até uma pseudo justificativa para seus fracassos amorosos. Porém, através das caixinhas de perguntas, tento conscientizar para o fato de que não vivemos em uma guerra dos sexos. Coloco o dedo na ferida e mostro que muitos deles estão indo pela via errada. Prova disso é que muitas mulheres curtem, perguntam e falam comigo no direct.” 

Mesmo após ver apenas um vídeo e sem fazer login no YouTube a plataforma recomenda outros conteúdos parecidos. [Imagem: Reprodução/YouTube]

Michele Prado ressaltou o papel da internet na propagação desse tipo de conteúdo. De acordo com ela, a internet facilitou o contato com conteúdos que antes eram de difícil acesso e que não estavam inseridos no debate público, tornando possível a divulgação de ideias da direita alternativa. 

“E aí dentro dessas próprias dinâmicas sociais que acontecem com as redes e plataformas há a importância das câmaras de eco e das bolhas. Quando você está em uma câmara de eco, você tem ali o centro do conhecimento e pessoas que pensam da mesma forma, você só recebe aquele tipo de conteúdo e isso faz você se radicalizar cada vez mais”, complementou.

Os reflexos na violência contra mulheres

No dia 12 de agosto de 2021, em Plymouth, Inglaterra, Jake Davison atirou contra 5 pessoas antes de cometer suicídio. Davison se considerava “incel” (celibatário involuntário, uma subcultura composta por pessoas que afirmam não conseguir encontrar um parceiro, apesar de desejarem, com algumas disseminando discursos de ódio contra mulheres, culpando-as pelos fracassos amorosos) e participava ativamente de fóruns no Reddit. Em seu canal do YouTube ele cita outra subcultura, a “black pill”, que utiliza visões extremamente fatalistas sobre o relacionamento com mulheres.

“No dia da retribuição, vou entrar na casa de fraternidade mais agitada da universidade e vou matar cada uma das vagabundas dissimuladas e frescas que eu encontrar lá. Todas essas meninas que eu desejei tanto. Todas elas me rejeitaram e me olharam como um homem inferior sempre que eu tentava algo com elas, enquanto se atiravam nos braços dos brutamontes. Terei grande prazer em assassinar cada uma de vocês. Vocês verão que eu sou, de fato, o mais superior de todos os machos alfa. Sim, após matar todas as meninas da fraternidade, vou seguir pelas ruas de Isla Vista e matar todas as pessoas que eu encontrar pelo caminho. Todos os caras populares que vivem suas vidas de prazer hedonista enquanto eu apodrecia na solidão durante todos esses anos. Eles sempre me rejeitaram, todas as vezes que eu quis me juntar a eles, e me trataram como um rato.”. Esse é um trecho do vídeo postado por Elliot Rodger em seu canal do YouTube antes de matar sete pessoas e ferir outras 14 em Isla Vista, nos Estados Unidos, outro caso célebre no qual a misoginia levou a um massacre. 

No Brasil, é possível perceber no “Massacre de Realengo” – massacre escolar ocorrido em 2011 no Rio de Janeiro – o caráter misógino. 10 das 12 vítimas eram mulheres e acredita-se que os tiros disparados contra os homens foram acidentais.

Esses são exemplos extremos do uso do discurso masculinista, mas o contato com conteúdo que coloque as mulheres como vilãs e questione conquistas como a Lei Maria da Penha – através de discursos que afirmem que a lei é usada de forma a dar mais poder para as mulheres – faz com que seja possível para essas pessoas enxergar violências de gênero como algo do cotidiano e coloca vítimas dessas agressões em um eterno estado de alerta e insegurança.

Bruna, uma das vítimas de violência de gênero no Brasil, afirmou que a situação de assédio sexual sofrida no passado trouxe consequências para sua vida atual, citando principalmente o medo de iniciar novos relacionamentos: “Por conta da situação do passado eu sempre penso algumas vezes antes de me relacionar com alguém, temo que aconteça novamente.”. 

Ela finalizou abordando o red pill: “Acredito que muitas das coisas que a gente vê na internet podem ser refletidas na vida real. Você começa a consumir conteúdos extremistas e acaba enxergando aquilo como normal.”

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