A dança clássica é historicamente inacessível. Criada e mantida em palácios por boa parte de sua existência, ela teve numerosas tentativas de popularização, porém mantém sua aura hostil e inabordável que distancia o público geral. Por isso, nãodançarinos e não apreciadores da dança entram em contato com ela não por espetáculos e performances em si, mas por filmes. A visão popular dessa arte é moldada pela representação que é feita dela no cinema. Mas qual é o impacto disso quando a infeliz maioria dos filmes narrativos sobre dança é decididamente péssima?
O cinema e a dança têm um histórico longo de interações ao passar dos anos, sendo o universo dos dançarinos aparentemente inesgotável de inspiração para personagens e enredos. Durante o aperfeiçoamento das técnicas de filmagem e captação de som e vídeo, dançarinos foram objetos frequentes de reprodução — o que é entendível, já que a dança é, puramente, movimento, tal como é o vídeo. Ambas são técnicas que, quando bem utilizadas, produzem arte, e em união, são capazes de gerar imagens de tirar o fôlego. É quando um roteiro e um enredo além da dança são adicionados que os problemas geralmente se iniciam.
Sobre dançarinos, por não-dançarinos: estórias da dança como uma visão de fora
Quando essas duas artes se combinam, quase sempre é por instrumentalização de um diretor, roteirista e câmera alheios à dança. Uma das primeiras filmagens deste gênero foi em 1894 por Thomas Edison, o empresário e inventor, que capturou Ruth St. Dennis, pioneira da dança moderna americana, em ação. Em 1953, Vicente Minnelli dirigiu um filme musical com Fred Astaire no papel de uma estrela decadente da Broadway e Cyd Charisse no papel de uma bailarina clássica — A Roda da Fortuna (The Bandwagon, 1953). No primeiro encontro de ambos, o personagem de Astaire, amedrontado pela altura da bailarina, pergunta “Você sempre usa sapatos de salto?”, ao que ela responde “Não. Às vezes sapatilhas de ponta”. Talvez a piada original seja apenas sobre a altura, mas aí vemos indícios iniciais da futuramente excessiva estereotipagem de dançarinos no cinema.
Por meio de inúmeras representações similares no cinema, construiu-se uma espécie de mitologia em torno da figura do dançarino, especialmente quando se trata do ballet. O indivíduo bailarino é altamente disciplinado, centrado e perfeccionista; seus dias giram em torno de seu trabalho na dança e ele está sempre à margem de um colapso mental.
Talvez você reconheça essa descrição na personagem de Natalie Portman em Cisne Negro (Black Swan, 2010), filme que liderou uma onda de atenção e investimento no universo do ballet pela mídia popular. Portman, ao interpretar a jovem caracterizada como “obcecada pela dança”, garantiu um Oscar de Melhor Atriz e foi aclamada pela crítica e o público geral pela sua dedicação ao personagem. Grande parte da divulgação do filme também se baseou no intenso empenho de Portman, que alegadamente aprendeu o ballet clássico em meros meses de treinamento, para mostrar uma performance digna de uma bailarina profissional no longa.
Cisne Negro e Portman foram por meses o assunto mais quente do cinema, e não lhes foram poupados elogios. No entanto, nem todos foram contentes com o filme. Logo após seu lançamento, Sarah Lane, solista na companhia americana American Ballet Theatre e dublê de Natalie no longa, foi à imprensa denunciar o apagamento coletivo dos créditos que merecia por sua dança. Ela alega que, enquanto filmou a imensa maioria das cenas de corpo inteiro que mostravam os passos, Portman levou todo o crédito. Quem foi logo à defesa da atriz, alegando que, como intensamente notificado à imprensa, ela performou a maior parte das cenas de dança, foi Benjamin Millepied, coreógrafo do filme — e marido de Natalie Portman.
Essa controvérsia expõe mais uma complicação relacionada a filmes de dança: o fato de, cada vez mais, não-dançarinos levarem papéis que exijam conhecimentos da técnica. Um exemplo recente é o aclamado musical La La Land: Cantando Estações (La La Land, 2016), com Ryan Gosling e Emma Stone. Apesar de terem conhecimentos extremamente básicos de canto e dança, a boa reputação e conhecimento público dos atores os garantiram papéis que poderiam ter sido desempenhados por cantores e dançarinos — não desmerecendo a performance dos atores citados.
Isso porque, historicamente, grande parte dos dançarinos também se interessam por atuar, embora sua baixa popularidade entre o público não interessado em dança os permita apenas papéis secundários, terciários, ou simplesmente medíocres. Foi o que fizeram Anna Pavlova, uma das bailarinas de maior renome mundial da história do ballet, em seu único filme, The Dumb Girl of Portici (1916) e Evgenia Obraztsova, prima bailarina das duas maiores companhias russas, em Bonecas Russas (Russian Dolls, 2005). Alguns poderiam alegar que tais decisões são feitas porque os atores de melhor encaixe em papéis de destaque simplesmente não são dançarinos, ou que simplesmente não se encontram indivíduos com a mesma proficiência em ambas as áreas. No entanto, nomes de destaque como Zoe Saldana, Audrey Hepburn, Jamie Bell e o próprio Fred Astaire foram treinados em dança mesmo anteriormente à suas carreiras em atuação. Isso prova que dançarinos podem atuar — só não são oferecidos oportunidades para isto.
Mais precisos, menos populares: os documentários
Até agora, vimos que filmes sobre dança, em sua imensa maioria, simplesmente não envolvem pessoas com experiência nela. Se anteriormente isso se restringia à equipe de produção, agora se estende às próprias estrelas, que são selecionadas não por sua proficiência em dança, mas por sua fama em geral.
Sem uma opinião “de dentro” do universo da dança, o enredo e a performance acabam se baseando em lugares-comuns, estereótipos e suposições, criando representações que cada vez mais se distanciam da realidade dos bailarinos e cada vez mais distorcem a visão do público geral sobre o que realmente importa na dança — a expressão, a arte, o esforço e a satisfação.
Como possível contraponto, existem os documentários. São neles que vemos dançarinos realmente tomarem espaço nas telas, mostrando suas personalidades genuínas e seu dia a dia não com o estereótipo cansado dos filmes narrativos, mas com a diversidade que realmente existe. Exemplos de destaque são Primeira posição (First position, 2011), que segue a preparação de bailarinos de origens e idades diversas para uma das maiores competições de ballet clássico e contemporâneo pré-profissional dos Estados Unidos, a Youth America Grand Prix; e o mais recente Reset (2017), que segue a curta trajetória de Benjamin Millepied — o já citado marido de Natalie Portman — como diretor do renomado Paris Opera Ballet (cuja resenha foi feita anteriormente pelo Cinéfilos).
Embora os documentários geralmente contenham representações mais certeiras do universo da dança, eles quase sempre se mantém dentro deste universo. A maior parte do público desses filmes são, realmente, dançarinos,que desejam se ver melhor representados e se identificar com pelo menos algum produto da mídia, já que os filmes narrativos tão frequentemente falham nisso. Os documentários geralmente têm dificuldade em sair deste nicho e não conseguem levar ao público geral a visão realista que contêm sobre a dança.
Bailarinos e a ânsia por validação: como a dança passou a ser menos sobre arte e mais sobre dor
Uma concepção popular da dança também se baseia na sua visão como uma arte “feminina”, e isso é intensificado quando se trata do ballet. E, como tudo que se relaciona ao feminino, também passa a ser vista como fraco, fácil e até mesmo fútil. Você já ouviu a frase, ou a viu estampada em regatas de academia: “Está difícil? Faça ballet”. Nada faz o sangue de bailarinos ferver como ter seu esforço diário desconsiderado.
Para reverter este pré-conceito, dançarinos tornaram-se mais e mais vocais sobre as dificuldades e as dores trazidas por seu ofício, em busca de uma merecida validação do público geral. Os produtores midiáticos entenderam isso como uma oportunidade de representar a dança de uma maneira mais dramática e brutal e, ao mesmo tempo, lucrar com o público que a pratica. Intensifica-se, então, a imagem do dançarino como obcecado, perfeccionista e perturbado, e do meio como competitivo e hostil. A dança representada pelos filmes e séries se distancia cada vez mais da arte, da diversão, da pura satisfação em se expressar pelo movimento — o que poderia, realmente, fascinar os espectadores e trazê-los para dentro deste universo.
O indivíduo dançarino agora é visto como, obrigatoriamente, fraco e afeminado (na concepção ainda, infelizmente, negativa da palavra), ou rígidos e bitolados. Perceba que nestas descrições eles raramente são vistos como artistas, ou, ainda, como pessoas comuns.
Como já vimos, é o cinema que perpetua qualquer imagem que se tenha sobre a dança, já que é cada vez menos comum a interação direta do público com ela, não intermediada por algum tipo de mídia. Com essas imagens sendo propagadas, é entendível que cada vez mais se possa notar uma resistência à dança. Por que alguém iria querer interagir com algo que tão raramente é visto como positivo?
Por que é tão difícil construir narrativas originais em torno da dança?
O problema relacionado a dança no cinema não está relacionado a oferta de filmes. A dança sempre esteve e sempre estará presente como elemento-chave de diversas obras. A demanda não é de mais representação, e sim por melhores representações.
Atualmente, pode-se quebrar grande parte dos filmes de dança em pontos básicos:
– são direcionados ao público jovem;
– retratam dançarinos “underground” ou “marginais”, que ou querem se inserir no meio profissional ou ganhar alguma competição, OU
– retratam dançarinos masculinos do estilo bad boy que, por meio de danças sensuais, seduzem uma personagem “certinha”;
– suas cenas de danças são mal coreografadas e não trazem incremento algum ao enredo, sendo completamente vazias de emoção ou significado, precisando ser explicadas ou preenchidas por diálogos mal construídos.
A dança, sendo um meio extremamente diverso em gênero, em abordagem e em visual, não pode ser o motivo para roteiros tão não originais e água-com-açúcar que verificamos em títulos do cinema sobre ela. É a compreensão — ou a falta de — da dança como fonte de inspiração e como veículo narrativo que atrapalha a saída desse gênero cinematográfico da mediocridade.
Parece ser uma concepção popular que produções sobre dança são filmes comuns, com um enredo já pronto, que por acaso trazem, entre uma cena e outra, uma sequência coreografada de passos. Como se, por si própria, a dança não pudesse carregar a história, mostrar desenvolvimento de personagens e ser, por ela mesma, um acontecimento; mas isto não é verdade. O corpo de dança é tão ativo quanto aquele que anda e fala, ou talvez mais. Em um dueto, dois dançarinos podem criar uma relação de olhar, toque e movimento que tem a capacidade dizer muito mais que qualquer linha de roteiro. Para um dançarino, seja ele profissional ou amador, a dança não é um respiro entre um acontecimento ou outro de sua vida; é durante ela que o bailarino melhor se conhece como artista, como pessoa, como corpo. Ao errar os passos, ele percebe suas fraquezas, e ao acertá-los, a satisfação lhe faz sentir que tudo valeu a pena. Em seus passos favoritos, ele não sente apenas frustração e necessidade de acertar. Acima de tudo, ele se diverte. O dançarino diz, por meio dos movimentos, o que está em sua mente, o que está em seu coração. A dança é, além de tudo o que lhe é atribuído, uma história. Ela pode, e deve, ser usada como tal.
Recuperar a harmonia entre estas duas formas de arte — a dança e o cinema — é maneira certa de produzir novas maravilhas, como já foi feito em clássicos como Os Sapatinhos Vermelhos (The Red Shoes, 1948), o simbólico Footloose (1984), o famosíssimo Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952) e o mais atual e queridinho dos dançarinos, Sob a Luz da Fama (Center Stage, 2000). É uma parceria que tem tudo para dar certo, se ambos os elementos forem bem compreendidos e respeitados — o que não vem ocorrendo por parte do cinema. Caso isso não aconteça, o que poderia ser uma união espetacular vai continuar a gerar apenas novos filmes dignos de sessão da tarde e do final do catálogo da Netflix — e que continuará a fazer dançarinos em todo lugar terem receio de se proclamarem como tal e serem imediatamente vistos como Natalie Portman enlouquecendo em Cisne Negro.
por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com