É possível que 12 milhões de pessoas dividam harmonicamente a mesma área? E se acrescentarmos a essa equação quase 500 anos de história, uma diversidade cultural incalculável e a força dos interesses econômicos? A dinâmica de ocupação do espaço urbano em uma megalópole como São Paulo nunca será uma questão simples. Ao contrário do que a estaticidade dos edifícios possa transparecer, a mudança está sempre em curso. A cada hora que passa, chegam a São Paulo milhares de novos moradores sedentos por um lugar para chamar de casa. Os apartamentos entram e saem de inventários. Pessoas dormem na rua enquanto outras acumulam metros quadrados.
Na Bela Vista, um dos bairros da capital paulista, essa dinâmica é marcada pelos contrastes. Localizado na região do centro expandido de São Paulo, ao mesmo tempo que o distrito abriga um dos aluguéis mais caros da cidade, os cortiços e as ocupações preenchem seus quarteirões. Compartilhando a mesma rua, de uma casa para outra moram pessoas com perfis e demandas divergentes, que precisam lutar por seu lugar no espaço urbano.
Somadas às contradições econômicas, a Bela Vista é também um lugar de várias culturas e origens. Ao norte, nos limites da Avenida Nove de Julho, o bairro teve sua ocupação feita por ex-escravizados, que construíram nele o quilombo urbano Saracura – dessa tradição, resiste a escola de samba Vai-Vai, uma das mais tradicionais da cidade. Na mesma área, há o Bixiga, que recebeu um grande contingente de imigrantes italianos no início do século XX e representa hoje um importante ponto turístico. Já ao sudoeste, o Morro dos Ingleses é uma microrregião que concentra uma população de alta renda.
Nos últimos anos, assim como o restante do centro da cidade, o bairro avançou no processo de especulação imobiliária. Em razão do aumento progressivo do custo de vida, a expectativa é que os moradores tradicionais, com menor capital econômico, mudem para áreas mais periféricas. Até lá, os vizinhos antigos convivem com os novos. Os casarões históricos são pouco a pouco derrubados para dar espaço a prédios. E as pessoas vão se acostumando a conviver com as complexidades que acompanham a vida em uma grande metrópole.
Bela Vista ou Bixiga: história e divisões
A história da Bela Vista começa com a formação do Bixiga, região mais antiga do bairro. A historiadora Danielle Franco, professora e pesquisadora do Instituto Bixiga, explica que no século XIX a região era considerada um território semi rural, onde viviam os povos da floresta – indígenas, quilombolas, caipiras e roceiros.
Neste período, às margens do córrego Saracura – onde hoje passa a Avenida 9 de Julho – ficava o quilombo urbano Saracura, um dos maiores quilombos urbanos da São Paulo Colonial e Imperial, responsável por acolher escravizados e ex-escravizados que se deslocavam para a cidade. Por essa razão, é impossível dissociar a história da região da cultura negra. “Juntamente com as áreas da Santa Efigênia, Liberdade e Barra Funda, o Bixiga também é um importante território negro. Os jornais falavam no começo do século XX, em 1907, que [o bairro] era um pedaço da África”, contextualiza Danielle.
Segundo a historiadora, a região começa a se urbanizar na virada do século, com a expansão da economia cafeicultora paulista e o início de uma produção industrial, que levaram à explosão demográfica da cidade de São Paulo. “Há uma explosão urbana no final do século XIX e a cidade vai receber mais de 200 mil pessoas, sendo boa parte de imigrantes”.
Com a chegada dos estrangeiros, o bairro começa a ganhar a configuração que tem hoje. À época, o governo brasileiro subsidiava a vinda de europeus para o país, a fim de substituir a mão de obra dos escravizados após a Lei Áurea. Atraídos pelos baixos preços de moradia às margens do Saracura, os imigrantes italianos, que tinham mais acesso às oportunidades de trabalho e renda que a população negra tradicional, começam a ocupar o bairro. “É quando vai acontecer um boom da especulação imobiliária, tornando-se atraente para o capital a multiplicação dos empreendimentos imobiliários, como a construção de casas, vilas populares. E assim os cantos do Bixiga foram loteados em 1878, data que é celebrada como a fundação da região.”
A atração do capital imobiliário levou à mudança do nome da região – “alguns loteadores entraram com um pedido na Câmara Municipal para alterar o nome do bairro. Eles queriam distanciar a identidade associada ao Bixiga, de um lugar que é um quilombo, de cortiços, de gente da classe trabalhadora e pobre, da ideia de um novo loteamento que estava surgindo”. Assim, em dezembro de 1910 a Prefeitura de São Paulo homologou a substituição oficial do nome “Bixiga” para “Bela Vista”.
No mesmo período, em 1901, imigrantes ingleses e escoceses fundaram, na divisa com a Avenida Paulista, o São Paulo Country Club. O clube, que recebia visitantes internacionais para partidas de golfe, dá início ao que hoje compreende o Morro dos Ingleses, parte alta do Bela Vista que concentra diversas instituições culturais.
Especulação imobiliária e racismo
Bixiga hoje é só arranha-céu
E não se vê mais a luz da lua
Mas o vai-vai está firme no pedaço
É tradição e o samba continua
Beth Carvalho – “Tradição”
Danielle Franco caracteriza o Bixiga (ou Bela Vista) como “um chão de muitos povos”, que coexistem e se misturam no espaço urbano, formando uma identidade singular, a que Armandinho Puglisi chamava de estado de espírito – “O Bixiga é um estado de espírito. Você sente quando está no Bixiga, você cheira à Bixiga”.
Em contrapartida a essa energia de celebração da cultura do bairro, há a controvérsia da sobreposição da cultura negra pela cultura italiana, ligada aos interesses do capital imobiliário em tornar a região mais atrativa economicamente.
Como citado pela historiadora do Instituto Bixiga, a organização do bairro foi feita sob um projeto de embranquecimento populacional, que favoreceu a mudança da população negra para bairros mais afastados. No artigo “Lembrança eu tenho da Saracura: notas sobre a população negra e as reconfigurações urbanas no bairro do Bexiga”, a antropóloga Larissa Nascimento se aprofunda no assunto. Ela escreve que no Brasil, apesar de não haver uma política oficial de discriminação racial, são movidos processos invisíveis de segregação, que privilegiam a população branca em detrimento dos negros. A forma com que a cidade de São Paulo foi ocupada e a valorização imobiliária da Bela Vista são exemplos disso.
“Apesar da literatura verificar a presença de negros antes mesmo da chegada dos imigrantes, representando um aspecto importante em relação à demografia da região, seu protagonismo na constituição da Bela Vista é pouco aprofundado e, consequentemente, há uma desvalorização dos aspectos culturais de matriz afro-brasileira”. Sobre isso, Larissa explica que houve um apagamento cultural da presença negra na região para que fosse formada a ideia do Bixiga como uma área exclusivamente italiana, uma visão que favorece a atração de turistas.
Em sintonia com a questão turística, assim como em várias áreas do centro, o bairro vive uma outra onda de segregação: a especulação imobiliária. A antropóloga explica que a população não-branca – negra e nordestina – que mora no bairro está concentrada nos cortiços, que permitem uma vida com mais facilidade de acesso à serviços públicos ao trabalho, sem custos exorbitantes de aluguel.
Apesar disso, desde a década de 1980, há uma política de desocupação desses cortiços na cidade de São Paulo, que faz com que seus moradores se mudem para as regiões distantes do centro. “Muitos cortiços do Bexiga foram derrubados para a construção de habitações verticalizadas voltadas aos setores favorecidos economicamente, e assim, um grande número de moradores negros e pobres que habitavam o bairro tiveram que se deslocar para regiões periféricas da cidade, com custos mais baixos”.
Hoje, a política de especulação avança sobre a Bela Vista. Segundo um levantamento do FipeZap, entre 2013 e 2021, o m² do Bixiga teve um dos maiores esclarecimentos da capital. Isto é, em 2013, o m² residencial da região custava em média R$7.133,00, o 37º de 113 bairros, menos de uma década depois, o valor saltou para R$9.924,00, tornando-se o 8º mais caro de São Paulo, um salto de 29 posições no ranking.
Se por um lado, não há apenas um fator que justifique a intensificação da valorização imobiliária no bairro, Larissa Nascimento explica que é impossível desassociá-la das práticas políticas que favorecem o capital econômico. Como exemplos disso, ela menciona a construção do Metrô Linha 6 – Laranja (São Joaquim – Brasilândia), que a princípio terá uma estação localizada na escola de samba Vai-Vai. Ela finaliza: “na Bela Vista, é nítido o conflito mediante o planejamento urbano de uma área de localização privilegiada, tensões atravessadas também pelo marcador racial. Onde os espaços de referência da população negra são estigmatizados e marginalizados”.
O que pensam os moradores
“O pessoal [do comércio] ficou super empolgado de ver esse público, por ser uma galera com mais grana. Concordo que seja bom, mas isso tem um outro lado também: só aumenta o aluguel. Essa é um pouco da lógica de São Paulo.”
Maria Luiza, moradora da metrópole
Com a finalização das obras do metrô e elevação cada vez maior do preço da moradia na Bela Vista, a expectativa é que, em pouco tempo, quem é mais pobre seja forçado a dar lugar para novos moradores de classe média. Mas, enquanto a mudança ainda está em processo, grupos contrastantes precisam dividir a mesma região. Nesse contexto, surgem as divergências nas experiências dos moradores e os conflitos inerentes à disputa do espaço.
Parte I: diferentes formas de morar no mesmo bairro
Maria Luiza* é uma antiga inquilina de pensionatos e amiga de pessoas que habitam pensões e ocupações na região. Para ela, existe uma divergência entre a forma como os novos moradores usufruem o bairro e o estilo de vida que ela e seus amigos conhecem.
A exemplo das atividades de lazer e ao contrário da classe média, que aproveita do fácil acesso para usufruir da cultura boêmia das Avenidas 13 de maio e 9 de Julho e dos espaços tradicionais de cultura, como o Sesc Bela Vista, o lazer de quem mora nas pensões acontece na rua e nos botequins próximos. “A vida é muito pesada. Então assim, você quer ganhar grana. Não tem essa coisa da vida cultural, mas dá para botar uma caixa de som, botar um forró, jogar uma sinuca e é isso”. Quando perguntada do porquê dessa diferença, ela diz: “acho que tem uma coisa de não se reconhecer nessa ideia tradicional de cultura e lazer”.
Maria Luiza acrescenta que a presença de um novo perfil de residentes no bairro é uma ameaça aos antigos moradores, pois além de aumentar o valor do aluguel e dos serviços, a vinda dessas pessoas é antecedida pela destruição de pensões. “Derrubaram várias casas antigas, pelo menos quatro, e a maioria delas eram do mesmo dono. Viraram prédios de aluguel, de quitinete, mas com uma roupagem mais classe média. São pequenas quitinetes de 20-25m², algumas já mobiliadas e bem mais caras que o dobro do preço da pensão”.
Ela ainda alerta: “O pessoal [do comércio] ficou super empolgado de ver esse público, por ser uma galera com mais grana. Concordo que seja bom, mas isso tem um outro lado também: só aumenta o aluguel. Essa é um pouco da lógica de São Paulo.”
Parte II: para quem está no topo, é difícil ver a base
Nem todos os moradores compartilham da visão de Maria Luiza. Valéria Borges nasceu e passou boa parte da sua vida na Bela Vista. Ela narra que o contraste de pensões e edifícios de classe média sempre foi característica na região, mas essa separação não acontecia como hoje. Quando era criança, na década de 1960, independente de onde cada um morava, todo mundo se encontrava na rua para brincar junto. “Eu tinha uma amiga que morava em um cortiço. Ia direto lá na casa dela e não tinha nenhum problema nisso.”
A vida de Valéria tomou rumos diferentes de sua amiga que morava no cortiço. Enquanto a entrevistada se formou em jornalismo e continuou morando na região, sua vizinha se mudou para longe, e a pensão onde morava desapareceu. Ela sabe que essa situação não é atípica na história da região. Quando era mais jovem, conta que havia uma favela próxima à sua casa, onde ia brincar quando chovia e as ruas de terra se transformavam em lama. Assim como as pensões próximas ao seu prédio, a comunidade foi pouco a pouco sendo substituída por estabelecimentos comerciais, residências domiciliares e prédios.
Mesmo assim, sua relação com o bairro permanece inalterada. Após perder o emprego em uma emissora de televisão, a jornalista abandonou sua casa na praia e voltou a morar no apartamento da mãe, nas proximidades da Avenida Paulista. Mesmo de longe, ela conta que sempre foi apaixonada pelo bairro e que guarda memórias carinhosas de quando descia a rua São Vicente de carrinho de rolimã e frequentava os bares da Avenida Nove de Julho.
Assim como ela, Cristiano Vallejo gosta muito de morar na Bela Vista. O estudante, que vive há menos de um ano no Morro dos Ingleses, região mais nobre do bairro, conhece só de passagem as pensões locais, concentradas na parte baixa. Apesar disso, ele diz ter um bom relacionamento com seus vizinhos e pensa não haver muita separação entre os moradores.
“Sobre essa questão de segregação, eu acho que o legal da Bela Vista é que as coisas parecem ser menos segregadas do que o antigo bairro onde eu morava. Aqui tudo acaba sendo uma coisa só. Tem uns barzinhos que, na verdade, estão mais para botecos onde a gente entra em contato, realmente, com o pessoal do bairro. Enfim, não tem muito essa segregação, eu não vejo isso muito aqui”.
Apesar de não conhecer muitos moradores da região, o estudante diz ter bastante contato com os funcionários do condomínio, com quem ele tem orgulho de manter a cordialidade. Ele não sabe dizer se os funcionários compartilham com ele o agrado pelo Bela Vista, tampouco se eles também vivem na região.
Na fala dos dois moradores, é perceptível o privilégio retido pela classe média de não ter envolvimento com os conflitos ao seu redor e, no caso de Valéria, de poder se apoderar do espaço e da memória. Fica evidente que, para quem está em uma posição confortável, os problemas daqueles que sofrem com a opressão imposta pela especulação imobiliária se tornam invisíveis.
Parte III: para quem não tem escolha, é uma questão de suportar.
Para Angélica* morar no bairro não foi uma escolha. Após perder o emprego na escola onde trabalhava, ela e os cinco filhos foram despejados do imóvel alugado na Zona Leste. Depois disso, a família passou a viver em um quarto de um casarão ocupado na região da Bela Vista. “Gostar de morar no bairro!? Eu não tenho que gostar! Quando a gente não tem opção, a gente tem que viver onde dá. Enquanto não resolver minha questão financeira, tenho que suportar o lugar onde moro”.
Do trabalho para casa e de casa para o trabalho, ela não tem interesse em interagir com a vizinhança. Seus filhos até podem sair na rua para brincar com os vizinhos, mas ela sai do quarto somente se for para ir ao mercado. “No final de semana, quando eu estou em casa, fico assistindo à Netflix. É o momento para limpar a casa, fazer essas coisas. Eu tenho outras amizades fora daqui. Não quero saber nada desse meio.”
Sem amigos no bairro ou na pensão onde mora, Angélica prefere ficar isolada. Apesar de achar positivo a disponibilidade de trabalho nos arredores e os serviços que o bairro oferece, como a proximidade das escolas para os filhos, ela sonha em poder pagar aluguel para se mudar logo. “Se eu não tivesse sido despejada, eu continuaria lá na Zona Leste. Entendeu!?”
Diferente de Valéria e Cristiano, para Angélica é muito difícil estabelecer vínculos com a vizinhança. Seu momento de dificuldade econômica e a falta de conforto na pensão onde vive tornam sua experiência quase insuportável. Nesse sentido, mesmo as facilidades da região central ou as opções de lazer com os vizinhos não são atrativos. Para Angélica, e possivelmente para tantos outros moradores de classes mais baixas, pertencer à Bela Vista nunca foi uma possibilidade.
*Os nomes foram alterados para preservar o anonimato das entrevistadas.