Mirela Malaman mora em São Paulo há 12 anos e, em 2021, pôde revisitar um dos primeiros museus que conheceu quando se mudou para a cidade e que a deixou extasiada: o Museu da Língua Portuguesa. O museu reabriu em 31 de julho, após seis anos de um incêndio que atingiu parte de sua estrutura. Para Mirela, que trabalha com comunicação e arte e é uma leitora ávida, o reencontro foi emocionante, e ela destaca a felicidade em saber que agora outras pessoas poderão conhecer o museu e se surpreender com suas exposições, como ocorreu com ela na primeira visita. Ela lembra que na época a mostra era sobre Machado de Assis, seu escritor favorito.
Esse reencontro só foi possível devido ao processo de restauração do prédio. Da mesma forma, só é possível visitar qualquer outro museu devido a todos os cuidados com sua estrutura e acervo. Mas como a preservação dessas instituições é feita e como o contexto brasileiro demonstra a urgência de sua necessidade?
Um cenário de perdas
Dentro de seis anos, três importantes museus brasileiros foram atingidos por incêndios que se iniciaram em instalações elétricas: o Museu da Língua Portuguesa, o Museu Nacional e a Cinemateca. Com os incêndios, não só as edificações foram danificadas, mas também diversos tipos de acervos foram perdidos, desde arquivos audiovisuais nacionais até coleções de insetos.
Para Luciana da Silva Florenzano, arquiteta doutoranda na área de gestão e restauração do patrimônio pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a perda de bens culturais poderia levar a vida humana ao caos: “Quando a gente fala de preservação do patrimônio cultural, estamos falando sobre a necessidade de fontes simbólicas e de significados para que o homem tenha orientação no mundo”.
Luciana comenta que há inúmeras possibilidades para manter uma edificação histórica em situação adequada. Algumas delas são a manutenção de sistemas elétricos e hidráulicos, tratamentos para madeira — que evitam o alastramento de possíveis focos de incêndio — e o uso de tecnologias que ajudam a entender os processos de degradação, o que contribui para o aumento da vida útil dessas construções.
Mas nem sempre as verbas destinadas aos museus no Brasil acompanham as possibilidades de conservação. Teresa Cristina Toledo, historiadora e chefe do Departamento de Conservação do Museu do Ipiranga — que hoje está em processo de restauração —, conta que, devido à falta de investimento do Brasil na área, foram necessários dez anos para que a obra se tornasse realidade. “O Museu do Ipiranga conseguiu escapar desse destino, mas isso [um desastre] poderia ter acontecido sim. A situação anterior era precária, então é isso que nos movia”, completa.
Segundo dados do Siga Brasil, plataforma de informações orçamentárias mantida pelo Senado Federal, o orçamento destinado a políticas culturais caiu em 46,8% entre 2011 e 2021. Desse orçamento, a verba destinada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) recuou de cerca de 593 milhões de reais para 257,5 milhões durante esses dez anos. Para a historiadora, enquanto não houver maior direcionamento de verba para essas instituições, uma nova perda de grandes proporções não será uma surpresa.
A intervenção nas construções históricas
Por mais que digam respeito à manutenção da qualidade de um patrimônio, a conservação e a restauração refletem aspectos distintos do processo. Luciana explica que, de acordo com uma concepção italiana, a conservação é apenas para manter o bem íntegro, enquanto a restauração é uma operação maior e mais abrangente. Ela esclarece ainda que a divisão ou não dessas duas atividades pode variar, pois, na prática, ambas são uma intervenção no bem cultural.
Quando a intervenção de um prédio histórico vai além da prevenção de desastres, surge o questionamento sobre o quanto se pode interferir na edificação. A arquiteta explica que não há um posicionamento único e que é sempre um desafio bom e assustador fazer as escolhas desse processo, que conta com quatro grandes etapas: diagnóstico do estado de conservação, levantamento histórico, realização do projeto de restauro e execução da obra.
Para manter as características originais da construção histórica, é importante entender quais são os valores que levaram o bem a ser reconhecido como patrimônio e, assim, não feri-los. Ao mesmo tempo, Luciana explica que é preciso adaptar as edificações ao contexto contemporâneo. Na restauração de uma igreja de estilo gótico, por exemplo, é importante manter a verticalidade e os vitrais, característicos do estilo, mas também é essencial colocar bancos — que não existiam em igrejas antigamente — para atender a um costume contemporâneo.
Também é recomendado acrescentar estruturas que garantam a acessibilidade, como elevadores, e a segurança, como sistemas anti-incêndio que se adequem às exigências dos bombeiros. No Brasil, apenas 8 dos 29 museus federais geridos pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) possuem a certificação do Corpo de Bombeiros. E o próprio instituto enfrenta queda de recursos orçamentários. Segundo dados do Siga Brasil, o Ibram teve uma verba de cerca de 135 milhões de reais em 2021, quase metade do valor direcionado em 2011.
A importância de diferentes conhecimentos na intervenção
Enquanto algumas instituições mantêm os processos de conservação e restauração separados, Teresa explica que, no Museu do Ipiranga, não há mais uma divisão entre eles — tudo é englobado no setor de conservação. Essa definição vem de uma concepção estadunidense, onde só existe o conceito de conservação. “O que vai variar é o nível dessa intervenção e uma intervenção maior seria o que as pessoas conhecem por restauração”, afirma.
O tipo de intervenção que será feita é definida caso a caso: depende do tipo de objeto, do material e se a peça está em risco ou não. Em alguns momentos, apenas uma limpeza é o suficiente e, em outros, a intervenção é maior. O importante é sempre cuidar do objeto para que ele dure por um período prolongado. “Se há um vaso instável, ele não é seguro. O ideal é torná-lo mais seguro para não cair e se partir. Parece uma coisa simples, mas é vital”, exemplifica Teresa.
As decisões tomadas também variam em cada museu. Em um museu de história, por exemplo, é importante pensar se o dano de um objeto carrega um aspecto histórico. “Uma roupa com botões trocados, por exemplo, pode ser uma informação importante, ela conta uma história. Então eu não tenho que mudar isso, mesmo que eu não goste”, explica.
Quando a intervenção é maior, os conhecimentos da física e da química muitas vezes são fundamentais para identificar os materiais e as cores de um objeto, o que ajuda a manter os aspectos originais de uma obra. Um exemplo emblemático no Brasil é o quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, que faz parte do acervo do Museu do Ipiranga.
Após o uso de tecnologias, como raio X e raios infravermelhos, foi possível identificar não só as cores e os materiais da obra, como também diferenciar o que faz parte do quadro original e o que foi fruto de restaurações anteriores. Assim, os profissionais de conservação utilizaram os pigmentos e materiais da pintura inicial, respeitando as técnicas utilizadas pelo pintor.
Teresa ainda acrescenta que é fundamental administrar a forma como o objeto é guardado e as condições do ambiente, como temperatura, umidade e luz.
A tecnologia a favor da história
Processos de reformas e reconstruções de museus muitas vezes representam oportunidades para atualizações não só estruturais, mas na maneira de organizar as exposições e os acervos. Segundo Mirela, o Museu da Língua Portuguesa é um exemplo de instituição que se tornou mais tecnológica após a sua reabertura.
Para Alexandre dos Santos Villas Bôas, historiador e coordenador do Programa de Catalogação e Digitalização de Documentação Histórica da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus Jaguarão, a implementação da tecnologia de acervos digitais permite uma maior difusão dos acervos, o que facilita que pesquisadores os acessem. “Essa difusão possibilita um aumento de pesquisas históricas, que darão um conhecimento maior de uma comunidade e que podem se correlacionar com outros locais do país”, afirma.
O historiador explica que, para a construção de um acervo digital, é preciso selecionar quais documentos serão os primeiros a serem digitalizados: “Elencamos aqueles documentos que teriam maior interesse na pesquisa histórica e também para a sociedade, priorizando também os documentos mais deteriorados”.
Após essa escolha, os documentos passam por um scanner planetário — uma tecnologia que permite que o material histórico escaneado não seja danificado. Isso gera não só uma preservação digital, mas também a conservação física desses documentos, pois evita que a fonte histórica seja constantemente manuseada. Por fim, os arquivos são colocados em um software e podem ser divulgados em sites.
Alexandre lembra que diversos formatos de acervos podem ser digitalizados, o que permite a reconstituição de peças que eventualmente sejam perdidas em incêndios. Um exemplo disso são as réplicas de peças, como fósseis, que estão sendo feitas por impressão em 3D para a reconstrução do acervo do Museu Nacional.
Apesar dessa alternativa já ser eficaz em alguns museus do país, o historiador afirma que no Brasil ainda é um desafio ampliá-la para cidades afastadas dos grandes centros. E a maior dificuldade para digitalização dos acervos é justamente a falta de financiamento, como apontam os dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
Seja para garantir a orientação do homem no mundo ou contribuir para pesquisas acadêmicas, o aumento do investimento em ferramentas e institutos de preservação de museus é essencial para evitar e superar as perdas. Enquanto isso não acontecer, o sentimento de Mirela será um resumo alarmante da condição brasileira: “Penso que somos um povo com muita história, mas memória curta. Não dá para continuar assistindo nossos museus (e nossas memórias) queimarem.”