As histórias em quadrinho têm crescido em visibilidade, especialmente com a publicação de tirinhas online e com a popularização de adaptações cinematográficas, como os filmes da Marvel. Mesmo assim, ainda há quem duvide do potencial que as HQs têm de apresentar narrativas de diversos tipos com profundidade. Veja como quadrinhos podem entreter, educar ou refletir sobre as nuances da nossa existência — e às vezes tudo isso ao mesmo tempo.
Coisa de criança?
Uma das formas comuns de reduzir a abrangência da história em quadrinhos é atribuir sua leitura exclusivamente ao público infantil. Alguém que não conheça esse universo pode atrelar o formato exclusivamente aos gibis feitos para crianças e às histórias de heróis fantasiados, classificando essas histórias como imaturas e desconsiderando que também podem carregar narrativas maduras e bem escritas.
No entanto, as revistas em quadrinho já tratam de temas maduros há décadas. Segundo Waldomiro Vergueiro, coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da USP, o quadrinho adulto surge em vários países a partir do quadrinho underground — isto é, o quadrinho de produção independente, desvinculado das grandes editoras. Os autores, incomodados com os controles da indústria, publicavam fora dela. Percebendo o sucesso dessas produções, a indústria começou a abrir espaço para novas narrativas.
Um exemplo é o selo Vertigo, da DC Comics. Fundado em 1993 pelo editor Karen Berger, o selo representa a abertura do mercado estadunidense para o quadrinho adulto. Abrigou títulos como Sandman, Monstro do Pântano, Transmetropolitan, Y: O Último Homem, V de Vingança e Hellblazer, entre outros grandes nomes da história do quadrinho. As obras do selo Vertigo tiveram grande importância na disseminação do quadrinho adulto pelo mundo, uma vez que os Estados Unidos são a maior indústria de quadrinhos, ao lado do Japão.
Marcelo D’Salete, quadrinista brasileiro escritor de obras premiadas como Angola Janga: Uma História de Palmares (Veneta, 2017), comentou sobre a visão do quadrinho como algo infantil no Brasil: “Para o grande público, de certo modo, essa acaba sendo uma marca muito relevante. Cada vez mais a gente tem que mostrar que o público infantil é importante, mas o quadrinho pode trazer temas extremamente profundos para outros públicos também”.
Angola Janga, último lançamento de Marcelo, conta a história do Quilombo de Palmares. É um exemplo da produção nacional de quadrinhos maduros e bem escritos e junta personagens envolventes com uma narrativa histórica importante de ser resgatada. Junto a Cumbe (Veneta, 2014), que também aborda a resistência negra e africana contra a escravidão, representa anos de pesquisa histórica do autor: “Esses foram trabalhos que demandaram um grande esforço de compreensão histórica, de leitura, de compreensão tanto do que era o Brasil colonial e escravista, mas também de tentar acessar os traços, as características relevantes dessa cultura africana em transformação profunda aqui no Brasil”. Marcelo destaca ainda que, quando se fala da presença negra no Brasil, as quase cinco milhões de pessoas que foram trazidas de maneira forçada ao país, “são pessoas que vinham principalmente da região de Angola e do Congo, e depois outras que vieram da região da Costa da Mina, um pouco mais na África Central e do Oeste”.
O poder da linguagem visual e da vanguarda
A ligação entre quadrinho e literatura ainda levanta discussões. É possível citar obras ricas em texto, como Sandman, como exemplo da literalidade que uma HQ pode assumir. Considerar apenas essa característica, no entanto, deixa de lado a unicidade dessa forma narrativa: a possibilidade de combinar recursos visuais e literários para alcançar efeitos próprios do formato.
Sobre isso, Marcelo comenta: “O quadrinho pode ter a profundidade e a qualidade narrativa de um livro, com elementos que são específicos também da sua linguagem. Estamos numa sociedade cada vez mais mediada por imagens e imagino que o quadrinho se torna uma ferramenta importante para aprender a ler também essas imagens. Por outro lado, por mais que nós estejamos imersos em um mundo de imagens, nós ainda precisamos criar mecanismos, estratégias para a verdadeira crítica dessas imagens”.
Waldomiro chama atenção para o caráter de vanguarda das histórias em quadrinho. Por meio de certa “marginalização” dessas obras pelo grande público, as produções desenvolveram a característica de tratar de temas menos usuais em outras mídias, como a televisão e o cinema. O professor relembra o caso de Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, que mandou recolher as edições de Vingadores: A Cruzada das Crianças (Salvat) durante a Bienal do Livro de 2019. Segundo o prefeito, uma cena de beijo entre os personagens Hulkling e Wicanno seria conteúdo sexual para menores de idade.
Enfim, quadrinho é coisa séria?
A resposta pode ser, ao mesmo tempo, sim e não. O quadrinho é uma plataforma e pode abrigar todos os tipos de histórias, sejam de drama, humor, poesia ou o que for. Vale, acima de tudo, observar o potencial narrativo que esse meio proporciona ao unir o ritmo e a introspecção da literatura com o poder simbólico das imagens. Só resta recomendar ao leitor que escolha um título entre os citados e confira por conta própria.