Ricky Hiraoka
Adaptar uma obra literária para o cinema sempre é uma árdua tarefa, que gera inúmeras controvérsias e discussões. A mais nova empreitada internacional de Fernando Meirelles atende pelo nome de Ensaio sobre a Cegueira (Blindness) e promete incendiar ainda mais a arena que abrange os limites da liberdade de um diretor em intervir na criação de um autor.
O filme de Meirelles consegue criar um mundo cruelmente verossímil para o enredo metafórico de José Saramago. As personagens sem nomes e sem rostos do livro ganham feições reais capazes de encher a tela do cinema com uma gama de sentimentos e emoções que raramente se vê nas atuais películas. Meirelles utiliza de recursos para inserir o espectador na história. O constante jogo entre o claro e o escuro, os cortes em branco e a fotografia claríssima dão a dimensão do desespero das personagens bem como a sensação de ser um dos cegos daquela cidade.
Pelos belos olhos de Julianne Moore, o espectador consegue enxergar o caos de uma humanidade que passa a viver sob o domínio de uma estranha doença que causa uma cegueira branca. Ao contrário da maioria esmagadora dos filmes hollywoodianos, a causa e a cura dessa doença não são partes importantes do roteiro. A questão central do filme é o efeito que essa cegueira provoca. É como se essa doença só concretizasse as chagas existentes entre os homens: a indiferença, a insensibilidade e o egoísmo. À medida que as pessoas contraem essa “doença”, elas são isoladas em um imundo pavilhão e são obrigadas a criar suas próprias leis. Ao invés de se unirem e tentarem encontrar uma saída para a nova situação que estão vivendo, os contaminados regridem ao Estado de Natureza de Hobbes, instalando um regime autoritário e violento. O filme apresenta cenas fortes, mas nada gratuitas, que colocam em xeque a racionalidade do ser humano. As personagens sofrem uma animalização em busca da sobrevivência.
Talvez tenha sido o naturalismo de Ensaio sobre a Cegueira o fator principal das críticas negativas que o filme tem recebido desde sua exibição no Festival de Cannes. Ao que tudo indica, os críticos estrangeiros não conseguiram digerir a realidade cruel que pode, um dia, assombrar os seres humanos. Os críticos e os espectadores tão acostumados a ver a violência de mentirinha dos filmes de ação não conseguem suportar cenas de estupro e humilhação. Falta sensibilidade para que eles compreendam uma obra tão humana quanto Ensaio sobre a Cegueira.