Há exatos 90 anos o mundo assistia a um acontecimento que revolucionaria a história e a indústria cinematográficas: a Warner Brothers West Coast Studios, hoje conhecida como Warner Bros., trazia ao mundo o filme O Cantor de Jazz (The Jazz Singer), de Alan Crosland. Era 6 de outubro de 1927 quando o primeiro longa-metragem a ter passagens faladas aparecia no circuito comercial. Apesar de outros experimentos bem sucedidos de sincronia entre fala e imagem, O Cantor de Jazz virou o marco da mudança nos padrões técnicos, estéticos e ideológicos na indústria de filmes.
A narrativa traça a história do personagem Jackie Rabinowitz (Al Jolson), que desde a infância praticava o canto tradicional judaico. Ele se preparava para o posto de cantor da sinagoga que seu pai havia reservado a ele desde o nascimento, seguindo a tradição das últimas cinco gerações da família. Porém, mesmo na juventude, Jackie já tinha certeza que não cederia à imposição paterna, pois sonhava em se tornar um grande cantor de jazz. Diante da opinião intransponível do pai, o menino abandona o lar e destina as décadas seguintes de sua vida à busca deste sonho, sem regressar vez alguma à casa da família. Anos mais tarde, quando seu talento começa a ganhar visibilidade, Jackie revive o antigo conflito entre a sua carreira musical e as raízes da tradição familiar.
Apesar de conter falas, o filme não chegou nem perto do abandono das convenções do antigo modelo em vigor. Os personagens permanecem a maior parte do tempo silenciados e o uso de cartões com diálogos escritos e textos de narração em terceira pessoa continuaram sendo essenciais para a compreensão da narrativa. Ademais, foram poucas as passagens de voz: após 15 angustiantes minutos de espera, Jolson solta a voz em uma performance musical. Depois disso, ocorreram pouquíssimas outras cenas faladas, totalizando 354 palavras e quase todas proferidas pelo protagonista. Mesmo sendo um número ínfimo, foi o suficiente para que o início de uma nova era entrasse em cena no mercado cinematográfico.
Persistência, convicção e muita inovação técnica
O Cantor de Jazz causou um impacto tremendo quando lançado. No entanto, foi apenas a prova final de um árduo trabalho e de pesados investimentos feitos pelo estúdio que ainda era de pequena influência no mercado, se comparado à Paramount ou à MGM. No ano anterior à primeira exibição do filme, a Warner havia acabado de lançar o Vitaphone, uma engenhoca revolucionária para a sua época: tinha a função de, basicamente, sincronizar a projeção visual ao som de um toca-discos. O sistema foi instalado pela primeira vez no Warners’ Theatre, em Nova York, onde foram rodados curtas de musicais aos espectadores presentes. Apesar do sucesso ― não estrondoso ― com o público e com a crítica, a Warner fechou o ano de 1926 com um prejuízo ― esse sim estrondoso ― de 280 mil dólares.
Não obstante, os irmãos Warner ainda sabiam que não seria possível manter o novo invento com apenas a instalação em uma única sala de cinema. Passaram a circular pelos Estados Unidos reformando as salas de exibição por um preço de até 25 mil dólares a cada Vitaphone instalado. Apesar de todo o esforço, apenas 200 salas possuíam a instalação até o fim de 1927. A situação se agravava ainda mais com os boatos de que outros sistemas de sons, todos incompatíveis entre si, viriam a ser lançados em breve. Obviamente, os cinemas não queriam se comprometer com gastos por um equipamento que possivelmente se tornaria obsoleto tão cedo no mercado. As coisas tornavam-se mais e mais complicadas para a família Warner e sua produtora. Era preciso agir, mostrar a eficiência e o poder do Vitaphone. E foi então que ficou decidida a compra dos direitos da peça O Cantor de Jazz, de Samson Raphelson, a fim de adaptá-la às telas.
Finalmente, o sucesso foi monumental. O filme virou manchete de destaque nos jornais de todo o país e as salas de cinema correram para logo se equipar com a nova tecnologia. Os estúdios de todas as outras grandes produtoras se viram passados para trás, e precisaram movimentar reformas grandes, de reformulação total: a preocupação acústica se tornou prioridade nas gravações e não mais se poderiam gravar várias cenas diferentes simultaneamente num mesmo estúdio; as barulhentas câmeras tiveram que ser isoladas por cabines de vidro ou madeira, assim o som de seus motores não interferiria na gravação; microfones eram escondidos em todos os cantos dos cenários; cenas externas foram temporariamente suspensas por conta da falta de estrutura para as suas realizações. Todas essas mudanças hoje nos soam engraçadas, como se fossem gambiarras grotescas, mas foram a solução encontrada pelos profissionais que não enxergavam outra saída senão a rápida adaptação à revolução da fala, que tão bem fora recebida pelo público.
A ideia caiu como uma luva para a sobrevivência da ainda incipiente Warner. Em anos antecessores à crise que assolaria os Estados Unidos, o crescimento da produtora chegou a um percentual de 32 mil até 1929. Não só ela, mas toda a indústria cinematográfica se viu blindada contra a ameaça de crise: entre 1928 e 1930, a venda de ingressos cresceu em quase 85%.
Opositores, apoiadores, vencedores e vencidos no mundo falado
Nem tudo foram flores com a vinda do novo invento. Muitos sofreram com o principiante modelo que deslanchava, e quem já assistiu ao premiado O Artista (The Artist, 2011) já consegue imaginar o porquê. Filme recente, porém seguindo fielmente o antigo estilo de cinema mudo, ele nos traz o auge do estrelato e a conseguinte queda de um grande ator de filmes mudos, George Valentin (Jean Dujardin). Com a chegada do cinema falado, sua carreira desaba em um abismo profundo de pobreza e depressão.
Apesar de fictício, é fácil enxergar o personagem Valentin em figuras reais. John Gilbert, por exemplo, foi um ator de muito prestígio nas suas atuações em filmes silenciosos e conhecido pelo seu affair com a atriz Greta Garbo. Os dois estrelaram vários filmes juntos, como A Carne e o Diabo (The Flesh and the Devil, 1926), Rainha Cristina (Queen Cristina, 1933) e Mulher de Brio (A Woman of Affairs, 1928). Gilbert, no entanto, se viu fracassado na tentativa de adaptação ao sonoro. O motivo: sua voz não combinava com os seus personagens quase sempre românticos. Como resultado, o ator virou comédia logo em sua primeira aparição falada, arrancando risos do público. Antes em posição favorável como artista da MGM, ele passou a um lugar de isolamento na produtora, que não mais o desejava nas gravações e tampouco desvinculava o contrato que ainda mantinha com ele. John Gilbert acabou por falecer de um ataque cardíaco aos 38 anos de idade.
Não há dúvidas de que vítimas do cinema sonoro existiram, sim. Por outro lado, houve também os que não só sobreviveram como ainda se sobrepuseram à nova tendência. É o caso de ninguém menos que… Charlie Chaplin. O ícone do cinema mudo não se deixou intimidar pela aparição do vocal e seguiu produzindo conteúdos de muito sucesso. Curioso que parte de suas obras mais emblemáticas sejam datadas mais tardiamente que O Cantor de Jazz: Luzes da Cidade (City Lights) é de 1931, Tempos Modernos (Modern Times) de 1936 e O Grande Ditador (The Great Dictator) de 1940. E o que fazia dele uma exceção? É que a sua obra muito falava sem nada dizer. A imagem de Chaplin misturado às engrenagens das máquinas vem vinculada quase que simultaneamente ao se pensar em abusos contra o operário na era industrial, e nenhum discurso falado sequer chegou aos pés do poder de crítica alcançado por Tempos Modernos. Isso, resultado de um inteligente trabalho visual, dispensa a adição do diálogo como recurso persuasivo.
Chaplin foi um dos grandes que negaram por tempos a fala no cinema. Sobre o seu primeiro contato com a nova tecnologia da Warner, afirmou: “Deixei a sala de projeção na crença de que os dias do cinema sonoro estavam contados.” Ele só veio a revelar sua voz nove anos depois de Al Jolson, em uma cena, assim como o primeiro, de apresentação musical. Quando perguntado, Chaplin afirmou que quando o seu alter-ego, o personagem Vagabundo ― que representou em centenas de curtas e em uma sequência de longas ― ganhasse voz, isso representaria o seu fim.
Dito e feito. Foi em Tempos Modernos que Vagabundo decidiu soltar a voz, nunca mais retornando às câmeras para contar história. A cena foi trabalhada em detalhes pelo idealizador, que pretendia encerrar a trajetória de seu mais célebre personagem de forma marcante e repleta de significados. Vagabundo trabalha agora em um restaurante, e é escalado pelo seu chefe para uma apresentação musical no salão. Ele aceita relutante a obrigação da qual não tem como fugir. Demora-se nos ensaios, esquece a letra da canção, diz que não lembra como faz, tem acessos de esquecimento. Ele vai ao centro do palco, iniciando uma dança. O público murmura e ele suplica por um pouco mais de paciência. Prepara-se e, finalmente, começa a cantar. Não uma canção usual, mas sim alguns murmúrios, sons ininteligíveis, palavras em italiano e francês. Uma mistureba sem significado algum. Ocorre que Chaplin nos prega uma peça, e acaba triunfando novamente sobre a fala, que perde total irrelevância diante do gestual do personagem na cena.
Muitos outros também nadaram contra a corrente, refutando a nova tendência e defendendo o cinema mudo até o fim. Para esses críticos, a introdução sonora seria o regresso a uma estética teatral, da qual os longas teriam batalhado duramente para se desvincular. É aquela conhecida ideia de que uma imagem pode valer mais de mil palavras. Segue um exemplo: o Chaplin Club, primeiro cineclube brasileiro, defendeu essa teoria até a sua extinção. Criado em 1928, um ano após o pioneiro O Cantor de Jazz, abrigava grandes nomes do cinema brasileiro como Mário Peixoto, que dirigiu o clássico mudo Limite (1930). O cineclube seguiu publicando em revistas o inalterável pensamento de que o cinema estaria decaindo ao retrocesso do “teatro gravado”, até ser vencido pela total perda do apoio a esse posicionamento, que acabou caindo por terra.
Ocorre que o pessoal do Chaplin Club falhou ao pensar no retrocesso. Certo que, de início, houve sim uma problemática de adaptação de roteiro. Muitos personagens ganharam o apelido de talking heads, pois acabavam com a função de narrar continuamente os acontecimentos que nos filmes mudos vinham na forma da ação. Mas foi um fenômeno passageiro. O cinema falado, na época, só mostrava a ponta do icebergue que se escondia sob as águas. Ao contrário do que diziam, a nova tecnologia não se apropriaria negativamente da linguagem teatral e viria a desenvolver uma linguagem completamente inédita e exclusiva. Eles não imaginavam sequer um pedacinho do potencial futuro dessa inovação. Eles não faziam ideia do que estava por vir. Nem eles, nem os irmãos Warner, nem ninguém. Como vinha dizendo o personagem de Al Jolson, por mais de uma vez:
“You ain’t heard nothing yet”. Ninguém havia ouvido nada ainda.
por Laura Molinari
lauratmolinari@gmail.com
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