Baseado no livro de mesmo nome publicado em 2004 pela autora Lauren Weisberger, O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, 2006), filme dirigido por David Frankel, segue a trajetória de Andrea Sachs (Anne Hathaway), uma recém-formada jornalista que sonha em trabalhar em uma redação tradicional. Em sua busca pela primeira oportunidade na área, ela é admitida como assistente pessoal da editora-chefe de uma renomada revista de moda, a ‘Runway’. A editora em questão é Miranda Priestly (Meryl Streep), uma chefe temida por todos os funcionários por seu comportamento cruel e perfeccionista.
Andrea se vê inicialmente frustrada com seu trabalho, já que não parece entender sobre o mundo da moda — fato representado de forma cômica pela sua vestimenta. Além disso, a personagem tem que aguentar uma chefe dura que não poupa palavras para demonstrar seu descontentamento com tudo que sua assistente se propõe a fazer.
Em toda a obra, é possível perceber uma ambientação luxuosa atrelada à ocupação de jornalista em uma editoria de moda, por meio das roupas utilizadas, do comportamento, dos locais frequentados e das pessoas de elite com as quais Andy entra em contato. Essa visão contribui para a criação de um imaginário fictício em relação à profissão, o que tem pouca conexão com o mundo real. Concomitante a isso, a editora-chefe interpretada por Meryl Streep desenvolve um ambiente tóxico de trabalho, ao destratar seus funcionários e fazer exigências de cunho pessoal a sua assistente.
Segundo Eliana Sanches de Frias, formada em Comunicação Social e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências e Comunicação da ECA-USP, com larga experiência em editorias de moda e atual diretora de conteúdo na revista Elle Décor Brasil, a visão glamourizada da profissão de jornalista de moda, trazida pelo filme, tem poucas correspondências com a realidade.
Um exemplo disso é o fato de que o jornalismo em uma editoria de moda abre portas para um mundo que, normalmente, o indivíduo não tem acesso por sua classe social. Luxo, marcas de grife e pessoas da elite são algumas das coisas que tanto Andy na ficção, quanto um jornalista na vida real, entram em contato como consequência de sua profissão. “Esse glamour tem, sim, correspondência com parte da realidade”, conta Eliana.
Por outro lado, a jornalista destaca que o trabalho nessas editorias vai muito além de se vestir bem e entender o mundo fashion, tal como representado no filme. É necessário muito trabalho, pois a moda é muito mais do que uma simples peça de roupa. Ao cobrir desfiles, o olhar do profissional deve ser voltado para os pequenos detalhes, como a confecção, as fontes do estilista e a mão de obra utilizada. Para isso, é preciso o respaldo de constantes estudos, fato que é pouco representado em O Diabo Veste Prada.
Com o desenrolar da narrativa, Andy demonstra-se frustrada diversas vezes, pois não parece entender a essência e profundidade de seu trabalho. Em certa cena, na presença de sua chefe Miranda, que avalia a diferença entre dois cintos em uma composição, a personagem faz um comentário de desprezo a ambas as peças, que, para ela, são iguais. Segundo Eliana, essa cena demonstra um preconceito da comunidade jornalística em relação às editorias de moda e beleza, que parecem ter menos valor social do que as de política ou economia, pois são, em sua maioria, voltadas ao público feminino.
Em relação à representação da vilã no filme, a chefe Miranda Priestly, não faltam características para descrevê-la como perfeccionista ao extremo e friamente cruel. A todo momento na película, o espectador observa seu comportamento ora com admiração, já que sua carreira e trabalho são impecáveis, ora com desprezo, a partir do ponto de vista de seus funcionários.
A busca incessante da personagem pela perfeição pode ser explicada através da psicologia. Segundo Fábio Augusto Caló, psicólogo pela UniCEUB e mestre em Análise do Comportamento pela UnB, existem três tipos de perfeccionismos: o perfeccionismo pessoal, em que o indivíduo estabelece um padrão alto de metas e se orienta para que seja cumprido; o perfeccionismo socialmente descrito, em que o indivíduo sente que precisa viver para atingir expectativas externas; e o perfeccionismo orientado para outros, em que o indivíduo espera nada mais do que a perfeição dos outros ao seu redor e é extremamente crítico quando tal não se concretiza. Nesse caso, a chefe é a mais pura representação do perfeccionismo orientado para outros, já que cria um padrão a ser seguido e humilha cruelmente seus trabalhadores caso não atinjam o esperado.
Ainda segundo Eliana, esse perfeccionismo em relação ao próprio trabalho é perfeitamente normal, já que os jornalistas devem sempre respeitar o principal vetor na profissão: o leitor. Contudo, ela afirma: “Existem formas melhores de esperar um resultado satisfatório de seus funcionários sem, necessariamente, humilhá-los”.
Por outro lado, o próprio diretor da obra relata que a caracterização da vilã, que se assemelha em vários pontos com ‘Cruella de Vil’, personagem do filme ‘101 Dálmatas’, incita uma reflexão sobre a imagem frequente de mulheres que ocupam cargos altos em grandes empresas. Quando atingem esses cargos, elas são vistas como exploratórias e cruéis, mas homens, na mesma posição, são vistos com respeito e admiração. O impulso de tornar essas personagens vilãs está no fato de que não se encaixam no padrão imposto pela sociedade de ‘mulheres do lar’, já que tanto Miranda quanto Cruella têm uma carreira de sucesso independente de figuras masculinas.
Mesmo assim, cabe destacar que o filme glamouriza um ambiente tóxico de trabalho, que é consequência do comportamento da personagem de Meryl Streep. De forma implícita, O Diabo Veste Prada transmite a ideia de que, ainda que imersos em um ambiente tóxico, os trabalhadores podem adquirir experiências positivas e mudar de vida, assim como ocorre com sua assistente Andy, que, ao final da trama, tem seu estilo, comportamento, hábitos e círculos sociais transformados em consequência de seu trabalho na Runway.
A jornalista Eliana Sanches destaca que ainda é possível encontrar veículos de redação com ambientes similares ao retratado na película, fruto de uma ”aura que circunda o jornalismo ligada aos anos 1960, quando o profissional virava noites para trabalhar à base de cigarros e álcool, mas que não cabe mais na geração atual”. “Atualmente, com a chegada da nova geração, já não se permite mais ocupar espaços em que os indivíduos não são respeitados, algo extremamente positivo para o futuro da profissão”.
“O jornalismo precisa de sua veia autêntica que só poderá circular em um ambiente respeitoso e agradável, o que dá liberdade ao repórter e gera feedbacks de maneira mais humana. Ainda assim, o bom profissional saberá lidar da melhor forma em tais situações, ao permanecer quando necessário ou se livrar o mais rápido possível, ambas situações observadas no filme”, completa Eliana.