Na noite de sexta-feira, 27, na véspera do Rock in Rio, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, anunciava: “O Rio é a segunda cidade mais segura do Brasil.” A afirmação viria exatamente uma semana após a morte de Ágatha Felix, de 8 anos; a garota foi vítima de bala perdida no Complexo do Alemão. A indagação que sucinta: “segura” para qual estrato social da sociedade carioca?
A bala que atingiu as costas da menina Ágatha veio de um fuzil da Polícia Militar (PM). As narrativas dadas e legitimadas pela segurança do estado do Rio de Janeiro, com o aval do próprio governador, sempre batem no mesmo ponto – foi um confronto em que a PM agiu por legítima defesa – enquanto isso, os civis contradizem tal argumento.
Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma das principias especialista na área, rebate e critica as políticas de segurança: “de um lado tem-se um policiamento que trabalha para a classe média nos bairros da Zona sul, e do outro lado um policiamento que trabalha com tiro, porrada e bomba nas comunidades. Isso tudo na mesma cidade, na mesma região metropolitana e estado.” Agravantes da situação da cidade maravilhosa.
O avô de Ágatha apareceu revoltado em vídeo que foi ao ar nas redes sociais: “Foi a filha de um trabalhador, tá? […] O polícia atirou em quem? Foi em traficante? Foi na filha dele? Não! Foi na minha neta. Agora tá aí, perdi minha neta. Não era pra perder, nem eu nem ninguém.” crítica à ação policial.
Tal fala poderia se encaixar na de muitos familiares que perderam suas crianças nas favelas cariocas, os tiros que soam nos bairros menos favorecidos não ressoam como os dos lugares frequentados pela classe mais abastada. Tal fato é recorrente há séculos: os anos se passaram, muitas mudanças foram feitas, mas as ferramentas de marginalização e de opressão que descaracterizam os pretos e pobres são as mesmas.
Isso corrobora-se na voz de Kátia Silene, mãe de Jennifer Silene assassinada por bala perdida no dia 14 de fevereiro na favela de Triagem, zona norte do Rio: “O governador não pode deixar que a polícia entre e tire a vida de todo mundo. Ele não pode deixar isso acontecer. Bandido é bandido, polícia é polícia, e morador é morador. Ali somos pessoas de bem e dignas. Se moramos ali é porque necessitamos e precisamos. Se não precisássemos estaríamos morando na Barra ou em Copacabana. O governador deu ordens para atirar e olha no que deu! Eles tiraram uma vida. É a primeira criança a ser morta em 2019. E aí, como fica a vida da minha filha? Quem vai trazer de volta?”.
Adorada pelo pessoal do bairro e da escola, Jenifer Silene Gomes, de 11 anos, era a caçula da casa. Estava prestes a ser matriculada no balé, que era seu grande sonho.
Morta por bala perdida dia 14/02 em uma favela de Triagem, na Zona Norte.
Segundo dados da ONG Rio de Paz, desde 2007, 57 crianças morreram atingidas por balas perdidas no estado. Dessas, 57% foram resultado de confrontos policiais, 80% das vítimas eram moradoras de favelas. Já conforme estudos da plataforma Fogo Cruzado, Ágatha foi a 16ª criança baleada no Rio só neste ano, sendo delas, a quinta vítima fatal. Todas as cinco padeceram com suspeitas ou relação direta com tiros da polícia.
Levado, Kauan Peixoto, de 12 anos, era um aluno “complicado, mas muito bonzinho”. Adorava implicar com a prima, que adorava implicar de volta. Seu sonho era ser policial.
Morto por bala perdida dia 16/03 na comunidade da Chatuba de Mesquita.
Desde sua eleição, em outubro de 2018, Wilson Witzel não tem poupado palavras para dar à violência caráter de política estatal. “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”, “O Estado tem que entender que tipo de segurança pública ele quer”, essas foram frases de teor recorrente nas falas do ex-juiz.
Em maio, ele aparece em vídeo acompanhando uma operação da Polícia Civíl em um helicóptero, “para dar fim à bandidagem”, segundo o próprio. Sobrevoando uma comunidade em Angra dos Reis, um dos policiais então fuzila uma tenda, que supostamente seria utilizada por traficantes, mas que na verdade era de membros de uma peregrinação evangélica.
Já no último dia 24, o governador assinou uma medida que retira bonificação aos batalhões que reduzirem seu número de mortos. Já não faz diferença financeira para o policial matar ou não.
Sempre grudado com o irmão mais novo, Kauã Rozário, de 11 anos, adorava andar de bicicleta. Sempre ajudava os pais em casa e na igreja, seu sonho era ser pastor.
Morto por bala perdida dia 16/05 em Bangu.
Como consequência direta, tem-se uma polícia Civil e Militar que já foi responsável por 41,5% de letalidade somente na região metropolitana, contando a capital e os 16 municípios vizinhos, isso durante a sua atual gestão. E ainda mais, de 429 mortes violentas, em julho, 178 foram realizadas por agentes, conforme o Instituto de Segurança Pública. No último semestre, o número de mortes causadas por violência policial no Rio cresceu 46% em relação ao mesmo período do ano passado, os dados são do Observatório de Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Diante de tantos fatos, questões são levantadas e uma delas é para quem se governa. A professora da UFF posiciona-se frente a esse ponto: “para os homens de gravata que dizem ser do mundo da lei e da ordem, as mortes são palanques eleitorais […] É o estado quem administra mortes que produzem efeitos publicitários macabros, aqui se governa com o crime e não sem”. Episódios que, segundo ela, geram índices de sucesso desta “política econômica criminosa”, referindo-se às ações de milícias e traficantes que extorquem as comunidades com serviços que não são aplicados pelo governo. Deixando os moradores a mercê da ilegalidade.
Sorridente, Kauê Ribeiro, de 12 anos, jogava bola em um projeto social. Para ajudar a família, ele vendia bala, mas seu maior sonho era se tornar jogador.
Morto por bala perdida dia 8/09 no Complexo do Chapadão.
Wilson afirmou que faria uma caçada nas comunidades contra o crime organizado. Caçada que não respeita o direito à vida, ponto importante na Constituição, especialmente a vida de crianças que nada têm a ver com a guerra instaurada e incentivada pelo governo. A prerrogativa de assegurar a vida da criança parece não ser aplicada para as que vivem nas comunidades. O sintoma dessa “licença para matar” pode ser visto nos corpos e nas identidades das cinco crianças assassinadas não só pela polícia, mas também pelas políticas estabelecidas pelo governo carioca e sociedade, que se escondem atrás da bala perdida.
Estudiosa, Ágatha Felix, de 8 anos, tirava notas altas, fazia aula de inglês e de balé. Seu brinquedo preferido era uma boneca da Mônica e seu sonho era virar bailarina.
Morta por bala perdida dia 21/09 no Complexo do Alemão.