Jornalismo Júnior

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Os impactos da Copa de 70 no futebol brasileiro através do olhar de “México 70”

Livro analisa a melhor “Copa do Mundo da História”, tão marcada por novos começos e por despedidas, a partir de depoimentos compartilhados por figuras da competição.
Capa do livro México 70

Por Nina Nassar (niiina@usp.br) 

“O Pelé se preparou muito para essa copa do mundo. Ele queria encerrar a carreira internacional com uma grande vitória, tanto individual quanto coletivamente, para que ninguém tivesse dúvidas de que ele foi o maior de todos os tempos. Eu tentava acompanhá-lo. Antes mesmo de receber a bola, ele já estava em movimento e, com seus olhos expressivos, me dizia o que queria fazer. A comunicação pelos olhos e pelo corpo é imprecisa, mas muito mais rica do que a que é feita com palavras. O corpo fala e não mente.”, depoimento final de Tostão, atacante da seleção brasileira, sobre Pelé, em “México 70”.

Nos últimos anos, a discussão de como o futebol não é mais o mesmo de antigamente tem sido recorrente, especialmente no Brasil. A memória coletiva construída nos brasileiros – tanto nos que presenciaram, quanto naqueles que apenas imaginam a mais bela Copa do Mundo da história – traz consigo uma saudade mística irreparável do antigo futebol, e lamenta a falta de “Pelés” na Seleção. Este futebol-arte, metaforicamente, se despede no imaginário popular brasileiro, junto com a Taça Jules Rimet, uma vez que nunca mais apareceu um igual. Assim, buscam-se respostas para a reflexão sobre como uma Copa do Mundo praticamente sem patrocínios, sediada em um “país de terceiro mundo”, com jogadores ganhando tanto quanto a classe proletária e que estava sendo transmitida em cores pela primeira vez na história, teve um impacto tão grandioso a ponto de servir como uma “nota de corte” para todas as seleções brasileiras futuras e consolidar de uma vez por todas o “País do Futebol”? Essas são apenas algumas das discussões da reportagem em “México 70”, escrita por Andrew Downie e publicada em maio de 2022 pela Editora Grande Área.

A partir de uma coletânea de depoimentos e entrevistas conseguidas pelo autor, pelo olhar dos jogadores, técnicos e envolvidos ainda vivos da Copa, o evento é recontado com muita proximidade e detalhes. A obra dá voz às impressões individuais e experiências de cada pessoa presente nos jogos e lances históricos, os quais, hoje, a maioria conhece apenas por memórias das imagens transmitidas na década de 70.

Pelé sendo carregado por torcedores

Pelé sendo carregado por torcedores após vencer a final da Copa do Mundo, contra a Itália. Ele fez o primeiro gol do jogo aos 18 minutos, com assistência de Rivelino. [Reprodução/Wikimedia Commons]

Sobre o autor e seu trabalho em “México 70”

Downie nasceu em Edimburgo, na Escócia. Depois de trabalhar em uma fábrica por sete anos, economizou o suficiente para viajar pela América Latina, que ganhou seu coração, ao ponto dele nunca mais deixá-la. Na Cidade do México, conseguiu seu primeiro emprego como jornalista no México City News. Tornou-se correspondente internacional depois de se mudar para o Haiti, em 1993, e continuou escrevendo para publicações britânicas e norte-americanas quando retornou para a Cidade do México dois anos depois. Em 1999, realizou o sonho de se mudar para o Rio de Janeiro — vivendo vinte anos na cidade e em São Paulo. Em 2019, mudou-se para Londres e, desde então, divide seu tempo entre o Reino Unido e o Brasil. Ele é correspondente da Reuters para a América Latina há mais de 20 anos e, apaixonado pelo futebol brasileiro e latino, Downie mantém o próprio blog, além de autor das obras “Doutor Sócrates”: a biografia (2017) e “México 70: a mais bela copa do mundo contada por seus protagonistas” (2022).

México 70 é um livro-reportagem que conta além da descrição dos eventos icônicos do torneio. Como fica esclarecido em seu subtítulo, é a história da “mais bela Copa do Mundo contada por seus protagonistas”, através de vivências particulares de diferentes jogadores, de diferentes nacionalidades. As experiências são colocadas em ordem cronológica, como uma narração íntima da competição, não só para relembrar aqueles que a viram ao vivo, mas também como uma maneira de mantê-la viva e eterna para as novas gerações. As jogadas tomam forma através das lembranças de cada entrevistado, criando cada lance na mente do leitor.    

A divergência de pontos de vista sobre uma mesma jogada elevam o nível da leitura ao passo que dá voz àqueles que não puderam falar, incluindo os perdedores. A narrativa não se constrói apenas das vitórias, analisando até jogos secundários. Por exemplo, aprofunda-se a discussão polêmica do lateral concedido ao México, que levou ao gol da classificação em cima de El Salvador, e possivelmente editado pela transmissão Mexicana, narrativa esta que é ouvida com respeito e seriedade pela primeira vez. Downie, então, indiretamente divide a autoria de sua obra com todos os seus 82 entrevistados, dando a ela uma polifonia que enriquece uma memória profunda.

Capa do álbum da Panini da Copa do Mundo de futebol de 1970

Capa do álbum oficial da Copa do Mundo de 1970 [Divulgação/Panini]

O antigo futebol e sua importância sociopolítica

No capítulo introdutório, “preparativos pré-copa”, evidenciam-se alguns pontos claros que diferem o futebol de 1970 do futebol de hoje. Em entrevista ao Arquibancada, Nelson Nunes, jornalista que presenciou a exibição da Copa de 1970 e cobriu a Copa de 82, disse que os jogos da época eram muito mais lentos, “havia tempo do atacante parar a bola e pensar no lance”, uma vez que o preparo físico dos jogadores era completamente diferente. Não havia a tecnologia nos treinos que existe hoje, e isso fazia com que as partidas tomassem outra forma.

Na época, eram dezesseis seleções classificadas, o que dava às eliminatórias grande importância, como se já fossem parte do Mundial em si. Eram a chance de países como El Salvador, pela primeira vez classificado para competir, ganharem visibilidade de escala internacional. Somente a entrada no torneio já era uma vitória para o país, que naquele contexto, se envolvia simultaneamente em uma guerra com Honduras. Segundo o ex-jogador Maurício Rodriguez, a mídia colocou neles uma responsabilidade patriótica para além do esporte. Eram praticamente soldados do país indo à guerra. A chance de estar entre os dezesseis melhores competindo pela Taça Jules Rimet passava a valer tanto quanto passar da fase de grupos. Assim, de forma que ocorre até hoje, o futebol assume um caráter sociopolítico que ultrapassa “o esporte pelo esporte”. O torcedor não só veste uma fantasia ufanista durante algumas semanas, mas também, desabafa para o mundo os problemas internos do país, como se a aproximação da taça das mãos da seleção significasse uma melhora prática da nação.    

O número de equipes, mais tarde, aumentou para trinta e dois, e, no torneio de 2026, aumentará para quarenta e oito, devido ao aumento das proporções midiáticas do evento. Também, será sediada em três países diferentes, Estados Unidos, Canadá e México, para atender a necessidade de uma infraestrutura mais expressiva. Na visão de especialistas, a Fifa busca aumentar ainda mais a sua rentabilidade com a estratégia de ampliar a quantidade de seleções no Mundial. Com a mudança para os 12 grupos de quatro times, o número de jogos vai para 104. Em 2022, por exemplo, foram 64 partidas.

O nacionalismo que envolve a participação de um país na Copa do Mundo é suficiente para alterar significativamente sua economia e imagem externa e interna durante um período, o que foi mais claro do que nunca em 1970. No México, país sede, “os torcedores estavam eufóricos, realmente acreditavam no time. Era um momento especial para o México, o povo nas ruas com bandeiras do país e os fãs nos apoiando. Uma atmosfera de felicidade extrema”, de acordo com Ignácio Calderón, ex-jogador mexicano.

Jogador do Brasil dando uma cabeçada na bola

Jogo Brasil e Romênia na fase de grupos, com placar de 3 a 2, após o Brasil aproveitar uma brecha no estilo violento de marcação da Romênia. [Reprodução/Wikimedia Commons] 

A Copa de 1970 representou a consolidação da globalização no mundo do futebol. O torneio transmitido à cores ao vivo para o mundo todo, a publicidade e os patrocínios, o levaram para um patamar midiático jamais visto anteriormente, batendo um recorde de audiência com cerca de 25 milhões de espectadores, número maior na comparação com os telespectadores que acompanharam a chegada do homem à lua em 1969. Os jogadores Javier Valdivia e Alberto Onofre, por exemplo, comentam na obra o impacto da primeira bola feita propriamente para a Copa pela Adidas e as campanhas publicitárias que foram convidados a participar pela primeira vez, envolvendo as bolas, a seleção, a torcida e o amor pelo país.

No período, o padrão de vida dos jogadores tanto dentro quanto fora de temporada de Copa era completamente divergente ao atual. Os jogadores recebiam salários de classe média-baixa, diferente do que, hoje, os jogadores dos maiores clubes do mundo recebem. Tanto que, em 2013, foi aprovada a Lei Geral da Copa, para prover auxílios aos ex-jogadores das copas de 58, 62 e 70 que ganham menos de 3916,20 reais por mês. Wilfried Van Moer, ex-jogador belga, disse no livro: “não havia muita organização na época. Nos últimos quinze, vinte anos, tudo que envolve a copa é impecável – a equipe, o hotel, eles dão tudo que um jogador possa precisar ou desejar […] Pegar sol fazia mal, tudo fazia mal. Então, a gente era obrigado a ficar em um bangalô, todos amontoados jogando cartas e conversando. O que se podia fazer? Jogar cartas. E jogar cartas. Isso para quem queria jogar cartas… Não existia nada além disso.” 

A Copa e a ditadura brasileira

O ato de lidar com o tédio, a saudade por estar fora de casa e principalmente, a dificuldade de se acostumarem às condições locais do México, eram fatores realmente significativos para os jogadores e seu desempenho. A Inglaterra, por exemplo, foi interpretada como ofensiva pelos torcedores mexicanos, por trazer sua própria comida, água e ônibus, além de atos e falas xenofóbicas do técnico Alf Ramsey. Isso fez com que, logo antes da partida do Brasil contra a Inglaterra, que muito influenciou na eliminação da nação europeia, torcedores mexicanos e brasileiros fizessem barulho na frente do hotel dos britânicos. Em contrapartida, os jogadores brasileiros se juntavam aos torcedores, e isso mexeu com o coração dos fãs mexicanos. De acordo com Zagallo, “O Brito, o Jairzinho, o Pelé e o Paulo Cézar não se limitavam a dar show no campo. Eles eram os reis do samba.”  Essa proximidade entre o elenco e a torcida local foi perdida pela superestrutura advinda da tecnologia e pela cobertura midiática integral de hoje, que coloca os jogadores um andar acima da torcida. Em 1970, os jogadores estavam lá não apenas pela chance de jogar futebol pelo país, mas porque precisavam dele. A sensação transmitida pelas entrevistas no livro é de que, naquele momento, todos viviam para o futebol.

A imagem que a Seleção de 1970 transmitiu do Brasil para o mundo e internamente foi altamente benéfica às propagandas do regime ditatorial militar. Sob o governo Médici, os militares viram a vitória do Brasil como uma oportunidade perfeita para legitimar o poder da ditadura, para mascarar todo o cenário de repressão que o povo brasileiro estava inserido e plantar o sentimento nacionalista na população. Segundo Nelson Nunes, a identidade da seleção brasileira era tão forte com os torcedores que foi possível para o governo se aproveitar dessa relação – associando os ídolos da conquista ao regime. Ele diz que haviam boatos de que Médici exigiu a Saldanha que escalasse Dadá Maravilha, e o técnico se recusou a baixar a cabeça para o envolvimento do general em sua seleção. 

Sobre a ditadura, os jogadores a  mencionam em seus depoimentos no livro, mas todos afirmam o mesmo tipo de distância dela. “A ditadura claramente não queria que Saldanha ganhasse o título no México pois isso daria a ele uma plataforma para criticá-la (…) Os jogadores brasileiros juram que, muito embora a maior parte dos funcionários dos bastidores fossem militares, nunca houve interferência política”, diz Downie. O autor aparenta não tratar do assunto político com muita profundidade neste livro por decisão dos próprios entrevistados, uma vez que a reportagem trata da reconstrução da lembrança da Copa somente através da visão e declarações daqueles que participaram dela. Mas possui muita consciência sobre a luta pela democracia no Brasil, o que foi demonstrado em sua obra anterior “Doutor Sócrates”. Gérson, meio-campista do Brasil na Copa de 70, afirma: “A gente era contra muita coisa. Mas estávamos naquele contexto de que tínhamos que fazer a nossa parte, que era a esportiva, e foi o que fizemos.”

Logo no primeiro jogo, muitos dos brasileiros contrários à ditadura decidiram torcer pela Tchecoslováquia contra o Brasil, por identificarem a seleção com o regime ditatorial. Tal decisão foi virada do avesso assim que a partida tomou forma, desde o “quase gol” do Pelé até a goleada que atropelava a Europa. Em “Veneno Remédio”, José Miguel Wisnik afirma que ao contrário do que Médici tentava com a publicidade, o time não se confundia com o regime para a audiência, pois se conectava a ela através de uma identificação mais profunda. Quando o governo Médici, em 1970, tenta capitalizar simbolicamente a seu favor a conquista do tricampeonato mundial, pode-se dizer, sem minimizar o que isso representou como fato político, que o significado do futebol era maior do que a ditadura – remetia a estratos profundos da vida popular e não era, efetivamente, de fácil apropriação.  

Capa do Jornal A Gazeta Esportiva, após a conquista da Copa de 1970

Capa da Gazeta Esportiva, edição exclusiva de 22 de junho de 1970, com um palpite correto do General Médici no canto inferior [Reprodução/Arquivo pessoal/Nelson Nunes]

A mística da seleção brasileira

Zagallo, depois de assumir a seleção no lugar de Saldanha, que já era responsável pela classificação para o Mundial, precisou revolucionar a formação tática da equipe para vencer. Ele trouxe do futebol carioca um estilo de jogo muito próprio, iniciado na copa de 1958 e aprimorado em 1962, anos dos dois primeiros títulos.Há discussões sobre qual foi o esquema tático utilizado: alguns afirmam um 4-3-3, ou até mesmo, como explicado por Nelson Nunes, um 4-1-5, sendo Clodoaldo o único volante. A tática foi desenvolvida por Zagallo quando ele próprio jogava como ponta-esquerda do Botafogo, com a estratégia de que os dois pontas deveriam voltar até quase o meio de campo para marcar e auxiliar na recomposição do time. Seus métodos fizeram sucesso porque lidavam com o bem mais escasso no futebol brasileiro: o tempo. A Seleção de 1970 foi montada em três meses. Os treinos eram quase todos físicos, visando a “quebra de retranca”, com muitos treinos técnicos, de dois toques, para que os jogadores estivessem afinados nos gestos do jogo.

O que fazia com que a torcida e os próprios jogadores achassem inicialmente que não passariam da fase de grupos era o fato de que a seleção foi montada com cinco “camisas 10”, mas era um consenso de que a posição de meia-atacante seria do Pelé. Assim, os outros precisariam trocar de posição. A genialidade de Zagallo envolvia justamente a ideia de não deixar nenhum craque de fora por questão de posicionamento: todos os onze melhores do Brasil, naquele momento, estavam lá. Na conversa com Nelson ele disse que não haviam meio-campistas na equipe, apenas “todo-campistas”. Todos precisavam dar conta de diversas posições, o que trouxe um dinamismo a mais para o time. “Era comum ouvir que Tostão e Pelé não poderiam jogar no mesmo time, mas sem as adaptações para uni-los em campo, talvez o resultado da Copa não fosse o mesmo”, afirmou o jornalista.

O goleiro da Seleção naquela Copa, Félix, em um de seus depoimentos, afirma: “O Zagallo moldou o time da maneira que queria que a gente jogasse. A maioria era de jogadores inteligentes: você pegava um Rivellino e, onde quer que o colocasse, ele jogava. Você pegava um Paulo Cézar (Caju) e, onde quer que o colocasse, ele jogava.Você pegava o Pelé e, bem… o que mais preciso dizer?”. No entanto, não demorou muito para que eles se adaptassem à nova forma de jogar. Tostão também afirmou que, para atender ao jogo de Pelé, se adaptou como um atacante mais avançado. Desse modo, a Amarelinha de Zagallo tomou forma: Félix no gol; Piazza e Brito como zagueiros, com a cobertura dos laterais Everaldo e Carlos Alberto; Clodoaldo e Gérson faziam o meio campo, este com liberdade para avançar mais, podendo acompanhar Pelé, o camisa 10; Rivellino era introduzido na esquerda, acompanhando o ponta Tostão e, do outro lado, o destro artilheiro brasileiro Jairzinho, que geralmente, atuava como o mais avançado, na diagonal da área.   

Ao longo dos jogos, Pelé se demonstrou o grande comandante do time, mas não o único artista. Sobre a demonstração teórica dessa troca de posicionamento, o cineasta italiano Píer Paolo Pasolini estabeleceu uma analogia entre literatura e futebol, com as categorias de “prosa” e “poesia”. José Miguel Wisnik em “Veneno Remédio” explora essas categorias como sendo o futebol em prosa o do sistema europeu, onde o gol é confiado à conclusão, a partir de uma organização de jogo coletivo. Já o futebol poético suporia dribles e toques de efeito, ao mesmo tempo gratuitos e eficazes, “capazes de criar espaços inesperados por caminhos não lineares, podendo o gol ser inventado por qualquer um e de qualquer posição”.    

O fator essencial para levar a taça para casa foi o ato de Zagallo de assumir o estilo do futebol brasileiro e desistir de imitações do futebol europeu, tentadas anteriormente, na busca por uma suposta equidade em campo. Segundo Nelson, este é um dos problemas principais da Seleção atual. O Brasil passou tantos anos tentando imitar a Europa, que se esqueceu do futebol brasileiro. A copa de 70, com isso, foi um evento quase que decolonial: os jogadores brasileiros jogavam como o samba que cantavam a caminho das partidas, soltos, alegres e, acima de tudo, coletivos. Chico Buarque, compositor e escritor brasileiro, exemplificou tal fenômeno em sua teoria sobre “os donos do campo e os donos da bola”. Os europeus privilegiam o controle da bola, o posicionamento, jogando para não deixar espaços livres no território, a partir das funções bem determinadas e divididas. Já os brasileiros são definidos como “esbanjadores”, “folgados” e “exibicionistas”, dominam a bola com intimidade, “como se tivessem ciúme dela”. Assim, quando se enfrentam países ricos e países pobres, estão se enfrentando os donos do campo e os donos da bola.

A copa de 70 foi, no cenário nacional, uma representação da retomada da autoestima do povo em oposição à síndrome de vira-lata que tomava conta dos brasileiros. No contexto das corridas armamentista e espacial pela conquista da hegemonia mundial norte-americana e europeia, para o exterior, o Brasil se impôs como potência de algo, nem que fosse “apenas” o futebol. Em comparação com o momento atual, Nunes coloca que o maior problema que a Seleção de hoje enfrenta é a falta de identidade. Mesmo com mais estrutura e tecnologia do que nos anos 70, a Seleção atual não possui conexão com a audiência brasileira e menos ainda com o futebol interno. Os jogadores escalados são, em maioria, atuantes na Europa, distantes dos campeonatos nacionais. Assim, a seleção brasileira não é mais montada como uma obra original do técnico e os esquemas táticos são padronizados, o que prejudica a autenticidade da equipe.

Foto da seleção brasileira de 1970

Seleção titular de 1970, contra a Inglaterra, nas quartas de final. [Reprodução/Wikimedia Commons]

No primeiro jogo da fase de grupos, contra a Tchecoslováquia, quando Jairzinho voltou a marcar depois de driblar dois zagueiros, o Brasil “mandou seu recado para o resto do mundo”, como afirmou o ex-zagueiro inglês Bobby Moore. Depois disso, na partida contra a Inglaterra, que Pelé chamou de “final antecipada”, o Brasil entrou com mais confiança. O único gol do jogo veio aos quinze minutos do segundo tempo e, embora a jogada não tenha sido especialmente plástica do início ao fim, apresentou muito do brilho individual pelo qual o Brasil seria lembrado: Tostão dá um toque entre as pernas de Bobby Moore, Pelé passa sem olhar e Jairzinho marca. Os outros jogos seguiram no mesmo caminho. Mesmo em encontros mais intimidadores, como contra o Uruguai (devido ao histórico da Copa de 50), o Brasil demonstrou sua originalidade nas jogadas.

Na grande final, não foi preciso tanto esforço: o 4×1 saiu orgânico, como deveria ser, e ninguém poderia dizer que os italianos não haviam sido derrotados pelo melhor time da Copa do Mundo. No último capítulo do livro, “O legado do Brasil de 1970”, Zagallo conclui: “nossa equipe de 1970 foi muito moderna, jogamos um futebol coeso, sólido, em bloco, defendendo em grupo e atacando em grupo, reunindo a segurança e a força do futebol europeu com o tipo de liberdade que você só vê em jogadores brasileiros.” O Brasil misturou o “futebol de prosa” com a poesia pela última vez, e o futebol-arte clássico brasileiro se despediu da Seleção, a qual, no cenário atual, é tão perdida em meio à hegemonia futebolística da Europa. Assim, em México 70, foi possível partilhar a memória do último uso máximo da potência artística do futebol brasileiro, do jeito que ele é em essência, e eternizá-la da maneira que os protagonistas da Copa gostam de lembrá-la.

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