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A performance transgressora do Burlesco

Conheça a história do gênero performático marcado pela quebra dos padrões
Por Julia Martins (juliadonascmartins@usp.br)

Caracterizada pela mistura entre gêneros teatrais e coreografias que exploram a sensualidade, a dança burlesca — cuja origem no latim significa brincadeira e farsa — esteve, ao longo de sua história, associada a obras artísticas questionadoras das normas sociais. Segundo o historiador francês Georges Minois, em seu livro História do Riso e do Escárnio (Editora Unesp, 2003), a burla, que teve sua primeira aparição na literatura no século 17, surgiu como resposta “às novas exigências de refinamento dos costumes e a promoção de valores sérios.”

Da literatura para os palcos

No século 18, o termo “burlesco” passou a ser utilizado para descrever apresentações musicais que misturavam elementos sérios e cômicos de forma grotesca. O conceito ganhou novas dimensões durante a Era Vitoriana (1837-1901), na Inglaterra, com o surgimento do Burlesco Vitoriano, oriundo dos teatros das classes trabalhadoras de Londres — espaços que tinham a reputação manchada pela embriaguez e por exibições públicas de sexualidade. As sátiras apresentadas pelas dançarinas eram obscenas e provocativas, mas também “subversivas, criticando a aristocracia e as controvérsias da legislação”, destaca a musicóloga Joanne Cormac em seu texto Victorian Burlesque: cheap thrills for the chattering classes.

Teatro Olímpico Real em representação gráfica
O Teatro Olímpico ou Teatro Olímpico Real, em 1831, desenhado pelo topógrafo britânico Thomas H. Shepard [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Por volta de 1850, a reputação dos teatros londrinos se modificou, uma consequência direta do enriquecimento da classe média-alta e da campanha de alguns escritores ingleses sobre o potencial educativo das peças teatrais.

Para entreter o novo público, o burlesco foi readequado: o gênero se transformou em uma forma de entretenimento. As sátiras ácidas deram espaço às paródias de performances famosas, desde o balé até a ópera, mas os espetáculos mais famosos eram as releituras das peças de William Shakespeare.

Os burlescos da época também exploravam as heroínas da mitologia grega, uma forma de discutir as questões femininas da época. Apesar de as principais estrelas dos palcos serem mulheres, a sociedade inglesa era conservadora e reprovava a participação feminina. “O trabalho feminino remunerado [era visto] como algo intimamente ligado a prostituição”, afirma Maria Buszek, professora de História da Arte na Universidade do Colorado, em seu artigo Representing “Awarishness”: Burlesque, Feminist Transgression, and the 19th-Century Pin-Up (1988).

Era de ouro do Burlesco

Em 1868, a companhia burlesca British Blondes (As Loiras Britânicas) desembarcou nos Estados Unidos. Composta apenas por mulheres, ela era produzida e estrelada pela inglesa Lydia Thompson, uma das dançarinas mais proeminentes da época, reconhecida pelo seu charme e pela bela voz.

O primeiro espetáculo delas em cartaz foi Ixion, or The Man at the Wheel, composto por atos musicais e esquetes repletos de humor e diálogos sugestivos. Mas a grande repercussão da peça foi causada pelo uso de figurinos considerados provocantes para o período; as artistas utilizavam meia-calça e interpretavam os papéis masculinos.

Lydia Thompson vestida de Ganem, com macacão listrado e botas de couro
Lydia Thompson vestida de Ganem para a peça The Forty Thieves (Henry B. Farnie, 1869) [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

As produções foram muito populares e também objetos de debate. Alguns integrantes da sociedade exaltaram as mulheres por lutarem contra as normas de vestimenta, em uma época em que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, apenas vestidos longos eram aceitáveis para as damas. Outros, porém, ficaram aterrorizados. Os jornais da época publicaram matérias em que chamavam-nas de imorais, prostitutas e consideravam os shows baixos e degradantes.

Com o crescimento do burlesco, no início do século 20, os donos dos teatros buscaram formas de expandir os negócios. Inspirados pelo gênero teatral Vaudeville, que misturava música, comédia e apresentações de variedades, como números de mágica, acrobacias, e que contava até mesmo com a presença de animais, os teatros formaram circuitos de apresentação com renovações semanais. Em alguns desses shows, os gêneros Vaudeville e Burlesco se misturavam.

Pôster do espetáculo da trupe The Sandow Trocadero
Pôster promocional do espetáculo da trupe The Sandow Trocadero Vaudevilles (1894) [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons] 

O cinema e a decadência do burlesco

Os teatros burlescos seguiram em franco crescimento até a promulgação da Lei Seca, em 1920, nos Estados Unidos, que causou o fechamento de muitos estabelecimentos, devido a dificuldades financeiras. Em contrapartida, muitas casas noturnas foram inauguradas, locais marcados pela venda clandestina de bebidas. Esses espaços foram responsáveis por um novo fôlego da arte burlesca e pela incorporação de um novo elemento ao espetáculo: o strip-tease.

A exploração da nudez não era novidade nos palcos. Anos antes, surgiram as tableau artists, “estátuas vivas” seminuas. A diferença crucial que o burlesco trouxe foi a adição do humor e da provocação clandestina: as performers precisavam ser cuidadosas para não serem presas por corrupção da moral. Os preços baixos e o entretenimento oferecido atraíram um público considerável, já que o país também sofria com a Grande Depressão, um período de grande crise financeira.

Em 1937, o então prefeito de Nova York, Fiorello LaGuardia, instituiu o fechamento dos teatros burlescos remanescentes na cidade, caracterizando-os como estabelecimentos sujos. Como resposta ao fechamento, o burlesco migrou para as telas do cinema. Um dos precursores foi o diretor americano W. Merle Connell, cuja principal obra foi French Follies (1951), na qual há uma representação fiel de um espetáculo burlesco. Para o filme ele contemplou as cortinas do palco teatral, os números de dança e as esquetes de comédia.

Apesar de outros sucessos cinematográficos burlescos como Striporama (1953) e Naughty New Orleans (1954), as duas décadas seguintes marcaram a decadência do gênero. Enquanto na maioria dos sucessos burlescos a sexualidade era representada de forma implícita, outras correntes cinematográficas exploraram a nudez explícita, que se tornou cada vez mais comum no mainstream. O burlesco, que antes era um dos poucos gêneros que exploravam a sensualidade, deixou de ser chamativo.

Pôster do filme Striporama
Pôster do filme Striporama [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

‘New Burlesque’: ressurgimento e resistência

Em 1993, após ser eleito prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani instaurou a política de tolerância zero ao crime e um programa de limpeza cívica como forma de combater a desordem social, o abandono e o vandalismo. Para isso, Giuliani decidiu remover as pessoas em situação de rua e os clubes noturnos da região da Times Square.

O New Burlesque, desdobramento mais recente do movimento burlesco e chamado de Neoburlesco no Brasil, surgiu como forma de expressão desses corpos marginalizados socialmente. Diferente das apresentações burlescas dos anos anteriores, a serviço da indústria do entretenimento, o novo movimento propôs uma abordagem do corpo enquanto instrumento de luta política.

Outra diferença crucial foi o público. Antes, as apresentações eram feitas para entreter uma plateia predominantemente masculina e heterossexual. Hoje, estes espaços são ocupados por mulheres e homens, muitos integrantes da comunidade LGBTQIAPN+.

Ainda na década de 90, foi realizado o primeiro concurso e convenção Miss Exotic World Pageant, organizado pela dançarina burlesca Dixie Evans, que tinha o objetivo de atrair o público para o Exotic World Burlesque Museum, na Califórnia. O museu foi uma ideia da amiga de Evans, Jennie Lee, que reuniu objetos relacionados a apresentações burlescas, mas foi vítima de um câncer antes de concluir o projeto.

Em 2006, o museu foi transferido para Las Vegas e revitalizado, recebendo  o nome de Burlesque Hall of Fame. Além de preservar objetos e figurinos, o espaço também oferece aulas individuais e em grupo para todos os níveis, exibição de filmes e materiais para pesquisadores e jornalistas. Anualmente, o concurso escolhe a Living Legend of the Year — Lenda Viva do Ano —, uma performer que tenha feito uma contribuição significativa para a história do burlesco. 

Fachada do museu Burlesque Hall of Fame
Fachada do museu Burlesque Hall of Fame [Imagem: Reprodução/Instagram @burlesquehall]

E o Brasil?

O Neoburlesco chegou ao Brasil em 2006, após a apresentação da americana Michelle L’amour em São Paulo. Influenciadas por ela, artistas brasileiras como Fascinatrix e Sweetie Bird passaram a se dedicar à arte. Segundo a performer burlesca Wanuza, o gênero ainda é pouco difundido no Brasil. “Eu descobri o burlesco pela internet, durante a pandemia, mas não conhecia pessoas que praticassem”, conta. 

Apenas em 2015 foi realizado o primeiro festival burlesco brasileiro: o Yes, Nós Temos Burlesco!. Realizado no Rio de Janeiro, o evento foi fundado pelos artistas Miss G e DFenix com o objetivo de fomentar a criação de uma comunidade burlesca nacional, a partir da troca de informações sobre empoderamento, corpo e sexualidade. Outro festival realizado no Brasil é o POA Burlesque, que surgiu em 2017 e acontece na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

As performances brasileiras não são baseadas em peças ou paródias teatrais como antigamente; agora, elas são acompanhadas por músicas, geralmente enquadradas no gênero pop, e apresentam figurinos brilhantes e dotados de muitos decotes. O strip-tease é visto como uma “técnica de atuação que possibilita uma comunicação mais imediata com o público”, aponta Giorgia Conceição, mestre em Artes Cênicas pela UFBA, em seu ensaio “Qual é o lugar do Burlesco no Brasil?”.

Para Jamille, estudante de artes cênicas e dançarina burlesca da cidade de Cajamar, em São Paulo, a organização de eventos desse tipo é essencial para o fortalecimento do gênero no país. “O burlesco é um movimento de resistência. Quando estamos unidos, podemos ocupar mais espaços que antes eram negados a pessoas como nós, que estão fora dos padrões sociais”, argumenta. Wanuza concorda e acrescenta que eles também são importantes para a criação de um público e de novos artistas interessados em explorar o burlesco.

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