Por Larissa Bilak (larissabilak@usp.br)
O primeiro sequenciamento do genoma humano foi realizado nos anos 2000 com o Projeto Genoma Humano, concluído em 2003. Com ele, atingiu-se um patamar nos estudos de genética jamais visto antes: 92% de nosso genoma passou a ser propriamente conhecido, causando uma revolução na medicina e na própria forma de se compreender o corpo humano.
Entretanto, essa história certamente é mais conhecida por profissionais da saúde, da biologia e de áreas correlatas. Apesar da sua importância, ao tratar do público geral, pouco se sabe sobre a genética e a importância de suas propriedades além das – supostamente – conhecidas adenina, citosina, timina e guanina.. O Projeto Genoma Humano é até mesmo comparado à chegada do homem à Lua, mas o que é genética mesmo?
Para além das bases nitrogenadas: o que é genética?
Para Guilherme Francisco, doutor em oncologia e biologia do câncer e professor de biologia no ensino médio e em cursos pré-vestibulares, “genética é a ciência que estuda os genes, a hereditariedade e a variação dos organismos. Ela investiga como as características e traços são transmitidos dos pais para os filhos e como os genes se estruturam, se expressam, como são regulados, quais suas funções e como eles interagem entre si e com o ambiente”.
Os genes, citados pelo professor, são segmentos de uma molécula de DNA, também conhecida como ácido desoxirribonucleico. Apesar do nome difícil e do fato deste conceito remeter às bases nitrogenadas que compõem o DNA – adenina, timina, citosina e guanina – junto a grupos fosfato e moléculas de açúcar, compreender a importância dessa molécula é muito mais fácil. “O DNA é uma molécula que contém as instruções biológicas que formam todos os seres vivos. […] A sequência das bases presentes em uma fita de DNA codifica as informações genéticas necessárias para a construção e manutenção de um organismo”, diz Guilherme.
Um conjunto completo do DNA de um organismo forma um genoma, conceito estudado no projeto científico revolucionário que foi concluído em 2003. Segundo Guilherme, o genoma contém todas as informações necessárias para construir e manter um organismo, bem como para permitir sua reprodução.
O Projeto Genoma Humano (PGH)
O Projeto Genoma Humano foi uma das iniciativas mais ousadas da área das ciências e envolveu inúmeras equipes e investimentos ao redor do mundo. Ele foi iniciado no dia 1 de outubro de 1990 e concluído apenas em 14 de abril de 2003. O objetivo principal do sequenciamento era construir uma base de informações que pudesse auxiliar o campo da medicina com foco nas síndromes relacionadas à exposição à radiação. Entretanto, as contribuições do trabalho transbordaram as margens primordialmente estabelecidas e trouxeram uma revolução para a percepção médica e biológica do corpo humano.
“O Projeto Genoma Humano foi uma iniciativa internacional que mapeou todo o genoma humano, identificando aproximadamente 20.000 a 25.000 genes. O projeto facilitou avanços significativos em biologia molecular e medicina, proporcionando diagnósticos e tratamentos mais precisos. Ele continua a impactar a pesquisa biomédica e o desenvolvimento de novas terapias até hoje”, afirma o professor.
Alcançando novos patamares científicos
Desde a conclusão do trabalho, muitos avanços científicos puderam ser observados. Por isso, o sequenciamento é comparado, até os dias de hoje, à chegada do homem na Lua. “Ambas as realizações exigiram enorme esforço colaborativo, inovação tecnológica e recursos substanciais. Além disso, elas abriram novas fronteiras para futuras pesquisas e possibilidades, influenciando profundamente o desenvolvimento científico e tecnológico”, discorre Guilherme.. A comparação também pode ser vista em um sentido metafórico, como proposto pelo professor Roberto Tavares, licenciado em Ciências Biológicas pela UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) e professor de biologia na rede SESI e na FIEB:
“Mapear o DNA humano é como conhecer e saber transitar em um novo universo”
Roberto Tavares Rodrigues
Dentre as evoluções científicas mais significativas na área da genética desde a publicação do Projeto Genoma Humano, o professor Guilherme destaca e discorre sobre algumas delas:
- Sequenciamento de Nova Geração (NGS): tecnologias de sequenciamento mais rápidas e baratas permitiram a sequenciação completa de genomas em poucos dias, tornando a genômica mais acessível e prática.
- Medicina de Precisão: desenvolvimento de tratamentos personalizados baseados no perfil genético dos pacientes, melhorando a eficácia e reduzindo os efeitos colaterais.
- Edição de Genes: ferramentas como CRISPR-Cas9 revolucionaram a capacidade de editar genes de forma precisa e eficiente, com aplicações em pesquisa básica, terapia genética e agricultura.
- Genômica Preditiva: avanços na análise de grandes volumes de dados genéticos permitem prever riscos de doenças e respostas a tratamentos com maior precisão.
- Biobancos e Big Data: criação de grandes biobancos com amostras genéticas e dados de saúde, facilitando estudos epidemiológicos e a descoberta de novas associações genéticas.
Dessa maneira, os resultados do Projeto Genoma Humano e de outros estudos genéticos são percebidos em nosso cotidiano a partir de diagnósticos mais precisos, fabricação de medicamentos mais específicos, terapias personalizadas com menores efeitos colaterais para doenças como o câncer e tratamentos de doenças realizados com maior rapidez. Guilherme cita como exemplo o diagnóstico da doença fibrose cística: “doenças genéticas raras, como a fibrose cística, podem ser diagnosticadas mais rapidamente através de testes genéticos que identificam mutações específicas no gene CFTR. Isso permite um tratamento mais rápido e apropriado”.
Os estudos em genética melhoram a qualidade de vida da população e trazem maior esperança para famílias com indivíduos com doenças genéticas graves. No caso da atrofia muscular, por exemplo, novos tratamentos permitem que crianças com a condição possam desenvolver habilidades motoras que anteriormente eram impossíveis. Além disso, a melhor compreensão biológica de condições de saúde promovem maior apoio às pessoas afetadas e menos estigmas, segundo Guilherme.
Para além da medicina, os trabalhos na área genética também são importantes para a agropecuária e a manutenção de ecossistemas. “A pesquisa genética fornece ferramentas para melhoramento genético de plantas e animais, bem como para a preservação de espécies ameaçadas”, afirma Guilherme. Tais estudos também ajudam a compreender a evolução das espécies, aprofundando nosso conhecimento sobre a história e a diversidade da vida na Terra.
O Brasil no mundo genético
O Brasil e seus cientistas certamente não ficaram de fora e continuam possuindo um papel importantíssimo no campo dos estudos sobre genética. O recente cenário da pandemia do COVID-19 evidenciou essa participação: o professor Roberto Tavares relembra a equipe brasileira que sequenciou o genoma SARS-CoV-2 após apenas 48 horas da confirmação do primeiro caso da doença no país. “Uma das integrantes da equipe é a pesquisadora Jaqueline Góes de Jesus, doutora em patologia humana pela Universidade Federal da Bahia”, acrescenta.
Guilherme Francisco também concorda com a importante atuação brasileira na área. Ele diz que o país tem feito contribuições significativas no estudo da genética, que incluem: o Projeto Genoma do Câncer; pesquisas sobre doenças tropicais como a malária e a doença de Chagas; o Projeto Genoma da cana-de-açúcar; e estudos genéticos sobre a diversidade biológica dos ecossistemas brasileiros.
O outro lado dos estudos genéticos
Um dos desafios impostos aos projetos genéticos, além dos altos custos de investimentos, da complexidade de estudo e da exigência de formação e capacitação especializada dos pesquisadores, são as questões éticas e legais.
“A privacidade e a segurança dos dados genéticos são preocupações cruciais, pois a proteção dessas informações é essencial para evitar discriminação e uso indevido”, comenta Guilherme ao discorrer sobre as possibilidades de uso de predisposições genéticas para tomar decisões prejudiciais contra os indivíduos. Roberto também comenta sobre discriminação genética e a possibilidade de “bebês projetados”: “conhecendo o genoma humano, existe a possibilidade de que queiram promover uma seleção artificial de indivíduos com as características desejadas por determinados grupos da sociedade, tendendo ao preconceito”.
Essas problemáticas levantam debates sobre eugenia e segregação, além de implicarem questões éticas relacionadas à alteração do patrimônio genético humano. Na legislação brasileira, mais especificamente na Lei N°11.105, de 24 de março de 2005, essa questão expressa-se na proibição de intervenções de qualquer tipo sobre o patrimônio genético sem fins terapêuticos.
A desigualdade de alcance dos benefícios dos estudos genéticos também é salientada como uma problemática pelo professor Guilherme: “acesso desigual às tecnologias genômicas pode exacerbar as disparidades de saúde entre diferentes grupos socioeconômicos e geográficos, criando um abismo ainda maior entre os que podem se beneficiar desses avanços e os que não podem”.
É essencial que as Instituições trabalhem em conjunto para gerir a proteção dos dados genômicos, seus usos e possíveis benefícios. “Essas questões exigem um diálogo contínuo entre cientistas, legisladores, profissionais de saúde e a sociedade, para garantir que o avanço científico na genética seja equilibrado com a proteção dos direitos individuais e sociais, promovendo um uso ético e justo das tecnologias genômicas”, comenta Guilherme.