Por Mariana Ricci (mariana.ricci@usp.br) e Samuel Cerri (samuel.cerri@usp.br)
*Este texto contém spoilers do filme Ainda estou aqui (2024)
Engenheiro, deputado e pai de cinco filhos, Rubens Paiva é um nome fundamental na política brasileira. Expoente da oposição do Regime Militar, Paiva foi perseguido e assassinado na década de 1970. Sua história é contada no livro Ainda Estou Aqui (Companhia das Letras, 2015) de seu filho, Marcelo Rubens Paiva, que foi adaptado para as telonas em um filme de Walter Salles, estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello. A estreia de Ainda Estou Aqui (2024) aconteceu ontem (8) em todo o Brasil.
Nascido em Santos, Rubens Beyrodt Paiva se graduou como engenheiro pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e foi deputado federal de 1962 até o golpe militar, instalado no Brasil em 1964. Durante os anos como parlamentar, Paiva lutou pela nacionalização das indústrias do país, em especial a do petróleo, e questionou o domínio estadunidense no território brasileiro.
Paiva teve seu mandato cassado e foi exilado após a implementação do Ato Institucional nº1 (AI-1), decreto que permitiu a anulação de mandatos legislativos, efetivamente instituindo a ditadura no país. Acompanhado de Eunice, sua esposa desde 1952, e os cinco filhos do casal, ele fugiu para a Europa e retornou ao Rio de Janeiro no ano seguinte.
Em janeiro de 1971, a casa do ex-deputado foi invadida por oficiais do Exército Brasileiro. Ele teria sido confundido pelo serviço de inteligência com um contato de Carlos Lamarca, homem mais procurado pela Ditadura à época. Rubens então foi levado para depor no quartel do comando da III Zona Aérea, assim como Eunice e Eliana Paiva, sua filha. No dia seguinte à prisão, ele foi transferido para o Destacamento de Operações Internas (DOI), local onde foi torturado.
Na madrugada seguinte, o médico do DOI Amílcar Lobo foi chamado ao quartel e viu um prisioneiro nu, com hematomas pelo corpo e sinais de hemorragia interna. Aquele era Rubens Paiva, quem Lobo afirma em testemunho ter morrido no local em decorrência dos ferimentos da tortura. Nos anos que se seguiram, os responsáveis se mantiveram omissos e seu desaparecimento não foi endereçado por autoridades oficiais.
Após a morte, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1971, o corpo de Rubens Paiva foi enterrado em região próxima ao Alto da Boa Vista. O corpo foi retirado do local quando obras de uma avenida se iniciaram nas proximidades, levando os militares a temerem que o cadáver fosse descoberto. Ele foi enterrado pela segunda vez nas areias da praia do Recreio dos Bandeirantes, região quase desabitada.
Dois anos mais tarde, Paulo Malhães, oficial do Exército, liderou uma operação pela busca do corpo novamente. Após 15 dias, a equipe de busca, disfarçada de turistas, desenterrou o corpo ensacado de Rubens Paiva, o levou até um iate e, por fim, arremessou o cadáver do ex-deputado em alto mar. O corpo permanece desaparecido.
A morte de Rubens Paiva só foi confirmada em 1996, 25 anos após seu desaparecimento, quando foi emitido seu atestado de óbito. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade coletou depoimentos de ex-militares e denunciou o ex-tenente do exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho, oficial do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) ligado à Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) como assassino de Paiva.
Apesar da Lei da Anistia (n° 6.683), que beneficiou os torturadores da Ditadura, o Ministério Público Federal (MPF) abriu denúncia contra quatro militares em 2014. Os réus foram José Antônio Nogueira Belham (comandante do DOI durante o assassinato de Paiva), Raymundo Ronaldo Campos (que forjou o desaparecimento de Rubens), e os irmãos Jacy Ochsendorf e Jurandyr Ochsendorf, também envolvidos no encobrimento do assassinato de Rubens Paiva.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, o caso foi esquecido. O ex-militar é conhecido por suas apologias à tortura, como quando glorificou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra no impeachment de Dilma Roussef na Câmara. Os ataques à ex-presidente se repetiram durante seu mandato, que abriu pouco ou nenhum espaço para que as vítimas da Ditadura Militar fossem rememoradas. Em entrevista ao Brasil de Fato, Vera Paiva relatou o episódio em que Jair Bolsonaro, então deputado, xingou familiares e investiu contra o busto de Rubens Paiva que estava sendo inaugurado na Câmara Federal.
Cinquenta anos após o assassinato de Rubens, seus filhos ainda não viram os culpados punidos. A demora é tanta, que três dos cinco militares acusados do assassinato já faleceram.
Em abril de 2024, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos anunciou a reabertura da investigação sobre o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva. Não há momento mais oportuno para que Ainda Estou Aqui ganhe o mundo e conte a história que, por anos, foi esquecida.
A história nas telonas – Alerta de spoiler!
A trajetória de Rubens Paiva contada na literatura pelo olhar de seu filho, Marcelo Rubens Paiva, ganhou também espaço nas telonas. Ainda Estou Aqui foi exibido em festivais de cinema de todo o mundo, chegou ao Brasil pela primeira vez na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e está em cartaz nos cinemas a partir de hoje (8).
Com um recorte temporal nos meses finais da vida de Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui transforma em arte um dos mais traumáticos momentos da história do Brasil: a Ditadura Militar. O filme traça uma linha do tempo que escancara a agonia da família Paiva frente à omissão do Estado, jogando luz no descaso com que o caso ainda é tratado. Toda a construção da obra, desde a narrativa até sua exposição em festivais internacionais transborda a essência brasileira da década de 1970.
Uma maior complexidade desse momento histórico vem à tona numa cena específica, quando um militar faz questão de cochichar a Eunice: “Só quero que você saiba que eu não concordo”. Essa simples sentença deixa um gosto amargo na boca, porque faz o espectador questionar o quão legítimo era aquele regime até mesmo para os próprios militares. É como se Walter Salles dissesse ao público: da mesma forma que alguns civis apoiavam a Ditadura, alguns soldados – especialmente de baixa patente – eram forçados a sujar suas mãos para mantê-la.
A violência é retratada de forma subjetiva, perceptível em sequências como a da prisão de Eunice e sua filha. Foram dez dias enclausuradas em uma pequena cela, quando só viam a luz do dia indo à sala de interrogatório. Salles constrói um desencadeamento de cenas que transporta o espectador àquele momento e faz um retrato histórico fiel de como qualquer cidadão naquela sociedade militarizada estava suscetível a enfrentar o interrogatório seguido de prisão ou tortura. A construção da sala de interrogatório e da cela da protagonista como ambientes pouco iluminados agregam esta percepção.
A força e a fragilidade de Eunice se completam na cena em que toma banho pela primeira vez desde a prisão. Uma de suas filhas assiste à mãe pela fresta da porta entreaberta. Era a primeira vez que a via desde que fora levada e o olhar da pequena Nalu transpassa o choque da brutalidade com que Eunice esfrega a si mesma.
Completamente nua, vulnerável, seu corpo magro se encolhe de tal forma que é possível ver cada osso, fruto das semanas de precariedade no quartel. É assim que o público compreende a real tortura que Eunice sofrera nos dias que ficou encarcerada e que ainda conviveria nos anos que se seguiram: a psicológica.
Eunice Paiva é a todo momento retratada como essa mulher forte, que passa por um processo de luto e profundo estresse da forma mais serena que pode. O sorriso que ela esboça em momentos do longa sempre transmitem a angústia, a ternura e a confiança de uma mulher determinada a encontrar seu marido, proteger sua família e não deixar sua vida ser destruída.
“Vão se arrumar para irmos tomar sorvete”, diz Eunice a seus filhos logo após receber a notícia da morte de Rubens. O filme retrata o momento de forma subjetiva e o espectador não se dá conta de imediato do que acabara de acontecer, e só o compreende por meio da atuação sagaz de Fernanda Torres nos minutos subsequentes.
O movimento acelerado dos olhos marejados e a boca trêmula de Eunice passam a emoção que nenhuma palavra poderia. Ainda assim, ela leva seus filhos à sorveteria e enquanto percorre o olhar pelas risadas das famílias que estão ali, abre um sorriso sereno e impassível, que consola o espectador.
*Imagem de capa: Reprodução/Memorial da Democracia