Um avião cai em uma ilha deserta e deixa como sobreviventes apenas um grupo de crianças britânicas de idades variadas. Começa Senhor das Moscas (Alfaguara, 2021), que vai explorar a constante relação entre impulsos primitivos e o imaginário da civilização — e se engana quem acha que essa tensão se limita à ilha.
Logo no começo vemos se estruturar um conflito fundamental da narrativa: de um lado, Ralph, jovem distraído, porém cativante, que vira um símbolo por ter sido quem juntou primeiro todos os sobreviventes. Do outro, Jack: acostumado com a liderança de um coro que o acompanha desde a vida pré-acidente, hesita em aceitar a liderança de Ralph.
Desde a primeira cena ao lado de Ralph, Porquinho completa o trio mais importante para a história. Constantemente oprimido por seu sobrepeso, o personagem é tímido e inseguro. Mas é o verdadeiro cérebro por trás de Ralph e, no fim das contas, por trás de toda a ilha.
A trama sempre retorna a questões fundamentais da civilidade, que ecoam pensadores como Rousseau e Hobbes. Qual é a relação do homem com a sociedade? Somos naturalmente bons ou maus? O quão artificiais são as estruturas da civilização? Quando vemos no livro essas tensões, não estamos lendo apenas sobre aquela ilha, mas sobre a vida social mais ampla.
O tempo todo, durante a leitura, somos forçados a refletir sobre a fragilidade do que são ficções: leis, dinheiro, países, grupos, cultos e muito do que chamamos de civilização. Mas também somos lembrados da essencialidade e da inevitabilidade de ficções na organização humana.
A obra de William Golding, ainda que não chegue a ser um ensaio, trabalha em cima de anseios reais, o que provavelmente pode ser dito de todos os grandes clássicos da literatura. Mas se engana quem acha que, sendo clássico, é um livro difícil de ser lido. A linguagem é simples e eficaz, o que ajuda a entender o amplo sucesso de Senhor das Moscas com leitores mais jovens.
Muito pode ser e já foi dito sobre esse livro, mas vale ressaltar: em última instância, todos nós, leitores e não leitores, somos nativos da ilha.
*Imagem de capa: Diogo Bachega Paiva/Jornalismo Júnior