O modelo de consumo associado ao audiovisual internacional é tipicamente grandioso. A imagem é clara: intensas luzes da ribalta em tapetes vermelhos, grandes nomes estampados em telas enormes, estúdios ainda maiores e arrecadação bilionária. E, ainda que não seja incorreta, essa ideia contempla uma parcela muito limitada do conteúdo produzido e está inquestionavelmente datada. Em contrapartida, especialmente nos últimos 20 anos, cresce um expoente que pode tomar – ou já está tomando – o protagonismo do cinema, mesmo que sua escala física seja reduzida: a televisão.
O espaço que a teledramaturgia ocupa, tanto no mercado quanto no imaginário popular, há pouco era inédito. O universo do que se passava em um televisor era completamente remoto do que havia fora de sua realidade. Desse modo, eram pontos fora da curva as produções televisivas de nomes renomados, como o notável seriado Alfred Hitchcock Apresenta (1955-1965), antologia de suspense do icônico diretor.
É inegável, no entanto, a fluidez com a qual cinema e TV vêm dialogando ao menos nos últimos 20 anos, tanto em mão de obra quanto nas linguagens adotadas. O que é digno de espanto é que a programação disponibilizada ao público, seja por serviços de streaming ou redes tradicionais, atingiu um patamar de qualidade e variedade rentável que está longe de ser visto nos lançamentos de grande orçamento e distribuição da sétima arte. Mas a jornada para isso não foi simples.
Crises em série
Para Ana Maria Bahiana, jornalista cultural de longa data e eleitora do Globo de Ouro há três décadas, a história da TV “é uma série de crises existenciais que levam à evolução”. O advento da máquina televisiva no início do século 20 era, a princípio, do proveito de poucos. Ela relata que foi necessária a criação de uma identidade para o meio – que se configurou como uma colagem de influências do rádio e do teatro, a fim de consolidar sua base.
A partir do momento em que a posse de um televisor se tornou comum, a programação se expandiu e passou a abranger, principalmente, eventos ao vivo, game shows e programas de variedade. Eram os anos 1950 e se configurava a Primeira Era de Ouro da Televisão, muito alheia às noções de excelência narrativa que atribuímos à era atual. Foi algo determinante do que seria o código televisivo daquele momento: simplista, chamativo, simultâneo e apelativo às massas.
Por outro lado, novos seriados logo ocupariam seu espaço e estabeleceriam padrões inéditos em formato, temática e técnica. É nessa época que Lucille Ball se torna um ícone da cultura estadunidense com I Love Lucy (1951-1957). Não muito depois, há também o momento de glória da ficção científica. Mesmo transmitidos em horários mais tardios na grade e feitos com orçamento reduzido, programas como Além da Imaginação (1959-1964) e Perdidos no Espaço (1965-1968), segundo Ana Maria, foram “a semente do que seria o boom de ficção científica no futuro”, levando até mesmo à saga Star Wars.
Essa centelha da influência da televisão no consumo cultural, mesmo que focalizada em casos específicos, é seguida por uma torrente de diversas abordagens e novos sucessos. As famosas sitcoms (comédias gravadas em frente de plateia) e os dramas procedurais (que contêm arcos isolados em cada episódio) crescem nos anos 1970, período de crise global que estimula os espectadores a procurarem histórias mais sagazes e humanas. É o trunfo, por exemplo, de The Jeffersons (1975-1985), uma das primeiras a ser protagonizada por uma família afro-americana e indício da disposição do meio a tocar em assuntos estigmatizados — e oferecer a representatividade que escapava das salas de cinema em arrasa-quarteirões, os blockbusters.
Para Ana Maria, é também nessa década que o reconhecimento do meio passa a crescer: “No momento em que você começa a ter a durabilidade daquele conteúdo, ele ganha uma academia de televisão e um instituto sobre televisão, criam-se videotecas, ganha-se status. E no final dos anos 70 há uma nova revolução: a chegada da HBO e da TV a cabo”.
Diferentemente das redes abertas, a televisão paga não contava com anunciadores como a espinha dorsal de seu financiamento, e captava seus recursos com a arrecadação das inscrições. Desse modo, gozava de elevada liberdade criativa. Logo em seus primórdios, a HBO almejava servir a um nicho mais maduro, ao qual a linguagem televisiva não contemplava. Isso significou a transmissão de filmes de sucesso, mas também a produção de originais. Não demorou para que a posição monopolística em que o canal se encontrava incomodasse os estúdios de cinema. Com 12 milhões de inscritos em uma década de existência, a rede intimidava o mercado cinematográfico, que temia uma reforma completa do modelo de distribuição de filmes.
Protagonistas pioneiros
Esse conflito de Davi e Golias se apaziguou momentaneamente em coexistência, mas, por volta do ano 2000, os avanços da TV chegaram a novos patamares. O cinema, marcado pela proeminência de um modelo voltado aos grandes investimentos, abandonou a aliança com pequenos e diferenciados criadores, que foram então relegados majoritariamente à produção independente. Mas, para além dos confins de duas horas de duração, esses artistas encontraram solo firme na televisão a cabo, liberta, em parte, dos interesses de um capital estrangeiro ao conteúdo.
É assim que uma série como Twin Peaks (1990-1991), de David Lynch, devota da linguagem experimental e alinear, consegue se tornar um clássico cult, assim como produções livre de pudor florescem, feito A Escuta (2002-2008) e Sex and the City (1997-2003), que introduzem com honestidade realidades como o crime e a libertação sexual à sala de estar do espectador. Agora era a televisão que passava a se apropriar de elementos cinematográficos, no que Ana Maria Bahiana chama de “paridade quase que total”.
A televisão a cabo apoiava-se fortemente na pesquisa de mercado para seu sustento, e assim novos consumidores passaram a ser reconhecidos. A partir do ponto em que produtores tomam conhecimento proativo das possibilidades de conteúdo a serem exploradas, uma gama de histórias passa a ser produzida, e não só se faz lucrativa como responde antigas exigências de grupos marginalizados. Esse sucesso vaza para a programação aberta e resulta em marcos culturais, como a saída do armário de Ellen Degeneres em sua sitcom Ellen (1994-1998) e o primeiro retrato aprofundado de um casal lésbico em Buffy: A Caça-Vampiros (1997-2003).
Vera Tocantins, colunista do Série Maníacos, maior blog brasileiro independente sobre séries, diz que “a representatividade nas mídias é vital para a sociedade e é um lembrete de como sua possível ausência pode causar uma morte simbólica nas gerações vindouras”. Desse modo, o desejo de vitalidade da TV se tornou um dos maiores caracterizantes das produções contemporâneas e potencializou o meio. Fleabag (2016-2019), por exemplo, sobre uma jovem despedaçada e irreverente, atingiu sucesso que sintetiza a aversão a narrativas simplistas na atual Era. Em outro fronte, é possível o sucesso de uma série estrelada majoritariamente por atrizes transgênero. Pose (2018- ) explora em profundidade as vivências de suas protagonistas, enquanto as expressões LGBTQI+ do cinema de amplo lançamento são mais tímidas, como em Com Amor, Simon (2018).
Novos alicerces
Os nomes que criam TV hoje estão longe de serem limitados apenas a essa atividade. Damien Chazelle, David Fincher e Steven Spielberg, diretores ao menos indicados ao Oscar, já trabalharam com séries. Sofia Coppola e Bong Joon Ho têm lançamentos programados. Todos continuam os esforços de Hitchcock e Lynch.
Esther Hamburger, pesquisadora do Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual da USP, faz questão de destacar também o trabalho de Roberto Rossellini, mestre do realismo italiano dos anos 1960 e 1970 que enxergava a televisão como utopia, através de “filmes históricos, distanciados, filmados em estúdio, pensados para potencializar a vocação didática que o diretor atribuía ao meio, que teria vindo para democratizar o conhecimento”. Paralelamente, na contemporaneidade, essas qualidades costumam ser atribuídas ao advento da internet como mecanismo de consumo da ficção.
Não mais confinados à telinha na frente do sofá, para a alegria ou descontentamento, criadores estão em telas ainda menores, apesar da grandiosidade de seus trabalhos. Os serviços de streaming são a nova “crise existencial” da televisão e desassociam o conteúdo do televisor. Emergem os serviços online, e até mesmo as redes como a HBO têm de se adaptar a esse novo universo. Repagina-se o conflito passado entre a tela grande e a telinha, ao passo que o streaming ameaça não só a existência de salas de cinema, como a da própria televisão como equipamento.
Essa inovação no consumo é uma expressão do ímpar poder mercadológico atingido. O interesse do público é revitalizado, e passa a abranger, por exemplo, produções internacionais às quais o público estadunidense não estava habituado, como La Casa de Papel (2017- ) e 3% (2016-2020). Para Ana Maria Bahiana, esse sucesso é justificado pois “tudo que é remoto é o que funciona”, mas também pelos aguçados dados que tais corporações conseguem obter dos usuários. A Netflix e outras plataformas monitoram e mensuram diretamente o interesse e engajamento do público. Segundo a jornalista, “a pesquisa de mercado é muito precisa e a definição de qualidade é elástica. Existem centenas de milhares de usuários, e estão diversificando o catálogo para eles”.
Há quem veja nisso uma ameaça ao desenvolvimento do conteúdo serializado. Os serviços bombardeiam o espectador com novas obras ao passo que geram bolhas correspondentes aos interesses já declarados pelo usuário. Dessa maneira, a concepção de qualidade variável tende a apelar àquilo considerado comercial – que volta-se ao menos arriscado ou ao que já tenha base consumidora. O cancelamento de seriados mais custosos e diferenciados da Netflix, como Sense8 (2015-2018) e The OA (2016-2019), em predileção à continuidade de programas mais formulaicos, como Os Treze Porquês (2017-2020), ilustra isso. A cineasta Lulu Wang, por exemplo, chegou a recusar a venda de seu premiado filme A Despedida (2019) para o serviço por temer que seu nome, ainda desconhecido, ficasse perdido no imenso catálogo da plataforma.
Para Esther Hamburger, como o modelo sob demanda é dominante no meio, “há séries que ousam pensar em um público segmentado e a tratar questões de diversidade de gênero de maneira ousada. Mas mesmo assim, como narrativa audiovisual, são convencionais”. Por outro lado, Vera Tocantins enxerga “muitos formatos experimentais em execução neste momento, na tentativa de estreitar ainda mais essa relação [entre cinema e televisão] e, quem sabe, criar uma nova onda revolucionária”.
É, então, difícil determinar os impactos que virão. Segundo Esther, “a TV se junta ao cinema como meio anacrônico. Isso não significa que ela vá desaparecer. Uma tecnologia em geral não substitui a outra, embora gere ansiedade e temores de que sim, vai substituir”. Ela lembra que a lei de 2011 da TV a cabo brasileira possibilitou que um contingente de profissionais formados no cinema trabalhassem na televisão, estimulando a produção de conteúdos. “A lei foi muito positiva e teve um efeito rápido. No entanto, a atual crise reduziu o número de domicílios com assinatura de TV a cabo, levando a novas indagações”.
No recente mercado do streaming, a concorrência ainda está sendo formada. O serviço da Apple (Apple TV+), por exemplo, é marcado pelos investimentos multimilionários em futuros lançamentos, ao passo que Disney+ e HBO Max não ficam muito atrás. O sucesso dessas empreitadas causa receio de que, assim como o meio se apropriou dos elementos mais positivos de longas-metragens, seja acometido também pelos erros que os limitaram.
Em decadência ou reinvenção, a revolução televisiva moldou gerações e foi desbravadora de diversas frentes do mainstream. Enquanto a incógnita perdura, o público pode ainda usufruir dessa Era de Ouro através do portal caseiro, seja qual for seu formato, para arte, empatia e catarse, e fazer do sofá um assento marcado.