A cultura influencia o que é considerado normal em uma sociedade, mas nem sempre os mecanismos dessa influência são questionados no cotidiano: a rotina é normal, as roupas são normais, as atitudes são normais e a comida é mais normal ainda. Contudo, a imutabilidade aparente de certas estruturas culturais pode ser rompida por movimentos que apresentam alternativas possíveis. O vegetarianismo é um deles, ao se colocar na contramão da normalidade padronizada da identidade alimentar, traçada na essencialidade da carne animal em muitas sociedades.
Há várias terminologias em relação às fugas ao padrão alimentar baseado na carne, tais quais ovo-lacto-vegetarianismo, vegetarianismo estrito e veganismo. Uma pessoa ovo-lacto-vegetariana, subcategoria do vegetarianismo, é aquela que retira a carne das refeições diárias, consumindo vegetais preparados de variadas formas, mas que não exclui alimentos e outros produtos de origem animal, como leite, ovo e mel. Já um indivíduo vegetariano estrito não consome nenhum item alimentício que se origine de um animal nas refeições cotidianas. E, por fim, alguém vegano modifica não apenas seu consumo alimentar, mas também recusa produtos testados ou provindos de um ser senciente (capaz de ter sensações e sentimentos de forma consciente) em termos de alimentação, roupas, cosméticos e outros, o que torna o veganismo um estilo de vida.
Esses movimentos impulsionam grandes mudanças na dieta e no consumo dos indivíduos que os adotam, mas inúmeras vezes não passam uma imagem que todos consideram positiva, com taxações de radicalismo e elitismo, como exposto no estudo netnográfico conduzido pelo pesquisador Anderson Rodrigues na Universidade Federal de Lavras. Com contradições internas inerentes a qualquer movimento na sociedade, o vegetarianismo e o veganismo impulsionam reflexões sobre o consumo que passam por relações entre espécies, interesses econômicos e políticas públicas.
Mecanismos da padronização alimentar baseada em carne
De acordo com a doutora em sociologia pela USP Claudia Sciré, envolvida desde 2004 com a temática do consumo, “o ato de consumir está atrelado à construção de significados [sociais] que podem refletir determinadas simulações de poder”. A questão alimentar está inclusa em uma lógica capitalista, na qual a cultura é um elemento central: “As pessoas já consumiam carne antes da supremacia que a indústria da carne tem hoje. O que a gente percebe desse movimento [cultura do consumo de carne no cotidiano] é que ela apropriou-se, aproveitou-se desse caldo cultural que não era maioria vegetariano”. Essa apropriação e a construção de lógicas alimentares faz com que a carne seja encarada como essencial, o que amplifica a demanda e torna esse produto um dos mais caros no mercado alimentício.
Para a nutricionista pós-graduada em alimentação vegetariana Luma Abreu, a normalidade da carne na alimentação diária, mesmo quando há possibilidade de maior obtenção de nutrientes diretamente dos vegetais, é uma questão, além de cultural, histórica. “Antigamente as pessoas não tinham geladeira, dependiam muito do clima para cultivar alimentos. Logo, acabavam precisando comer mais animais. Quando a agricultura tornou-se mais tecnológica, e não se submetia ao tempo, aumentou-se a oferta de alimentos vegetais. No entanto, o consumo de carne continuou encrustado na cultura, tendo uma significação de riqueza”, afirma Luma.
Além disso, para uma população fortemente ligada à cultura do consumo de carne como a brasileira, a atração pelo sabor dessa mercadoria é produzida desde a infância e cultivada por toda a vida, com espaço restrito para experimentação ou cogitação de dietas alternativas, como ressaltado por Luma. O fato de haver uma descaracterização do formato reconhecível como animal no pedaço de carne, juntamente com os mitos que associam o ato de comê-lo diretamente a uma boa saúde, contribuem para justificar e apagar o processo que o leva até o prato. Segundo Cláudia, “chega-se a um grau de fetichização em que as pessoas não associam a carne ao animal”.
A diferenciação entre animais comestíveis e domésticos é outro ponto relevante na discussão, já que em teoria todos são animais que poderiam prover carne. Luma diz que “se a pessoa tem empatia pelo animal, não vai matá-lo porque consegue fazer essa associação de que ‘era um cachorro, era um gato’, mas, quando você compra no mercado e [a carne] vem em um pacote, não se faz essa associação”. Seguindo essa lógica, Claúdia elenca que existe um degrau que separa humanos e animais. “Como essa é uma construção muito antiga, inclusive a separação de animais domésticos e comestíveis, isso contribui para as pessoas não trazerem os animais domésticos ao nível dos que merecem ser comidos”, afirma. Logo, a estranheza sentida ao pensar em comer um animal doméstico, ou um animal considerado pouco comum na alimentação, segue uma linha de raciocínio baseada em empatia e cultura, desvinculando-se de um embasamento puramente nutricional.
Os mecanismos associados ao consumo de carne não estão aleatoriamente distribuídos na sociedade, mas são estruturados e mantidos por meio de investimentos em tecnologia, ciência e marketing, de forma que podem passar despercebidos se não estiverem vinculados a questionamentos da cultura e de certas apropriações da cultura pela indústria alimentar.
Carne, mitos nutricionais e agrotóxicos
Preocupar-se com a saúde é uma atitude cotidiana, e não é diferente no vegetarianismo. Apesar do mito do déficit nutricional em dietas vegetarianas, a única vitamina essencial para a saúde humana que não pode ser obtida dos vegetais é a B12. Luma explica: “A B12 não é de origem animal, mas sim de origem bacteriana. Os animais adquirem essa vitamina porque comem outros animais, consomem a bactéria no ambiente ou são suplementados”. Em razão disso, os vegetarianos e veganos devem ingerir a vitamina em sua forma industrializada, que é formulada com macronutrientes (carboidratos, proteínas e lipídios) e micronutrientes (vitaminas e minerais) em cápsulas, pílulas ou na forma líquida (injetável).
Todavia, a ingestão de carne não necessariamente garante um nível adequado de B12. A nutricionista ressalta que, em média, 50% das pessoas que se alimentam de carne não possuem quantidades adequadas dessa vitamina, tanto por dificuldades fisiológicas na absorção do nutriente quanto por uma provável redução no nível de bactérias decorrente da limpeza intensificada nos locais de criação animal.
Em termos nutricionais, outro aspecto a se considerar é a diversidade. Seja em uma dieta baseada no vegetarianismo ou em uma dieta que inclua produtos animais, é preciso ir além de uma rotina alimentar monótona — como é o caso do cardápio brasileiro, em que apenas dez itens compõem 45% da dieta. Sobre isso, Luma afirma: “É mais comum você ter excessos [que também podem ser prejudiciais] do que deficiências [nutricionais]. Portanto, seguir os hábitos alimentares padrões não indica necessariamente uma alimentação saudável, nem uma estabilidade nutricional, embora a alimentação possa ser equilibrada e alinhada a questões de culturas”.
Outra preocupação em relação à saúde são os defensivos agrícolas. Luma explica que a alimentação dos animais comestíveis criados pela indústria granjeira e pecuária convencional é baseada em vegetais com altos níveis de agrotóxicos e que essas substâncias prendem-se à gordura animal e não são liberadas. À vista disso, uma alimentação que considere apenas vegetais produzidos sem defensivos agrícolas que ofereçam risco à saúde — seja diretamente na alimentação vegetariana ou via animais que sejam nutridos com esse padrão vegetal — é uma alternativa mais segura. O desafio reside em garantir uma política agrícola que privilegie produtos orgânicos ou com uso mais restrito de defensivos, o que vai na contramão de medidas adotadas pelo governo atual, que bateu recordes de aprovação de defensivos agrícolas, inclusive o tolfenpirade, classificado pela Anvisa como altamente tóxico.
Assim, a construção de um cardápio socialmente aceitável não está atrelada somente ao fortalecimento da saúde da população, mas sim a questões mercadológicas ligadas à cultura e a políticas públicas. Luma afirma que “quando compramos um cigarro na embalagem vemos a frase ‘fumar mata’, mas as propagandas de presunto não têm ‘presunto mata’. Todavia, a carne vermelha e os embutidos (salsichas, presuntos, linguiças) aumentam o risco de câncer em humanos”.
Sejam em questões econômicas, culturais ou de saúde, os padrões de consumo que nos condicionam a um único caminho e segregam alternativas são passíveis de questionamentos sobre suas motivações e desdobramentos sociais. Já dizia Paulo de Tarso há quase dois mil anos: “Não se ajustem demais à sua cultura, a ponto de não poderem pensar mais”.