É comum associar o consumo de séries com a Internet e serviços de streaming, mas nem sempre a realidade foi essa. As histórias em capítulos surgiram por volta do século 19, sendo distribuídas de forma escrita por meio dos folhetins. Com a chegada dos outros meios de comunicação, as séries tiveram seu formato alterado, passaram pelo cinema, rádio e TV, até chegarem na forma mais popular atualmente: as webséries.
A palavra em inglês “streaming” significa “transmissão” e é utilizada para caracterizar uma tecnologia que permite o consumo de produtos audiovisuais online (são essas plataformas que abrigam as webséries), sem a necessidade de baixar os conteúdos. No Brasil, o serviço chegou em 2011, com a primeira aparição da Netflix. Desde então, o streaming é cada vez mais presente no território nacional, com serviços como o Spotify, Disney+, PrimeVideo e muitos outros.
População brasileira e o consumo de séries
De acordo com o antropólogo, professor e pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH – USP), Carlos Gonçalves, as webséries são aquelas assistidas no streaming, ou seja, “séries disponibilizadas no conjunto total delas”. Em outras palavras, é um novo modo de assistir às histórias, em que as temporadas são disponibilizadas de uma vez e não mais de maneira semanal, como era comum na televisão. Além disso, as webséries têm temporadas mais curtas — com de 3 a 10 episódios — em comparação às que eram veiculadas nos canais, uma estratégia para que sejam consumidas em menor tempo. Enquanto as séries de TV são produzidas para serem consumidas ao longo de um semestre de exibição na televisão, com cerca de 24 episódios por temporada, essas se tornaram famosas pela facilidade do público em “maratoná-las”, ou seja, assistir vários episódios de uma vez.
Em entrevista para a Jornalismo Júnior, o antropólogo expôs sua pesquisa sobre a recepção de webséries brasileiras na plataforma Netflix e compartilhou um pouco dos resultados de seu estudo: “‘Explodiu’ o consumo de séries depois do streaming”, relata, ressaltando que o Brasil é o segundo país com mais assinaturas na plataforma.
Com a chegada dessas plataformas, além do consumo das séries, a concorrência entre as empresas também aumentou, o que começou a exigir ainda mais das produtoras. Para o professor, esse novo modelo permite uma variedade ainda maior de produções: “há [espaço para] inovação com as séries menores, já que gastam menos na produção.”
O estudo realizado por Carlos analisou 14 séries brasileiras, de forma a afunilar a pesquisa para o estado de São Paulo, já que, segundo ele, a aceitação das produções de webséries nacionais depende de diversos aspectos, dentre eles, a região e fatores socioeconômicos. Por outro lado, a variedade dos conteúdos faz com que a maioria das faixas etárias sejam muito bem atendidas: “entre 18 a 60 [anos] o consumo é muito parecido, porque você tem séries para todos os públicos”, conta o pesquisador, ressaltando que nas 14 séries estudadas foram identificados seis gêneros diferentes.
“A produção é de altíssima qualidade, de altíssimo nível”, ressalta o antropólogo sobre as séries brasileiras, e ainda acrescenta: ” estão entre as melhores, [elas] superam as séries americanas [estadunidenses]. Não sou eu quem está dizendo isso, o público está dizendo”. A pesquisa realizada por Carlos abarcou mais de 900 pessoas no estado de São Paulo e evidenciou que o Brasil não só é o segundo país com mais assinantes da Netflix (atrás apenas dos Estados Unidos), como também avalia bem as séries nacionais: “Nós assistimos a muitas séries. Nós assistimos a séries brasileiras”.
Produções como Sintonia (Netflix, 2019-) e Cidade Invisível (Netflix, 2021-) tiveram grande adesão do público. Sintonia foi a terceira série de língua não inglesa mais assistida da empresa norte-americana, enquanto Cidade Invisível chegou a alcançar o primeiro lugar entre as dez séries mais assistidas da Netflix nos Estados Unidos. Ambas as webséries tratam de temáticas brasileiras (o cotidiano em comunidades paulistas e o folclore) e foram importantes para difundir a cultura nacional. Mesmo com a popularização dessas produções, o professor aponta um aspecto importante que atrapalha a valorização das séries brasileiras: o preconceito de parte da população com as produções.
“[As pessoas] têm dificuldade em enxergar a nossa produção, o nosso jeito de fazer. Achar que não é tão bom, que é uma bobagem. Parece que as pessoas acham que nós somos incompetentes para produzir algo ligado à internet e de altíssima qualidade”, aponta Carlos. O antropólogo acredita que há um “pré-conceito” por parte dos consumidores e dos próprios profissionais que elaboram as críticas para a grande mídia: “Quem trabalha na mídia [jornalistas e críticos] não tem uma boa formação cultural para lidar com isso [críticas às séries e produções brasileiras] e não tem um repertório da cultura brasileira. A situação é aprofundada quando é apontada a ideia de que o Brasil é um dos maiores consumidores mundiais de webséries: “Se nós somos consumidores, por que não podemos produzir?”
Essa descrença citada pelo pesquisador pode ter diversos fatores, os quais têm muitas origens não identificadas e muito profundas. De maneira geral, Carlos acredita haver um problema não apenas cultural, como também ideológico. “Como é que se cria uma ideologia?”, questiona o professor, ressaltando que os profissionais que fazem as críticas das produções muitas vezes não têm repertório suficiente, ou até mesmo formação de senso crítico, para evitar que estereótipos e preconceitos sobre as produções brasileiras sejam espalhados.
O preconceito evidenciado também ganha mais difusão por fatores políticos. Carlos ressalta que os estadunidenses, por exemplo, sempre tiveram o costume de oferecer em larga escala os seus produtos, fazendo com que a percepção deixada nos consumidores seja de que “o que é americano é bom”, aponta o professor, que defende que a produção cultural brasileira precisa ser incentivada pelo governo para que seja entregue à população o conhecimento acerca da própria cultura.
Por dentro da produção
Produzir uma série até que ela chegue como um produto final para os consumidores não é uma tarefa fácil e muito menos rápida. A roteirista Luíza Fazio, responsável por produções como Cidade Invisível e Sintonia, conta um pouco de como funciona a rotina de produção: “Tudo começa com uma ideia. A pessoa tem que escrever o que a gente chama de projeto de série”.
Como projeto de série pronto, o responsável pela ideia precisa levar o que escreveu para uma produtora: é ela que vai tentar vender a série para os serviços de streaming. “O mais difícil é vender uma série, porque não depende de você”, relata a roteirista, que aponta que esse processo depende de diversos fatores, entre eles a disponibilidade do mercado, a situação financeira das empresas e até mesmo um pouco de sorte, “estar no lugar certo, no momento certo”, brinca Luíza.
Com a aprovação da série pelo streaming, o trabalho passa a ser dos roteiristas, que se juntam em uma sala de roteiro para que debatam as ideias para cada episódio; “são de 8 a 10 horas debatendo ideias”. Quando a temporada já está desenvolvida, “cada roteirista vai escrever um episódio. É importante que todo mundo tenha a mesma visão da série, todos entendam como cada personagem fala, como cada personagem age. São seis pessoas escrevendo uma série, mas na hora de assistir não pode parecer que cada episódio é uma coisa diferente. Ter uma unidade narrativa é o mais difícil”, complementa Luíza. Escrever os episódios também faz parte da pré-produção e dura cerca de 8 a 10 meses. Após todos os roteiros estarem estabelecidos, a etapa de produção se inicia.
“Começa a produção: procurar atores, locação. São cerca de dois meses para gravar e depois de tudo pronto, nós temos o material bruto”, descreve a roteirista, acrescentando que após todas as gravações o material deve ser editado e colocado em um formato em que as pessoas consigam assistir. Essa pós-produção ainda não é o fim, “depois vem a pós da pós-produção: é a trilha sonora, a correção de cor. Enquanto isso, o streaming está pensando na estratégia de marketing, como vai ser divulgado, qual a melhor data para o lançamento. Não adianta a série ser boa e ninguém saber que ela existe”.
O processo de construção de uma websérie é desconhecido por muitas pessoas, assim como há um estranhamento da população com essas produções, o que não acontece com as novelas, por exemplo: “A única coisa que nós temos que é nossa são as novelas, você pensa novela e pensa Brasil, pensa América Latina”, ressalta Luíza. Assim como Carlos, a roteirista também acredita que a desvalorização das séries brasileiras tenha uma forte ligação política. “Nós tivemos um processo muito grande de colonização cultural. Tivemos diversas tentativas de desmanche do audiovisual do Brasil. O que ajudou muito [o audiovisual] foi a Lei da TV Paga, que é uma lei que obrigava os canais por assinatura a terem programação brasileira no horário nobre”. A lei citada por Luíza é a L12485, que propõe no Art. 16 que “nos canais de espaço qualificado, no mínimo 3h30 (três horas e trinta minutos) semanais dos conteúdos veiculados no horário nobre deverão ser brasileiros e integrar espaço qualificado, e metade deverá ser produzida por produtora brasileira independente”. Após a implantação dessa lei, a roteirista conta que os canais começaram a investir em produções brasileiras e atualmente há uma competição muito grande entre os streamings.
Luíza relata que para produzir uma série adequada para um streaming é necessário pensar nos aspectos universal e local ao mesmo tempo. A websérie Sintonia, por exemplo, é local, porque trata de periferias de São Paulo, da relação dos personagens com o funk e com a religião evangélica. “Ao mesmo tempo, é uma história sobre três jovens com seus sonhos. Todo mundo pode se identificar. Isso é universal”, conta a roteirista, que também exemplifica com a websérie Cidade Invisível: “É uma série policial, isso é algo universal. Mas é uma série policial envolvendo elementos culturais do folclore brasileiro e não existiria um lugar melhor para mostrar isso que o Brasil”.
A realidade periférica é muito bem retratada em Sintonia porque, de acordo com a roteirista, a equipe sabia o que estava escrevendo: “Nós tinhamos pessoas na equipe que eram dessas realidades. Pessoas que vinham do Funk, que vinham de comunidades parecidas com a retratada, do meio evangélico, que entendiam do crime de São Paulo. Se você junta uma equipe de pessoas que têm visões complementares, fica uma coisa real e o Kondzilla sempre prezou pela realidade. É uma realidade que nunca antes foi abordada em um produto visual de grande alcance. Uma coisa é pensarmos em filmes de arte e curta-metragens. Nós já vimos coisas de periferias, mas uma série com apelo popular, moderno e na Netflix, nunca”. Luíza explica que um dos maiores desafios dos profissionais é adequar essa realidade de forma que alimente o entretenimento brasileiro, que se encaixe na dramaturgia e permita que as pessoas tenham vontade de assistir o que o Brasil produz.
Valorizar as séries brasileiras é mais do que um exercício individual, mas uma mobilização cultural e política: “O Brasil precisa investir nessa produção. O Estado precisa investir, incentivar essa produção, gerar incentivo fiscais, criar festivais que falem da produção nacional”, afirma Carlos. Luíza complementa: “Com dinheiro e bons profissionais, nós conseguimos restabelecer a imagem do audiovisual brasileiro no inconsciente das pessoas”. Além do investimento do Estado, também é necessário que haja um reconhecimento da população sobre esses conteúdos: “Um médico depois de um plantão de 36 horas vai querer chegar em casa e dar uma risada ou se emocionar com uma história que não é a dele. O audiovisual é produto essencial, a cultura é produto essencial e é isso que as pessoas têm que lembrar”, ressalta a produtora.
O antropólogo e a roteirista ainda deixaram indicações de séries brasileiras para a Jornalismo Júnior: Bom Dia Verônica (2020-), As Seguidoras (2021-) e Manhãs de Setembro (2021-). Os títulos podem ser encontrados nas plataformas Netflix, Paramount Plus e Prime Video, respectivamente.