Por Danilo Queiroz (daniloqueiroz@usp.br), Mariana Zancanelli (marianazancanelli@usp.br) e Thaís Helena Moraes (thaismoraes@usp.br)
Você já ouviu falar em “fuga de cérebros”? Pode ser que tenha imaginado centenas de cérebros pegando uma conexão em um aeroporto, ou pequenas mentes rodando em ônibus pelo Brasil. Apesar de ser uma imagem engraçada, o termo significa mais ou menos isso: são profissionais qualificados em suas áreas de atuação que, por falta de oportunidades de trabalho, precisam sair de seus locais de origem.
No Brasil há polos muito fortes de formação profissional: por aqui, temos 107 universidades públicas (das quais 63 são federais), que oferecem mais de 450 mil vagas em cerca de 5 mil cursos superiores. O problema é que sucessivos cortes de orçamento público, falta de incentivo à pesquisa e um plano fraco de aposentadoria tornam o mercado de trabalho brasileiro cada vez menos atrativo. No ranking dos países que mais mantêm profissionais qualificados, o Brasil despencou 25 posições de 2019 para 2020, passando da 45ª para a 70ª colocação.
Diante de um cenário de emprego incerto e uma extensa bagagem profissional, para muitos a solução é fazer as malas. O Laboratório entrevistou três cientistas que enfrentam esse dilema para entender porque e como se dá a fuga de cérebros.
Por que isso ocorre no Brasil?
Nos últimos anos, tem sido cada vez mais comum se deparar com cortes de verbas às universidades públicas do país. Em 2021, foi feito o menor investimento em ciência no Brasil desde 2009 — o que levou instituições renomadas, tais como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a passar por complicações financeiras, correndo o risco de encerrar suas atividades. O mais recente corte, que representou uma diminuição de 7,2% do orçamento destinado à educação superior, deixou 88% das faculdades federais em situação financeira crítica.
Para João de Deus Vidal Jr., pesquisador da área de biologia formado pela UFSCar e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a diminuição dos investimentos é grave porque não pode ser revertida. Mesmo que o dinheiro volte a ser aplicado, tudo o que foi construído até agora pode ruir. E o estrago é amplo: vai desde equipamentos sem manutenção até uma geração inteira de alunos indo embora da ciência. “A principal perda não é só o que se deixa de investir, você perde o que já está lá”, argumenta João.
“Se não tem manutenção, não tem dinheiro para operar um campus que custou milhões para ser construído, isso é um tipo de violência e corrupção também. Porque, se você parar para pensar, é um desrespeito ao uso do dinheiro público.”
João de Deus Vidal Jr.
Os problemas vão ainda mais longe. Além do sucateamento das universidades, há também a precarização da profissão de pesquisador. Conforme explica João, “o estudante de pós-graduação, mestrado, doutorado ou pós-doutorado recebe uma bolsa de pesquisa. Não é exatamente um salário: você não tem direito a férias, ao décimo terceiro, e se ficar doente corre o risco de perder a bolsa. Não tem direito trabalhista nenhum”.
O professor e membro do Conselho Universitário Rodrigo Bissacot também destaca que, após os anos iniciais da carreira de pesquisador, as perspectivas para o futuro são um fator preocupante, em especial na Universidade de São Paulo (USP). Conforme a idade chega, os profissionais precisam lidar com questões mais pessoais — planos de saúde, escola para os filhos, carro, casa, aposentadoria — e tudo isso pesa no orçamento. Assim, quando recebem propostas de emprego em outros países, acabam aceitando pela melhor qualidade de vida.
Unido a outros docentes, Rodrigo redigiu uma moção, assinada por 36 institutos da universidade, mostrando que a demanda pela revisão da previdência é geral. Ele também conta sobre a experiência de trazer pesquisadores de Portugal para a USP. “Não consegui, por vários fatores. Quando eles vão fazer as contas, concluem que, financeiramente, não compensa estar aqui. Nós estamos perdendo pessoas por isso, porque não estamos sendo competitivos em termos de salário. É simples assim.”
Quais os impactos da fuga de cérebros?
Do outro lado do Atlântico, outros países investem muito na pesquisa acadêmica. É o caso da África do Sul, onde João desenvolveu um projeto de pesquisa. Ele destaca que, apesar de ser um país com problemas similares aos do Brasil, lá a profissão de pesquisador é muito mais valorizada. “Era como se eles fossem gratos por ter a presença de um pesquisador. Todos sabem que você está fazendo um trabalho super importante. A proteção da biodiversidade na África do Sul é mais aceita socialmente, porque eles ganham muito dinheiro com ecoturismo.”
No Brasil, ao contrário, a população não é consciente do valor que tem a pesquisa acadêmica. Muitos acham até que ela é desnecessária e supérflua para a vida cotidiana. A bióloga e pesquisadora Maria Luisa de França Duda, formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também cursa Tecnologia da Informação e conta que os colegas não entendem a aplicação da ciência em seu próprio trabalho. “Eu vejo que são pessoas com cabeças totalmente diferentes”, analisa Maria. “Recentemente, na faculdade [de TI], eu escutei alguém falar ao professor: ‘Para que serve ler artigo [científico], se eu preciso fazer um produto para o cliente?’ Isso não faz sentido, porque tudo o que você vai desenvolver, mesmo que seja um produto para um cliente, precisa ter embasamento teórico”.
Atualmente, o país investe apenas 1,15% do Produto Interno Bruto em Ciência e Tecnologia, enquanto outros países chegam a disponibilizar até 3,2% de seu PIB para o mesmo setor — a exemplo da Suíça. Essa postura de incentivo financeiro é determinante para a permanência de pesquisadores, em especial no caso brasileiro, porque o funcionamento das grandes universidades depende do dinheiro público. “Hoje a gente sabe que a universidade pública é responsável por mais de 95% da produção científica do país”, ressalta Maria.
“A quantidade de pesquisadores estrangeiros e também brasileiros que temos aqui é muito grande, então a gente perde a oportunidade de crescer cientificamente [se não investir]. Só falta o incentivo, porque o Brasil tem tudo para avançar.”
Maria Luisa de França Duda
João lamenta a crescente hostilidade por parte dos brasileiros em relação à ciência no Brasil. É frequente ouvir ameaças a pesquisadores cujos projetos não agradam, e até membros do governo pregam que a universidade deve ser “para poucos”. Atualmente, João desenvolve um projeto de pesquisa na Alemanha, e conta que a postura lá é bem diferente. “Para se ter noção, há pouco tempo eu e os meus colegas do mesmo edital [de bolsas] fomos recebidos pelo presidente da Alemanha. E eu não lembro a última vez que o presidente do Brasil recebeu alguém para dar uma condecoração científica.”
Como reverter esse cenário?
Nos primeiros anos da década 2000, uma série de políticas públicas foram instauradas em favor do desenvolvimento da educação e da ampliação do acesso ao ensino superior. João conta que alguns fatores que lhe atraíram para a carreira acadêmica foram a inauguração de diversas universidade federais e a consequente ampla oferta de concursos públicos para a contratação de professores. De 2003 a 2014, por exemplo, foram criadas 18 novas universidades federais e 173 campi universitários. Contudo, “por volta de 2014, 2015, a gente já começou a ver sinais de desgaste, e a partir de 2016 foram sendo desmantelados todos os investimentos que já tinham sido feitos”, relata o pesquisador. Na percepção dele, desde o impeachment de Dilma, iniciou-se uma rígida política de contenção de “gastos” destinados às áreas que não fossem entendidas como fundamentais – o que era o caso da ciência e tecnologia.
Os cortes e reformas que a educação sofreu e vem sofrendo escancaram a mentalidade recorrente no país: a ideia de que o direcionamento de verbas para a ciência é um gasto, não um investimento.
João explica que, para ele, esse pensamento é bastante equivocado. “Uma coisa que falta é o Brasil perceber que essas duas coisas [ciência e economia] estão ligadas. Dá para melhorar a economia e investir em ciência também. Parece que são coisas antagônicas, mas estão muito conectadas.” Para que a engrenagem gire, é preciso que o Estado, com o objetivo de deixar de ser refém da economia global, invista em ciência, sendo mais estável e atrativo para os pesquisadores que, por sua vez, contribuirão mais ainda com novas tecnologias, criando um ciclo de desenvolvimento.
Fica evidente, então, a relevância de uma mobilização do poder público para reverter o cenário da fuga de cérebros. Caso ele não o faça espontaneamente, é preciso que a sociedade intervenha como puder, como foi o caso da moção assinada por Rodrigo e outros institutos. É por meio de programas sociais voltados à educação que passos com o poder de democratizar o ensino e fortalecer a base científica do país são dados. O Sistema de Seleção Unificada (SiSU), por exemplo, permitiu que estudantes de grupos historicamente desfavorecidos e excluídos ingressassem em universidades federais de todo o Brasil. Ainda que o programa tenha suas falhas e limitações, os pesquisadores apontam para as transformações ocorridas desde a implementação do sistema: “Com o tempo, a gente vê os alunos das cotas sociais e raciais se tornando mais e mais presentes [dentro das faculdades]”, diz João.
O biólogo ainda destaca a necessidade de disseminar entre a população a valorização da ciência e dos programas sociais. Na visão do pesquisador, desde 2018, tem se espalhado uma lógica injusta que prega que “se você precisa de política pública, é porque você não não tem capacidade de empreender a nível pessoal. Mas, se você se esforçar, você vai chegar lá sem precisar do governo”, o que não é verdade, segundo ele. Na visão de João, para cada profissional que consegue triunfar de acordo com esse método meritocrático, centenas ficam pelo caminho.
Conselhos a um jovem cientista
Outros países podem até fornecer melhores condições de vida, estudo e trabalho, mas isso não é tudo. Uma das maiores dificuldades, como destaca João, é enfrentar a solidão. “Quando eu cheguei aqui [em Passau], não falava quase nada de alemão. Eu tinha feito dois meses de intensivo e mudei para uma região muito pequena. Não é uma cidade global, como Berlim – aqui, eles são bem fechados, raramente falam inglês. Conseguem ver pela sua cara que você é estrangeiro. Eu percebo que eu não sou parte dos espaços aqui.”
A fuga de cérebros afeta os pesquisadores de maneiras diferentes. Para quem está longe, uma solução é a internet: mesmo estando em outro continente, João conta que poder falar com a família por telefone ajuda a atenuar a saudade. Para quem continua no Brasil, uma saída para a frequente desvalorização das ciências é a interdisciplinaridade. Segundo Maria Luiza, é preciso não desanimar e buscar maneiras de unir diferentes áreas do conhecimento.
“Quando a gente expande mais e comunica mais para pesquisadores de outras áreas, conseguimos fazer coisas muito maiores, que vão alcançar mais gente. Eu já ouvi pessoas dizendo: ‘Não tem nada a ver biologia com tecnologia de informação’. Impossível, sempre tem algum ponto que vai se conectar. Se não fosse assim, não existiria a Biogeografia”, diz a mestranda em oceanografia e estudante de TI.
Seja em outro estado ou fora do Brasil, Maria Luiza expõe um conselho aos jovens cientistas: “Estude bastante, seja onde for, e traga de volta para o seu território de origem para a gente crescer também. A ciência tem muito a ganhar com pessoas que têm essa mente inquieta, que se questionam de tudo. Aproveite essa curiosidade toda e transforme isso em metodologia. Com certeza vai agregar bastante ao nosso país.”
“Se for o seu sonho, se você fizer isso do fundo do seu coração, vai dar certo”, acrescenta João. “Pode ser coisa de sobrevivente o que vou falar, mas eu já fiquei quase oito meses sem bolsa, e tive que trabalhar com qualquer outra coisa. Mas eu nunca deixei de acreditar na carreira científica, porque é uma coisa de que eu gostava muito. E tenho orgulho disso.”
“Vai ter um jeito. Pode ser que você tenha que sair do país, que você se afaste da sua família, dos seus amigos, da sua namorada. Pode ser que tenha que morar a 14 horas de distância deles, mas vai valer a pena. Se for de coração, nada disso vai parecer um sacrifício grande demais. Então, se for isso mesmo que você quer para tua vida, mergulhe de cabeça. Com tantas dificuldades, pode parecer impossível, mas nenhuma dificuldade vai estar lá para sempre”, diz ele.
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