A Feira do Livro em frente ao Estádio Pacaembu, na zona oeste de São Paulo, começou na última quarta-feira (8) e encerrou no domingo (12). O evento gratuito reuniu apresentações, oficinas de leitura e debates ao redor da Praça Charles Miller. O fácil acesso ao local permitiu atingir um público mais do que esperado e, embora sem apoio de patrocinadores, se tornou um marco no desenvolvimento do protagonismo político em anos de eleição no Brasil, através do apoio do público não só leitor, mas também ouvinte de uma realidade que precisa ser lida no nosso país.
O movimento literário reuniu mais de 120 editoras e nomes importantes na escrita brasileira e no mundo. Entre os mais de 50 convidados estava o escritor indígena Ailton Krenak, também filósofo, líder da causa indígena e ambientalista no Brasil e autor premiado do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Entre os escritores internacionais estavam a angolana Yara Nakahanda Monteiro, a espanhola María Dueñas e o moçambicano Mia Couto, um dos mais aclamados autores da língua portuguesa.
Oficinas de cultura, divulgação de escritas periféricas, batalhas de poesia falada (slam) e contação de histórias para as crianças também fizeram parte do evento em todos os dias.

A iniciativa é da Associação Quatro Cinco Um, organização não governamental voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa responsável pela produção e realização de importantes exposições de arte no país.
Um dos dias mais esperados do evento foi a última sexta (10) com a presença de Djamila Ribeiro, escritora, filósofa, feminista negra e também vencedora do prêmio Jabuti, em 2020, com seu livro Pequeno Manual Antirracista. O dia também foi acompanhado de participações de cientistas e jornalistas políticos e ambientais, além de poetisas contemporâneas. A Feira do Livro ofereceu ao público um espaço onde ouvir, ler e aprender se tornou essencial na construção de um país mais democrático não só pela entrada franca, mas ao trazer grandes influentes a um local a céu aberto.

Na Feira do Livro, lugar de fala é quando se fala para todos
Djamila Ribeiro, eleita em 2022 à Academia Paulista de Letras por seu engajamento político e antirracista por meio do livro Lugar de Fala, participou na noite da última sexta-feira de uma das rodas de conversas mais aguardadas da feira. A escritora, que também é colunista da Folha de S. Paulo, apresentou sua mais nova produção: Cartas para minha avó.

Para ela, o livro foi um enorme desafio porque traz relatos pessoais ligados a sua família e a fez revisitar memórias que entram em contato com perdas e a elaboração dessas dores. “Foi um desafio escrever, me custou muito caro emocionalmente”. Mas essa marca foi muito importante, pois a escrita rememorou o parto de quatro mulheres negras em diálogo 一 a avó Antônia, a sua mãe Erani, dona do útero que gerou Djamila, sendo esta o corpo-matriz no qual se aninhou sua filha Thulane.
Nesses partos descontínuos, há uma linhagem em que “não há mais fragmentos soltos” e sim “continuidade e permanência”. São existências tão aneladas que, embora cada uma delas possua marcas na história de forma diferenciada, há algo crucial a intervir na história de todas, da mais velha à mais nova. São mulheres negras enfrentando questões que perduram o tempo 一 o machismo e o racismo 一, presentes na sociedade brasileira e que incidem dolorosamente em suas vidas. É provável que Cartas para minha avó seja uma carta endereçada ao mundo, a qual por meio de Djamila apresenta um relato que, embora doloroso, traz um apelo à vida e ao entendimento de que é preciso retornar ao nosso local de origem, ou melhor, ao nosso verdadeiro local de fala.
No berço esplêndido da omissão ambiental
No mesmo dia, também houve uma roda de conversa no Auditório Armando Nogueira, situado próximo à entrada do Museu do Futebol. Dentre as palestras da sexta, uma delas contou com a jornalista ambiental Giovana Girardi, que apresentou suas novas contribuições através da elaboração do podcast Tempo Quente, disponível em todas as plataformas em parceria com a Rádio Novelo.
Ao seu lado estavam Suely Vaz, ex-presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e doutora em Ciências Políticas pela Universidade de Brasília (UnB), e Ricardo Baitelo, doutor em Planejamento Energético pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da campanha de energias renováveis do Greenpeace Brasil.
Entre os temas discutidos estavam o desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e o negacionismo necropolítico quanto à omissão do Governo Federal acerca dos desmontes no Ministério do Meio Ambiente, que trouxe uma maior cobertura à questão ambiental, devido à falta de políticas ativas nesta área nos últimos 4 anos, como contam Girardi e Vaz.

Brasil, um país planejado para perpetuar desigualdades
Outro debate que ocorreu no auditório foi acerca das desigualdades que o Brasil enfrenta desde seu processo de construção pós-invasão europeia. A roda teve a contribuição de Vinicius Torres Freire, colunista da Folha de S. Paulo nas áreas econômica e política, junto a Marta Arretche, doutora em Ciência Política pela USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O debate se concentrou em questionar o distanciamento que as universidades brasileiras possuem em relação à sociedade, uma espécie de distanciamento social latente e permanente. Para ambos, é preciso cobrar um retorno e formas de se comunicar com a realidade brasileira, cuja separação existe até no Governo Federal. É preciso reverter essas desigualdades tão díspares regionalmente por meio de um planejamento descentralizado, e não concentrado na figura do mais alto cargo do Poder Executivo, comprovado pela eficiência de governos locais no enfrentamento à pandemia no país.

Essa ausência é devida não só à omissão do Governo Federal, mas ao autoritarismo global que insiste em um imediatismo nada efetivo. Outro tema discutido foi a falta de governabilidade da gestão de Jair Bolsonaro, “já que o presidente considera que governar é fazer lives”, conta Arretche. Dentre as omissões estão as políticas desenfreadas acerca do Auxílio Brasil, benefício de R$400 aprovado pelo Senado destinado a famílias em situação de extrema pobreza.
Tanto o jornalista quanto a cientista política consideram que seria necessário antes um planejamento acerca do sistema tributário no país, e não um apelo eleitoral irracional a cinco meses para o primeiro turno nas eleições de 2022. A estratégia adotada pelo presidente é reduzir o número de impostos, e consequentemente diminuir a participação do Estado na atuação de políticas públicas de qualidade.
Como tornar a ciência uma literatura
A feira também reuniu oficinas de divulgação de produções periféricas, indígenas e científicas. Uma dessas contribuições foi compreender como a filosofia da ciência é imprescindível ao questionar o que, de fato, é ciência. O debate envolveu Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA) que lançou, em 2021, sua mais nova obra Carta aos morcegos, produzida no decorrer da pandemia. O livro, ao questionar a culpa atribuída aos morcegos pelos seres humanos na pandemia, surge como uma amostra dos riscos que o triunfalismo tecnológico pode causar na humanidade. É preciso mudar a forma de estar no mundo.

Além dela, também estava presente o doutor em Filosofia pela USP Pedro Paulo Pimenta. Ambos questionaram como a comunicação científica tem se mostrado arrogante ao insistir em suas inúmeras técnicas: para os dois isso não é ciência, mas apenas uma escolha política. Esse sintoma tem sido tão gritante que cada vez mais é difundida a ideia de que a tecnologia poderá resolver tudo. Um dos problemas que emergem disso são os paradoxos que essa “solução tecnológica” traz, ao passo que mesmo hoje, com a existência de uma vacina no combate ao vírus da Covid-19, ainda há regiões no mundo que são vítimas dessa injustiça social e também tecnológica.
Essas soluções técnicas poderiam ser a resposta, mas não a única. Mas o que é ciência? É somente a ciência técnica-material ocidental? Nurit afirma que estamos interessados apenas nos subsídios que as contribuições originárias (indígenas) têm a nos oferecer, uma espécie de produto que necessita ser somente útil.

Para além disso, é preciso reconhecer nossa forma predatória de estar no mundo ao afirmarmos que somos mais avançados do que “eles” devido a nossa régua tecnológica. Nurit propõe uma mudança em nosso instrumento de medição: “e se mudássemos a régua para níveis de qualidade de bem-estar? Se essa fosse a régua nós seríamos, de fato, mais avançados, e “eles” seriam mais primitivos, ou seríamos nós?” É preciso interromper esse duelo e aproximar o diálogo acerca das múltiplas humanidades existentes.
É uma forma alternativa de se relacionar com outros seres. E certamente essa forma foi reescrita através da Feira do Livro que permitiu ouvir, ler e aprender maneiras de se fazer mais presente e ativo no Brasil e no mundo. Tem coisas que só um livro é capaz de ativar. A Feira do Livro no Pacaembu fez um gol e é necessário a comemorar a cada dia as vitórias acerca da democratização do acesso à leitura.
Para saber sobre o dia 12 de junho da Feira, confira a cobertura feita pelo Laboratório aqui.
*Imagem de capa: arquivo pessoal/Danilo Queiroz
É de jovem assim que almejo ainda presenciar nesse mundo, parabéns Danilo por essa cobertura linda, necessária, fantástico! Estarei sempre lhe apoiando, precisamos de jovens como você.