Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar
(Angélica – Chico Buarque de Holanda)
Quem é essa mulher?
A inspiração de Chico Buarque para compor Angélica e cantar as dores de uma mãe que lamenta a perda do filho é Zuleika Angel Jones. Mais conhecida como Zuzu Angel, marcou a história do Brasil, deixando um legado estético, cultural e social imensurável para o país. Costureira reconhecida internacionalmente, foi destaque no mundo da moda por ser a primeira estilista a estampar os tons vibrantes do Brasil em suas criações, numa época em que todos se voltavam para a moda francesa. Mas nem tudo foi cor. Viveu tempos sombrios, quando em 1971, seu filho, militante de esquerda, desapareceu em meio ao regime militar brasileiro. Porém, tudo isso também virou estampa. Zuzu fez de sua dor, arte. E fez da sua arte, luta.
“Eu sou a moda brasileira.”
Zuzu foi inspirada por ares de diversos cantos do Brasil. Nascida na cidade de Curvelo, deu em terras mineiras seus primeiros passos no caminho da moda, costurando para as primas e pessoas próximas. Viveu também na Bahia, terra que inspirou as cores tropicais geralmente presentes em suas criações, e em Belo Horizonte, onde conheceu o americano Norman Angel Jones. Com ele, casou-se e teve três filhos: Stuart, Ana Cristina e Hildgard. Em 1947, já perto de se divorciar, mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade onde faria carreira.
Dez anos depois, abriu um ateliê em sua casa em Ipanema e criou a “Zuzu Saias”. A espera pelo sucesso não foi longa. Logo em 1966, Angel já voava alto: era uma etiqueta conhecida na alta sociedade carioca, figura presente na imprensa nacional e internacional e lançava coleções no exterior. Era uma criadora completa. Entendia todo o processo, desde sua criação, passando pelo corte e costura, até a apresentação das roupas. E, através da moda, abraçou a cultura brasileira.
Numa época onde a moda se baseava em estilos importados, Zuzu foi a primeira a usar referências visuais e culturais do Brasil como fonte de inspiração, e, assim, expressou a paixão por seu país criando uma moda genuinamente brasileira. Em suas criações, consagrava temas regionais e estampava a brasilidade: flores e pássaros, em algodões e bordados. Cores, chitas, rendas e fitas. Conchas, pedras, tecidos e bordados. Até Lampião e Maria Bonita serviram de inspiração. Tentando sempre valorizar materiais brasileiros, foi pioneira na utilização de rendas nacionais em suas roupas.
Levou a identidade brasileira às vitrines estrangeiras, conquistando e vestindo personalidades da época como as atrizes Yvonne de Carlo e Kim Novak. Zuzu afirmava categoricamente: “Eu sou a moda brasileira”. Desenhava peças de bom caimento, com cortes e ajustes generosos, corpetes e cinturas baixas, tecidos esvoaçantes e saias rodadas. Seu trabalho retratava a moda informal que surgia nos Estados Unidos, e mesclava o chique de Nova York, o charme da Califórnia e os elementos brasileiros.
Tudo isso jorrava originalidade, e Zuzu Angel assinava não apenas com seu logotipo (um anjo), mas também com sua postura transgressora — sua visão não se limitava ao estético: em seu trabalho, Zuzu também contemplava reivindicações de independência da mulher dos anos 1970. Criou o tecido Polybel (mistura de algodão e poliéster), que em roupas leves, garantia conforto e elegância, e produziu peças práticas e funcionais para o dia a dia da mulher moderna, como o macacão e o chemisier (um vestido no modelo de uma camisa).
Buscando referências no tropicalismo, no regional, no folclore e na natureza, e, misturando toda essa brasilidade com alusões cosmopolitas, criou peças que eram a cara do Brasil, e ainda assim, exalavam delicadeza; provando que certos materiais e referências, antes associados ao mau gosto, podem sim compor um visual elegante. Em 1970, inaugurou sua loja no Leblon, onde deu espaço à arte e a efervescente contracultura da época, recebendo visitantes como Elke Maravilha, Liza Minnelli, Raul Seixas e Paulo Coelho.
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar
No auge do sucesso de Zuzu, em 1971, seu filho, Stuart Angel Jones, militante do MR-8, é preso pelas forças repressoras do governo militar brasileiro. Ao passar do tempo, a angústia se intensificava. Zuzu não sabia ao menos se seu filho estava morto, até que em 1972, leu a carta que o companheiro de cela de Stuart na prisão havia enviado a sua mãe.
A carta descrevia a cruel tortura que levou seu filho à morte. Quem assinava era Alex Polari de Alverga, que também havia sido um preso político. Em suas palavras explicou com detalhes as cenas que presenciou e que lhe assombravam a memória. Stuart fora amarrado numa viatura com a boca colada ao cano de escapamento e arrastado em voltas intermináveis pelo pátio. O carro acelerava e freava. Na noite de 14 de maio de 1971, Stuart Edgar Angel Jones foi brutal e covardemente torturado até a morte, no Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, na cidade do Rio de Janeiro. Na época, tinha 25 anos. Era um jovem estudante de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, fluente em oito línguas, bicampeão de remo pelo Flamengo. Idealista. Defensor da democracia. Defensor da liberdade, da justiça, do humano. Militante. Amigo. Amante. Filho.
Naquele momento, Zuzu mergulhou em luto. Nunca voltou à superfície. Mas também mergulhou em luta. Continuou nadando incansavelmente, travando uma batalha pelo direito mínimo de enterrar o corpo de seu filho e expor para o mundo o que estava acontecendo no Brasil. Utilizando de sua coragem, influência e arte, fez de agulhas, linhas e canetas suas armas de guerrilha.
Aproveitando a dupla nacionalidade de seu filho, Zuzu entrou em contato com membros do governo americano. Traduziu cartas e documentos, formando um dossiê sobre a prisão, tortura e morte de Stuart. Conseguiu entregá-lo ao secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, e ao senador Edward Kennedy, que levou o caso ao congresso americano. Pediu ajuda também personalidades como as atrizes Joan Crawford e Liza Minelli. Numa certa ocasião, tomou o microfone de uma das aeromoças de um voo, para anunciar que em minutos os passageiros desembarcariam no “Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, Brasil, país onde se torturavam e matavam jovens estudantes”.
Mas, a principal bandeira utilizada por Zuzu para denunciar os horrores da ditadura militar brasileira foi sua arte. Usar a moda para refletir ou relacionar um momento político não é tão incomum: foi assim com as roupas coloridas do movimento hippie dos anos 60, que traziam o recado de que o mundo precisava de mais amor e menos guerra. Mas ninguém havia se utilizado da moda como Zuzu fez. Em setembro de 1971, realizou o primeiro desfile-protesto da história. A coleção, intitulada como “Helpless Angel”, foi desfilada na casa do cônsul-geral do Brasil nos Estados Unidos, local considerado território brasileiro, onde Zuzu reuniu vários dos correspondentes estrangeiros. A decisão quanto ao local foi estratégica, já que na época, existia um decreto que proibia que brasileiros fizessem críticas ao país no exterior. Dessa forma, espertamente protegeu-se de acusações militares por estar fazendo uma denuncia sobre o Brasil nos Estados Unidos.
As estampas, dessa vez, eram bem diferentes. Zuzu fez da moda seu mais poderoso veículo de protesto. Sua arte assumia um papel panfletário e político e suas criações foram tecidas ao desalento. Ao invés de flores, pássaros e toda a alegria do tropicalismo, Zuzu costurou anjos, pássaros enjaulados, soldados, crianças, tanques de guerra, e bordando, expressou a dor trazida pelo regime militar. As estampas, símbolos escolhidos com referência política, tinham aspecto lúdico: eram pequenos, ingênuos e discretos comentários, mas cumpriam seu papel denunciativo. As modelos desfilaram ao som amargurado do canto de Ana Cristina Angel Jones, irmã de Stuart, que cantava Bachianas. No fim do desfile, surge Zuzu. Vestida de preto, usava um colar com um pingente de anjo e um cinto de crucifixos. Dessa forma, Zuzu foi parar em jornais de todo o mundo (exceto os brasileiros, que na época, sofriam forte censura) e expôs, entre tecidos e costuras, a situação político-social do Brasil, e denunciou as atrocidades cometidas pelo regime militar.
Arquivo do desfile-protesto de Zuzu
Esperta, Zuzu sabia das perseguições e do risco que sofria. Entregou a amigos e conhecidos, como Chico Buarque, um documento em que escreveu “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”. Pouco tempo depois, um “acidente” de carro na saída do Túnel Dois Irmãos tirou-lhe a vida. Aos 54 anos, era uma estilista reconhecida internacionalmente. Defensora da democracia. Defensora da liberdade, da justiça, do humano. Corajosa. Amiga. Mãe.
Em 1998, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos julgou e reconheceu o regime militar brasileiro como responsável pela morte de Zuzu, com base na declaração de uma testemunha. O advogado Marcos Pires, que viu um carro ultrapassar pela esquerda o carro da estilista, jogando-o para fora da estrada.
Hoje, o túnel leva seu nome. Mas mesmo sendo túnel, Zuzu não vê a luz. Stuart não vê a luz. Seus ideais de democracia ainda se mostram terrivelmente frágeis e ameaçados, quando em março de 2018, uma vereadora carioca do PSOL, eleita, é executada à tiros, tendo como palco desse assassinato a mesma cidade onde mataram os sonhos de Zuzu e de seu filho.
O nome de Zuzu representa o nome de tantas mães que sofreram com o desaparecimento de seus amados filhos. Quando todas só podiam permanecer caladas, Zuzu costurou por todas elas.
Para saber mais:
- A história de sucesso e luta de Zuzu foi abordada nas telonas no longa de 2006 “Zuzu Angel”, dirigido por Sérgio Rezende e estrelado por Patricia Pillar.
- Em 1993, Hildegard Angel, filha de Zuzu, fundou o Instituto Zuzu Angel, com o objetivo de preservar a memória de sua mãe e da moda brasileira.
- No dia 8 de março de 2017, o nome de Zuzu foi adicionado ao Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. A iniciativa foi da deputada Jandira, que declarou: “Zuzu Angel foi além do luto pelo sumiço de Stuart e representou a luta pela liberdade durante a Ditadura. Seu nome representa tantas outras mães e mulheres que tiveram um parente morto ou desaparecido no Regime Militar. Sua história merece ser reverenciada”
Angélica, de Chico Buarque, em homenagem a Zuzu
Por Giovanna Stael
giovannastael@usp.br