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De Austen a Woolf — dos escritos clássicos ao feminismo atual

Uma análise acerca do fato dos textos de Virginia Woolf caracterizarem o cenário literário feminino desde o século 19 até a atualidade

No mundo de 1929, em que as mulheres estadunidenses haviam conquistado o direito ao voto, e o ambiente acadêmico ainda era estritamente masculino, Virginia Woolf entra em alguns desses poucos recintos que abriam-se gradualmente a alunas e debate sobre mulheres e ficção. De dois textos palestrados pela autora sobre esse tema, nasce Um Teto Todo Seu (A Room of One’s Own, 1929), considerado pela crítica como um dos maiores ensaios feministas. Mas a questão é, qual era o papel do feminismo e das escritoras naquele período anterior à Segunda Guerra Mundial? 

Para discutir sobre a relação feminina com o universo ficcional, Virginia Woolf postula que uma mulher precisa de dinheiro e de um teto todo seu para poder escrever. Contudo, o dinheiro não significava, especificamente, a quantia de 500 réis, mas a independência de poder escrever sem justificar-se a alguém; além de um teto, reservado para esta atividade, sem a perturbação familiar ou doméstica. 

O questionamento acerca das condições disponíveis para as artistas foi um tema pujante para as sufragistas. A própria Woolf, no ensaio, seleciona diversas escritoras célebres que, mesmo sem possuírem ambas liberdades — financeira e criativa —, foram marcantes historicamente por seus excelentes trabalhos. Uma delas, Jane Austen, é considerada a maior romancista de todos os tempos, atrás apenas de Shakespeare, como frisa a professora de literaturas de língua inglesa da UNIFAL, Maria Clara Biajoli. Como poderia, então, Austen ter escrito obras tão grandiosas sem privacidade, e perturbada pelo barulho, uma vez que escrevia na sala de estar?

 

Preconceitos e dificuldades: de Austen à atualidade

 

No século XIX, como expõe Biajoli, o gênero chamado romance doméstico era algo praticamente exclusivo das mulheres, mas não por vontade própria. O romance era o gênero visto como destinado a elas por ser considerado algo frívolo e sem profundidade. Caso escrevessem fora do círculo romântico, tinham inúmeras dificuldades em terem seus trabalhos levados em consideração. Woolf exemplifica como Emily Brontë, por exemplo, viu-se encurralada nesse setor e sua principal obra, O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights, 1847), desdenhado na época. 

A escritora de Frankestein, Mary Shelley, foi uma exceção, uma vez que, embora tenha sido obrigada a adicionar o prefácio do marido e a assinar anonimamente a primeira impressão do livro, conseguiu publicá-lo posteriormente com seu próprio nome, mesmo com a misoginia e com a desconfiança sobre sua autoria. 

 

Na esquerda, Emily Brontë está desenhada em preto e branco, e, na direita, uma pintura de Mary Shelley, com cores.
Duas das célebres escritoras que revolucionaram seu tempo e influenciam escritoras até hoje; Emily Brontë e Mary Shelley. [Imagem: Maria Vitória Faria – Jornalismo Júnior]

Dois séculos depois e os mesmos preconceitos que cercaram a carreira de Shelley e de tantas outras ainda assombram escritoras atuais. A ilustradora, escritora e grande fã das obras de Austen, Mara Soap, vê uma recusa do público e das editoras em aceitar escritoras em gêneros comumente tidos como masculinos, tratando-as como inferiores e incapazes de escrever algo profundo. O romance era — e é — socialmente visto como feminino. 

A escritora conta também sobre as barreiras que Austen individualmente  enfrentava. Para uma mulher solteira e dependente financeiramente da família, dedicar-se à escrita não era fácil — seu real reconhecimento foi póstumo. Para Maria Clara, além disso, o foco central das histórias de Austen é a problemática do dinheiro,o poder dele em definir o futuro das jovens da época. Assim, suas representações de finais com casamentos não representavam uma aceitação a esse costume, mas uma crítica ao poder que ele tem na vida de uma mulher. “Austen tem poucos casais que são realmente felizes ou perfeitos, o que corrobora a tese de que a felicidade conjugal era raridade, servindo unicamente para fins financeiros e de estabilidade de vida”, conta a professora.

A crítica e a ironia de Austen, entretanto, não foram percebidas imediatamente. A professora pontua como, naquela época, apenas sátira chamava a atenção do público e os personagens caricatos eram os mais amados, justamente por fazerem rir, mas que o questionamento não era aprofundado. Assim, a ironia direcionada a essa mesma sociedade que se deleitava com a comédia era retirada de foco. 

Em contrapartida, o romance hoje ocupa esse espaço, sendo o foco principal da história. Maria conta que, em sala de aula, precisa forçar os alunos a olharem para além do amor entre Elizabeth e Mrs. Darcy, protagonistas do famoso austeniano Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice, 1813), pois os livros são vendidos com o apelo tão romântico que a ironia não é percebida até a atualidade. 

 

Em pintura de Jane Austen, a escritora aparece em vestes azuis.
A escritora Jane Austen, em seu único retrato oficial. [Imagem: Domínio público]
“Jane Austen só foi realmente analisada pela crítica feminista quando perceberam a profundidade por trás da camada superficial de personagens cômicos que chamam a atenção, ou de um casal romântico e um galã de suspirar.”, afirma Maria Clara. Marcela Brígida, professora da UERJ e especialista literária na Era Vitoriana, explicita como Austen é dividida entre transgressora e conservadora pelo público, dependendo da intenção de cada um. 

 Contrariamente ao que Woolf prega, Austen não tinha nem um teto, nem dinheiro, nem independência para escrever, mas escrevia. E talentosamente.

 

O feminismo e a literatura

 

A primeira onda do movimento feminista, que tinha como pilar a pauta do direito voto, expandia-se enquanto Virginia Woolf analisava como as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, tal qual a falta de liberdade e independencia, dificultam, e por vezes impediam, a produção literária, deixando os livros deturpados com os sentimentos negativos. Contudo, para ela, Austen é uma exceção. 

O meio de convívio, para Soap, interfere diretamente na escrita.  “Virginia Woolf era muito privilegiada pela influência familiar e social para escrever e ler muito, o que a deu bagagem para seus estudos.Sabemos que o conhecimento e a rede social de Austen eram restrito”. Em Um Teto Todo Seu, Woolf reflete sobre a falta de vivência de escritoras passadas, como Austen e as Emily Brontë, e quão rica a escrita delas seria se houvesse oportunidade, como os homens tinham. Woolf, por outro lado, tinha uma rede de influência, o Bloomsbury Group, para se apoiar e para produzir sua arte livremente. 

Mas nem todas, inclusive nos dias atuais, possuem tais privilégios. A visão de Woolf, por mais ampla que fosse, ainda era seletiva. Ela reconhecia o trabalho duro de mulheres que trabalhavam e não conseguiam dedicar-se às letras, mas o problema era mais profundo, como aponta Marcela. A escritora possuía privilégios que a destoava do restante do social feminino, como a influência desde jovem a ler e a escrever. Apesar disso, as palavras de Woolf, no modernismo, impulsionaram visões e significações para a literatura feminina e para o movimento feminista de modo geral.

Helena Alves, participante do movimento feminista Olga Benário, conta como as ativistas estudam as autoras antigas para entenderem os frutos que trouxeram aos dias de hoje. Para além de Austen, as Brontë e outras escritoras e mulheres que as precederam, Woolf é um símbolo de uma luta sufragista, de uma mulher que conseguiu um espaço no meio acadêmico para espalhar sua sabedoria e aprendizado.

 

Livros femininos

 

Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf mostra quão miseráveis as mulheres são por não terem oportunidades nem meios de evoluírem. Por meio de uma narrativa ficcional que simula qual seria o impacto no mundo das artes se William Shakespeare tivesse uma irmã tão notável quanto ele. Assim, Woolf mostra como mentes femininas brilhantes foram, por muito tempo, aniquiladas pelas barreiras que as cercavam. 

Mara aponta como é muito difícil para uma mulher entrar no mercado literário sem haver tido um best-seller ou sem escrever nos gêneros esperados socialmente, como romance histórico ou young adult (YA). Entretanto, há uma mudança gradual nesse cenário. Maria Clara acredita que a herança dessas autoras e de tantas outras recentes, como Angela Davis, trouxe outras vertentes importantes para a discussão feminista e que escritoras atuais, como Chimamanda Adichie, produzem literatura de alto nível, abrangendo a questão territorial junto ao racismo e ao machismo. “Muitas autoras hoje trazem atitude, temas, histórias e recortes questionadores para com sua sociedade para mostrar os problemas mais profundos dela, como Austen e Woolf fizeram, mas cada uma a sua maneira. Austen trouxe a reflexão de como o dinheiro impacta o ser humano mulher e Woolf abrangeu questionamentos para além da definição identitária. O legado delas é visto hoje com essas escritoras atuais”, conta Maria. 

As ondas do movimento feminista permitiram com que o ativismo alcançasse a sociedade mais facilmente, adentrando na literatura, por exemplo. Para a escritora, as personagens esperadas pelo público, hoje, vão ao encontro do estereótipo feminino cultivado pela sociedade — o de uma mulher forte, invencível, que vive uma dupla jornada, nunca se cansa e está preparada para tudo.  Ademais, com a influência deste movimento na cultura, há uma forte tendência de capitalização do feminismo, o que, para Helena, embora traga visibilidade para as pautas e para personagens importantes, também apaga a história delas, transformando-as em objetos, como Frida Kahlo, admirada na indústria mas não tão vislumbrada pelo seu ativismo político. 

Em 200 anos, de Austen até os dias de hoje, embora as conquistas sejam muitas, Mara, Maria, Marcela e Helena concordam que ainda há muito a ser conquistado. Mas, enquanto não houver igualdade de gênero, segundo Helena, não haverá a possibilidade das mulheres terem um teto todo seu, nem dinheiro para dedicarem-se à escrita. Contudo, para Mara, essas escritoras clássicas e as atuais têm um papel fundamental na contínua luta, pois “a pessoa que lança livros lança ideias, e elas conseguem influenciar as pessoas, entrando na mente delas e questionando”.

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