“Ao sair do Uber com uma certa pressa, entrei na loja de conveniência, no Jardim Apipema, um bairro tradicionalmente branco, e verifiquei o susto supremo das pessoas dentro do posto de gasolina, como se eu fosse anunciar um assalto.”
O relato acima é de Gabriel Nascimento, linguista, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor do livro Racismo Linguístico: os Subterrâneos da Linguagem e do Racismo (Letramento, 2019). Segundo ele, esse foi um dos momentos mais marcantes em que vivenciou uma situação racista. De forma análoga, outros muitos negros e negras — assim como outras minorias — são submetidos a atos semelhantes: segundo pesquisa feita pelo Datafolha em 2019, 30% dos indigenas, 18% dos pardos e 55% dos negros entrevistados sofreram preconceito de cor ou raça.
Como forma de combater esse cenário, a pauta antirracista, da qual fazem parte protestos como “Black Lives Matter”, ganha cada vez mais espaço no dia a dia, das músicas às redes sociais, filmes, desfiles e diversos outras produções culturais.
Com a visibilidade, cresce também a necessidade de entender o impacto dessas ações na forma com que o preto é enxergado e, principalmente, na forma como ele se enxerga, sua identidade e autoestima. Muito mais do que motivo de preconceito, a cor é parte do processo de orgulho negro, que envolve também aspectos culturais como a linguagem, a música e a moda.
A língua
O racismo no Brasil passou por um processo histórico de estruturalização e naturalização, no qual a língua também foi — e ainda é — uma ferramenta de preconceito. Nesse processo, formaram-se palavras e frases que para muitos são racistas, dentre elas: mulata (derivada da cria do cruzamento entre um cavalo e uma jumenta, ou os equivalentes de sexo oposto); denegrir (tornar negro, manchar de preto) e trabalho de preto (trabalho mal feito).
Por um lado há quem diga que esses termos, que incluem “mercado negro”, “magia negra” e outros semelhantes, não são racistas, pois em sua etimologia tais palavras se referem ao medo da noite e da escuridão, visto que se originaram de termos que remetem a esses elementos, e não a elementos étnicos-racias.
Contudo, para Gabriel, as palavras não são fixas em seu sentido original, são transitórias, e seu valor semântico depende da significação que o falante dá. “Racismo linguístico não é sobre palavras, se a gente entende palavra como léxico. Mas é sobre palavra se a gente entender palavra como unidade dotada de relação com a estrutura da língua, com a estrutura do que a gente faz”, afirma. Como um símbolo é associado a uma regra ou produto, a palavra é um signo sujeito a associação. Sobre isso, Gabriel complementa: “A palavra passa a representar um corpo, um tempo e espaço, um eu aqui e agora. Não é uma discussão sobre palavras como léxico, nós precisamos pensar por que esses termos são hoje, aqui e agora, racistas. É isso que nos interessa”.
Assim a ressignificação toma forma e corpo na autoestima, quando o que antes era motivo de preconceito torna a significar belo.
O RAP
A força da linguagem para a identidade negra e o orgulho negro também se faz presente na música. Foi no final da década de 1980 que surgiu o RAP na cena nacional. O gênero jamaicano expressava em suas composições o protesto, a luta de classes, a luta dos negros e a vivência nos guetos. Com batidas agressivas e uma linguagem direta, os rappers buscavam “passar a visão”, conscientizando seus ouvintes sobre o crime, as drogas, o sucesso e muitos outros assuntos, como nos clássicos Um bom lugar, do mestre Sabotage, Nego drama, do grupo Racionais MC, Favela sinistra, do Trilha Sonora do Gueto, e Vale da escuridão, do grupo Realidade Cruel.
Com a evolução do RAP, novos temas surgiram, assim como aprofundaram-se os temas antes falados. Esse foi o caso da autoestima e do orgulho negro, assuntos que ganharam força nos últimos anos dentro do gênero, principalmente em sua variação trap.
Para desconstruir o racismo estrutural, o RAP atacou de forma sistemática, ainda que orgânica, a estrutura social. A desconstrução começa por reconhecer o preconceito de raça e os MC ‘s buscaram evidenciar o contexto racista do Brasil, país onde 75,7% das vítimas de homicídio são negras, conforme o Atlas da Violência publicado em 2018. Do reconhecimento, passa-se à denúncia da absorção do negro aos padrões estéticos e culturais impostos pela sociedade branca, como, por exemplo, alisar o cabelo crespo. Em seguida, há a negação das imposições racistas, como na letra de Ponta de Lança do MC Rincon Sapiência:
“Quente que nem a chapinha no crespo
Não, crespos estão se armando
Faço questão de botar no meu texto
Que pretas e pretos estão se amando
Quente que nem o conhaque no copo
Sim, pro santo tamo derrubando
Aquele orgulho que já foi roubado
Na bola de meia vai recuperando”.
O resgate do orgulho negro passa também pela ressignificação: aquilo que era mal visto no contexto racista, motivo de preconceito, é assumido como belo e presente nas identidades negras, seja nas religiões de matriz africana, no estilo, na cor ou nos títulos. Na partida de futebol entre Barcelona e Villarreal, vencida pelo time catalão de virada por 3 a 2 em 2014, mas que tem força simbólica até hoje, Daniel Alves pegou uma banana atirada por torcedores no gramado e comeu-a antes da cobrança do escanteio. A ação dos torcedores tinha cunho racista ao referir-se a Daniel como um macaco por conta de seus traços latinos e pele parda, mas foi ressignificada pelo ato do jogador. Na música Gorilla, de Kayuá, a ressignificação do xingamento “macaco” também toma um novo sentido, pois o artista “bate no peito” e assume a postura de gorila como protesto de orgulho.
Os processos de ressignificação envolvem ainda a presença de narrativas negras no contexto histórico. Em Rei, o rapper Black explana sobre a necessidade de narrativas negras, que valorizam a comunidade, mostram os feitos, a riqueza cultural dos povos pretos e desvinculam o senso eurocentrista de protagonismo branco na história. O rei de Black remete aos reinos africanos, os quais já existiam muito antes da escravidão.
“O rei não precisa de uma coroa
A coroa é que precisa de um rei, hoje eu sei
Nos ensinam que somos descendentes de escravos
Mas nós descendemos de rainhas e reis”
Black, Rei
Em entrevista ao Sala33, Black comenta:, “Nós precisamos contar a nossa história porque se deixar os cara [os brancos] contarem eles vão passar pra todas as gerações que preto é descendente de escravo e só, que terras pretas são amaldiçoadas. Eles contam a versão deles que só contém coisa negativa”. Em seguida reforçou que esse papel é de responsabilidade da comunidade negra, que deve tomar a frente para passar sua versão: “A minha forma de passar é através da minha música. Esse é o meu papel, é pra isso que eu vim”.
A moda
Organizada principalmente pela elite, a moda brasileira é bastante influenciada por tendências européias e estadunidenses, com coleções e desfiles voltados à população branca, ainda que a população no Brasil seja composta em 53% por negros e pardos. Os desfiles historicamente continham poucos modelos negros e negras e pouquíssimos estilistas negros, mesmo quando a temática remetia à Africa. No início do século 21, a presença de temas afros na São Paulo Fashion Week (SPFW), um dos principais eventos de moda do país, ainda era inconstante ou restrita a poucas marcas. A baixa representatividade levou a eventos polêmicos, como o desfile realizado em 2014 pelo estilista Ronaldo Fraga, com a temática de negros no futebol e no qual modelos brancas usavam perucas feitas de palha de aço, representando o cabelo crespo. Ronaldo foi criticado por cometer blackface, termo inglês para quando um branco se faz passar por preto.
No entanto, em 2016, de forma inovadora, o rapper Emicida — nome artístico de Leandro Roque de Oliveira — “invadiu” as passarelas da São Paulo Fashion Week. Emicida estreou na SPFW com a sua linha de roupas da marca LAB, em parceria com seu irmão e rapper Evandro Fióti e com o experiente estilista João Pimenta.
O desfile teve como temática “Yasuke, o samurai negro”. Repletos de ideogramas, origamis e elementos da cultura nipônica, os looks carregavam tons escuros com detalhes em branco, estampas escritas “a rua é nois” e “I love quebrada” e cortes agressivos e que remetem à rua, ao RAP e ao orgulho negro. Emicida levou diversidade à passarela, com 90% de modelos negros e também modelos gordos — ambos grupos marginalizados nos desfiles tradicionais. Dentre os modelos houve participação especial do cantor Seu Jorge. Os modelos, tanto homens quanto mulheres, usavam black power’s, tranças e cortes curtos.
O desfile do LAB foi um marco em termos de representatividade negra, que tem crescido nos eventos de moda do Brasil e do mundo. Diante da mudança, Black tem uma postura bem humorada e esperançosa: “Ah, agora nós ‘tá’ tendo a famosa autoestima, né? Graças a nós nossa autoestima daqui a pouco vai ser escrita até com L. ‘Tamo’ conseguindo levantar a cabeça e sentir orgulho de nós mesmos, olhar no espelho e gostar do que vemos”.
Matéria sensacional, muito bem escrita e sobre um assunto extremamente necessário. Parabéns
No meio de tanto ódio e racismo, ler uma matéria que não ataca, que mostra como o movimento vem crescendo, e principalmente que ensina é maravilhoso! Comecei o dia aprendendo mais com você sobre o orgulho negro e fico feliz em saber que pessoas estão abordando esse tema importante, parabéns pela sua coragem e dedicação. Muito obrigada Guilherme Nogueira! Ótimo trabalho!
#BlackLivesMatter