“— Eu sou que nem água parada. Bem, na verdade, nem isso. Eu sou o fungo que se alimenta da água parada.
— Pior. O pus que contamina a mucosa da doença do fungo que se alimenta da água parada.”
Entre protagonistas, é esse um dos mais marcantes diálogos de O Casamento do Meu Melhor Amigo (My Best Friend’s Wedding, 1997), filme que há menos de uma hora e meia começava com um belo número rosa-choque de Wishin’ and Hopin, no qual uma noiva e suas damas de honra cantarolavam charmosamente, ao maior estilo Marilyn Monroe, “se você está procurando por amor que possa compartilhar, tudo que tem que fazer é abraçá-lo e beijá-lo e amá-lo e mostrar que se importa”.
Antes de sentar para passar por essa reviravolta emocional, fui atraído ao filme por alguns fatores. Em primeiro lugar, soube que retratava dois jornalistas inexplicavelmente bem sucedidos, o que, graças à Sex and The City, se tornou um dos meus gêneros escapistas favoritos. Em segundo, sabia que Julia Roberts contracenava com — a criminalmente subestimada — Cameron Diaz, pura e simplesmente. Em terceiro, era um longa que havia detestado quando bem mais jovem, tendo o visto sem muita cerimônia em uma Sessão da Tarde como qualquer outra.
O havia abominado pois a personagem de Julia, a estilosa Julianne, ou Jules, de cabelo impecável, ternos lindos, e determinada a usar quantos óculos de sol ao mesmo tempo o possível, era também extremamente inconveniente, egoísta e destrutiva sem prerrogativa moral convincente. Perfeita para o que procurava para esse texto.
Havia, afinal, me comprometido a uma ode escrita aos protagonistas mais insuportáveis que já vi, pelos quais costumo me apaixonar precisamente por serem tão chatos. Disfuncionais e erráticos, acabam por ser imagens muito mais identificáveis e empáticas para mim, que também não gosto de mim mesmo o tempo todo e tenho muito o que aprender (assim como boa parte das pessoas, acredito).
O filme acompanha a personagem principal durante o curso de quatro dias, nos quais faz tudo possível para acabar com o casamento de Michael (Dermot Mulroney), o melhor amigo que dá título ao longa, ex-namorado que havia prometido a esposar caso não arranjassem parceiros até os 28 anos.
Jules é aparentemente uma pessoa charmosa, em situação de amor a toda prova, testada pela urgência do tempo, mas sua obsessão romântica parte claramente de uma mesquinhez. Em uma rápida digressão, o laço entre ambos nem convence tanto, pois que tipo de melhor amigo conta do relacionamento mais importante de sua vida apenas alguns dias antes do casório?
Mesmo assim, durante esse período menor que uma semana, Julianne faz o possível para desestabilizar o casal principal. Ela coloca Kimberly (Cameron Diaz) em situações desconfortáveis, finge estar noiva de seu fantástico amigo George (Rupert Everett) para causar ciúmes e — quase esqueci — frauda uma troca de e-mails que leva Michael a quase perder seu emprego em uma tentativa de culpabilizar Kim e sua família.
No clímax, chega-se à uma perseguição em alta velocidade. Kim foge, Michael a segue, e Julianne segue Michael. Desesperada, ela liga para George, que a diz: “E quem está atrás de você? Ninguém. Essa é a sua resposta”. É a realização necessária para que ocorra o diálogo autodepreciativo (e surpreendentemente minucioso em seus conhecimentos biológicos) que escolhi para abrir esse texto.
E então, tantos anos depois, enquanto Julia Roberts se acabava de chorar (como eu), me identifiquei com os tantos fãs desse clássico contemporâneo e passei a considerar O Casamento do Meu Melhor Amigo um filme brilhante e aconchegante.
Apesar da irritação que a personagem parece causar universalmente, o longa não diminui o impacto de suas ações e, na verdade, não para de nos lembrar o quão horrível é tudo que faz ao longo da duração.
A protagonista é uma personagem propositalmente despedaçada, alguém insatisfeita com o próprio vazio emocional agravado por antigas promessas e expectativas. Uma crítica gastronômica acostumada ao cinismo e ao medo de relacionamentos, até o ponto no qual o medo da solidão chega ao mesmo patamar.
Quando Michael descobre os e-mails forjados e ela percebe o dano que está causando, senta-se no corredor de um hotel, perdida, trancada para fora de um quarto, com ódio de nada mais além de si mesma e um cigarro na mão.
Um camareiro a alerta que ali é proibido fumar, mas logo simpatiza com ela. Nós, o público, somos esse funcionário, que casualmente divide um cigarro metafórico com Julia Roberts e a diz que “isso também vai passar”. Mas somos também a própria protagonista sendo abraçada, mesmo que não lutemos na guerra ao matrimônio.
Estar sem rumo e sem esperanças; se sentir sozinho; se afastar de outros por medo ou se sentir indesejável; invejar a grama mais verde ao mesmo tempo que se autossabota; odiar ações impulsivas: não são essas experiências tão mais fáceis de serem vividas que o simplismo de uma história de amor genérica? Sobretudo, essa bagagem exclui o merecimento de felicidade, compaixão e abrigo? Ao dar um passo na água parada que Julia Roberts cita, estamos fadados ao afogamento em meio aos fungos doentes?
Para o público de teste, sim. Originalmente, Jules conheceria um novo homem e com ele encontraria uma nova felicidade. Os participantes, que a abominaram por completo, rejeitaram que ela ganhasse essa forma mais saudável de companheirismo. Eu, no entanto, discordo. Não da mudança de final, que de fato acabou por representar uma autossuficiência de Jules muito mais aprazível ao lado de seu confidente, George. Discordo da punição à complexidade emocional da personagem.
Em tangente a isso, me lembro de uma conversa avulsa que tive anos atrás, na qual a outra pessoa alegava que super heróis não deveriam ser representados em conflitos emocionais ou sociais, como em Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, 2016) e Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, 2016), pois deveriam servir de exemplo.
Sob essa lógica, aceitam-se e promovem-se facilmente as configurações narrativas absurdas da ficção fantástica (inclusive o quão explosivos e coloniais tais heróis chegam a ser), mas a inserção de sensibilidades realistas e particulares passa do limite e se torna desconfortável. O mais escandalizante passa, então, a vir facilmente daquilo que é mais pé no chão.
Adolescente não é um bicho tão diferente
Daí, lembrei imediatamente de Christine “Lady Bird” McPherson, que é, provavelmente, minha personagem cinematográfica favorita dos últimos tempos. Com o rosto magnético de Saoirse Ronan, de nome autoproclamado e pontas coloridas de dar inveja às e-girls contemporâneas, a personagem, em sua narrativa de amadurecimento, é inesperadamente controversa.
Muitas pessoas não suportam seu arco de personagem, o jeito que fala com seus pais ou como negligencia sua doce amiga. E Lady Bird é, de fato, uma chata. Ela não aparenta consideração completa pelas tormentas que afligem seus pais, renega exageradamente sua cidade suburbana como quem espera virar uma grande beatnik errante e molda sua personalidade de maneiras extremamente constrangedoras para agradar os meninos que gosta.
Lady Bird não cansa de errar. Erra na escolha de parceiros, é inconsequente com os estudos, mente. Ela também é empática, sente remorso e se decepciona consigo mesma e com outros enquanto aprende a viver. Nada de novo a ninguém. O longa é bem-sucedido justamente por abraçar a disfuncionalidade cotidiana tão carinhosamente.
Se suas falhas cotidianas causam tanta irritação, o que sobra é um utilitarismo que permeia o consumo de cultura, que procura e valoriza só uma perfeição conveniente e percalços de pouco impacto e fácil resolução. A vida, porém, não é um percurso de duas horas nos quais conflitos cuidadosamente planejados culminam no crescimento pessoal definitivo e, principalmente, linear. O senso comum está cansado de dizer isso — vide o número de canções que repetem essa exata afirmação, feito If This Was a Movie (“se isso fosse um filme”), de Taylor Swift.
Ainda assim, temas e representações incômodas continuam irritando. Ou o cinema é atacado por ser escapista, ou por ser incômodo demais.
Sim, a vida não é um filme, mas um filme só existe graças às experiências, sensações e psiques reais de cineastas e colaboradores. Retratos simples e divertidos, desse modo, são completamente válidos, tanto quanto personagens pulsando com pretensiosidade, desorientação e danos emocionais.
Nadine (Hailee Steinfeld), outra adolescente chata no centro de um filme ótimo e de roteiro afiado, Quase 18 (The Edge of Seventeen, 2016), em um ponto conta seu pior pensamento: “Tenho o resto da minha vida pra passar comigo mesma”. Ela, obviamente, não está errada, mas até o final do longa percebe que também passará ao lado de muitas pessoas, cada qual com sua própria complexidade e propensão à empatia.
Para o público, fica claro que, além do apoio humano ao redor, a mão estendida de obras do tipo não faz mal. Talvez, então, não deveríamos ser tão duros com tais personagens, assim como não deveríamos ser com nós mesmos.
Kombi de fuga
O escape de pressões perfeccionistas, para além de figuras individuais, é também estupendamente encapsulado por Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006), uma homenagem à mediocridade e à ordinariedade.
O filme de pé na estrada narra a história de uma família em declínio financeiro e emocional em caminho ao concurso de beleza que Olive (Abigail Breslin), de 7 anos, sonha em vencer. Ao longo de 102 minutos, seus personagens vivem sem grandes conquistas e sem adoração alheia ou quebra de paradigmas socioeconômicos.
Esse longa em particular se diferencia dos outros citados por ser, na maior parte, extremamente amável. Pode até parecer que escolhi abordá-lo apenas para me dar uma pausa da chatice, mas não é o caso. Na verdade, é o único até agora que conta com alguém que de fato fez meu sangue ferver. O personagem insuportável aqui é Richard (Greg Kinnear), pai da família e tudo de ruim que hoje chamamos de coach, a antítese direta de todos os outros citados acima.
Richard abomina fracassados e acredita ter organizado sem erros o passo a passo para a vitória (que vai desde o desprezo pelo sarcasmo à recusa a pedir desculpas). Em algumas de suas empreitadas, faz a filha sentir vergonha de comer sorvete e ignora a gritante barreira comunicacional que tem com seu filho através de eufemismos de auto-ajuda.
O maior arco de transformação é, então, o dele. Ao longo do filme, Richard aprende a aceitar o quão desamparado de fato é, e o quanto é um perdedor como todos os outros que conhece. Quando Olive enfim chega ao concurso e surpreende a todos com sua performance inocente da música inapropriada Super Freak, ele é o primeiro a subir no palco e se juntar a ela em meio às vaias e desprezo das mães e mini-misses escandalizadas. Juntos iniciam sua defesa ao despreparo juvenil, rechaçado pela massa do auditório que exalta o amadurecimento fajuto que adultiza todas as outras competidoras.
O pai, que facilmente estaria do lado da plateia caso o evento ocorresse alguns minutos antes no percurso do longa, se deixa contaminar pelo filho rebelde, pelo cunhado proustiano e pelo pai tão avesso a remorsos. A cena que se sucede é uma união provocativa monumentalmente feliz e destemida.
A família se torna brasão de todo desencaixe, enquanto o grupo seleto de conservadores que lhes assiste serve de personificação da recusa ao rico acervo de personagens desagradáveis. Parece muito melhor estar do lado da trincheira que faz a dança da galinha e uma ciranda em volta de um emo saltitante — interpretado pelo fantástico Paul Dano.
A abertura aos desajustados, então, pode muito bem encaminhar-se à abertura a si mesmo e à compaixão em direção aos outros no geral. É, afinal, difícil ser o protagonista que, como os super-heróis daquela conversa, dá o exemplo.
Poucos são os prodígios, ou escolhidos, ou pés erguidos em beijos na chuva. Amy Dunne (Rosamund Pike), do suspense Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), passou uma vida pressionada pelo protagonismo carismático de livros infantis, e dizer que isso não deu nada certo seria fazer pouco caso.
Então, prefiro ser o pus que contamina a mucosa da doença do fungo que se alimenta da água parada. Não que pretenda me empenhar a causar mal a qualquer outro alguém como Jules, ou que me considere ruim assim, mas com certeza aprecio o alívio de poder enxergar um pouco de desestabilidade que não leve diretamente ao castigo eterno.
Todos os filmes que vi para essa produção me deixaram com um sorriso no rosto (depois de me atropelarem com suas cargas emocionais). Os que já havia assistido me fizeram lembrar de como eu era quando os vi pela primeira vez, e de como a certeza de um final feliz rápido e descomplicado é altamente improvável.
Correndo o risco de usar citações demais de O Casamento do Meu Melhor Amigo, encerro esse texto com a mesma frase que encerra o filme: “a vida continua, talvez não haja casório, talvez não tenha sexo, mas, por deus, haverá dança!” — pisar em alguns pés e pedir perdão fazem parte do caminho.