Este filme faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
“Onde existir opressão, haverá revolução”. É assim que um dos entrevistados abre Che, Memórias de um Ano Secreto (2018). Logo a seguir, a boina de lado e a barba avolumada nos relembram do mito que se criou em torno de Che Guevara. E não é por menos, já que após da bem-sucedida campanha de Cuba, quase que como um paladino da justiça, Che parte com seu fuzil em prol da libertação de outros povos. Por isso, chega ao Congo e, tardiamente, à Bolívia. E aqui, o documentário endossa essa ideia, compondo um homem sempre inquieto contra o comodismo, e temente de que seus companheiros se tornassem eles mesmos novos opressores. Sua índole não é questionada. Pelo contrário, vemos-no em desilusão aguda e o julgamos incompreendido, injustiçado. O que não necessariamente é positivo.
Quão idealizada não é essa visão? Incompleta? Quem sabe até mesmo imperialista: de um messias que pretendia salvar a todos, mas também, indiretamente, submetê-los aos mandos de seus colegas? Como qualquer outro estudo, o filme de Margarita Hernandez faz um recorte. E é por conta dele que talvez tenhamos uma das únicas possibilidades de tratar uma figura política por excelência, sem, no entanto, discutir a moralidade dela. Aqui não acompanharemos a trajetória que levou Che à herói cubano da revolução. Tampouco veremos as origens que o levariam à política. O foco é no que aconteceu em tudo depois disso. Ou melhor dizendo, na angústia de Che vendo o que não acontecia.

Para lutar no Congo, Che resigna das funções em Cuba e, após perder a campanha na África, se torna persona non grata em sua terra natal. Procurado também por todo o Ocidente, a solução que encontra é se esconder na República Tcheca, enquanto os ânimos políticos não se acalmassem. Para isso, não só teve que se disfarçar fisicamente, como também se despir das ideias e ações com que se identificava. Talvez valesse a frase de que só pior que a morte é a morte da alma ‒ não à toa, na vida comum, muitas famílias preferem buscar a eutanásia a ver seus parentes em estado vegetativo.
O recorte que se faz, assim, é entender menos o homem político do que o ser humano por trás de Che. Coisa que a quadrilogia do poder de Alexander Sokurov (Moloch, Taurus, O Sol e Fausto) muito bem construiu. E olha que a tarefa lá era muito mais complicada, já que em Moloch (Molokh, 1999), a premissa era acompanhar um Hitler com acessos de ansiedade e complicações que a velhice trazia. E ao contrário do que muitos diriam, dar protagonismo a Hitler não é irresponsabilidade, mas sim explicitar ainda mais a fragilidade de sua pessoa ‒ que se espalha das decisões políticas às atividades mais comuns. Assim, se uma figura unanimemente tão abominável suscita fraquezas tão humanas, porque não Bolsonaros, Lulas, Mussolinis ou Che Guevaras? Obviamente, um distanciamento da época em que viveram é recomendável para melhor analisá-los. É inegável dizer que todos foram grandes lideranças, que mobilizaram massas em torno de suas ideias e figuras. Mas eram eles também humanos?

Nesse sentido, algumas das reflexões mais interessantes surgem de fotografias inseridas no filme. Em uma delas, vemos os companheiros de guerrilha rindo em primeiro plano, enquanto Che aparece sozinho lendo uma carta, no canto da foto. Uma segunda imagem é a de um autorretrato em que ele olha desoladamente para o espelho. Detalhe: em ambas, não vemos boina, não vemos barba. Quase como Sansão sem seus cabelos, o olhar de Che parece ter perdido o brilho de tempos anteriores.
E aqui, é importante destacar como os signos sempre foram importantes na vida social. Por isso, no Exército, temos o uniforme e as patentes, na vida política, a faixa presidencial. Ao se despir desses símbolos, o que resta é o homem comum. À essa altura de filme, não temos mais o estereótipo do guerrilheiro cubano, mas do homem que o carregava. Da mesma forma que é curioso reparar como todos os entrevistados que compuseram o cenário político cubano da época estão hoje velhinhos, ou seja, longe da imagem viril e salvadora de heróis revolucionários.

Apesar de tamanha sensibilidade, Hernandez parece, principalmente da segunda metade em diante, sabotar a análise que fazia da solidão. Seja por animações ou reencenações que parecem romantizar fatos ocorridos, seja por situações que nada acrescentam à análise, a projeção acaba cansando. Uma das piores é a investigação detalhada sobre uma suposta amante que Che teria tido em Praga. Um ocorrido que até seria interessante se indicasse uma tentativa dele de escapar da reclusão, mas que é descartada bem como foi iniciada: sem mais nem menos.
O que nos leva ao sentimento que as cenas finais nos suscitam. Se Sokurov acertava por encaminhar o Hitler de Moloch à total melancolia, aqui a morte de Che na malfadada campanha da Bolívia vem com um tom de injustiça e incompreensão. E por isso mesmo, de heroísmo ‒ que é também reforçado pelos elogios das entrevistas finais. Em outras palavras, nada mais problemático do que encerrar toda a caracterização de homem comum com a de um grande homem. Se assim fosse, que julgássemos também suas ambiguidades políticas…
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com