A realização da Copa do Mundo escancara a elitização do país do futebol, mas há quem lute para resistir
Por Marcelo Grava (marcelo.grava@gmail.com)
Houve o tempo em que o torcedor brasileiro chegava ao estádio empunhando sua bandeira e seu radinho de pilha, dirigia-se a uma das barraquinhas populares instaladas do lado de fora e saboreava um sanduíche de pernil, acompanhado de cerveja gelada, antes de dirigir-se à geral, onde torcia e sofria por seu time do coração no meio do povo, sem regalias, exposto à chuva e em pé, pisando o cimento.
Hoje, pouco disso sobrevive. A vigilância sanitária extinguiu as barraquinhas e levou às redondezas dos estádios apenas alguns poucos ambulantes credenciados. Do lado de dentro, ficaram as cervejas sem álcool e o preço tabelado aumentou. As gerais foram sumindo aos poucos junto dos estádios jurássicos que deram lugar às “arenas”, prezando pelo conforto do torcedor e levando-o às assépticas cadeiras e aos assentos numerados, como nos cinemas.
Em nome de um nebuloso combate à violência nas arquibancadas, até mesmo as bandeiras com mastro foram proibidas em certos lugares do país, e é raro o objeto cuja entrada nos estádios seja permitida, pois em quase tudo se enxerga um potencial de arma branca.
O futebol brasileiro seguiu tendências socioecônomicas da redemocratização do país. Transformou-se progressivamente em negócio, fez com que jogadores virassem mercadoria e torcedores se convertessem em clientes. Com a aproximação da Copa do Mundo de 2014, tornou-se evidente a intenção de “europeizar” o esporte, embora a situação social brasileira ainda esteja distante da europeia.
As profundas mudanças no futebol dividem opiniões quanto a seus benefícios e reais intenções. A realização da Copa das Confederações no último mês de junho, em meio às maiores manifestações populares deste século no Brasil, e a mudança de grandes clubes para os novos estádios levantaram focos de discussões acerca dessa modernização corrente, e em maior ou menor escala, movimentos de resistência ao “novo futebol” se organizam.
Do cimento aos telões de LED
É difícil determinar em que momento se iniciou a modernização do futebol brasileiro. A Lei Pelé, instituída em 1998 – quando o “Rei” era Ministro do Esporte – é tida por muitos como um marco inicial (ou determinante) para esse processo. Extensa e polêmica, ela garantiu direitos trabalhistas a jogadores – sobretudo através da extinção do passe que deixava o atleta subordinado a dirigentes mesmo fora de contrato e impossibilitava-o de escolher onde jogar – e exigiu maior transparência fiscal de clubes, que passaram a ser tratados como empresas.
Por outro lado, o progresso vislumbrado pelos defensores da lei, usando o crescente sucesso de campeonatos europeus como modelo, não foi acompanhado por mudanças políticas e sociais. O futebol se transformou em commoditie e seguiu atendendo a interesses de uma minoria poderosa, escancarando uma desigualdade típica da conversão de uma atividade qualquer em geratriz de lucro.
“[A] Lei Pelé representa mais uma face da modernização conservadora no Brasil, em que a maioria das mudanças são impostas de cima, na tentativa de preservar interesses de grupos dominantes, tal com entende Florestan Fernandes na sua análise sobre a Revolução Burguesa no Brasil” afirma Francisco Xavier Freire Rodrigues, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), no trabalho “A Lei Pelé e futebol-negócio no Brasil: uma breve porém crítica análise sociológica”.
Para Danilo Mandioca, um dos fundadores do clube amador autogestionado Autônomos FC, a Lei Pelé “transformou os passes dos jogadores em mercadorias de livre circulação, o que é fundamental para o projeto neoliberal que norteia a globalização.” Neste contexto, cresceram também os chamados clubes-empresas – agremiações esportivas mantidas com capital privado de corporações e/ou investidores – como o União São João de Araras (SP) e o Guaratinguetá, da cidade homônima. Assim, seguindo sobretudo o modelo inglês de gestão, alguns clubes brasileiros passaram a ter donos.
A monetização do esporte o transformou em espetáculo midiático, o que acabou subordinando clubes e dirigentes a interesses de grandes empresas, responsáveis por polpudos contratos de publicidade. Diante disso, idealizou-se um padrão comportamental dentro e fora de campo. Se os torcedores foram impedidos de saborear sanduíches de pernil e levar cartazes ou até mesmo livros (considerados inflamáveis pela polícia) aos estádios, jogadores também sofreram restrições: passaram a ser punidos ao comemorarem gols tirando a camisa ou escalando os alambrados que separam campo e arquibancada.
Distanciou-se, assim, a plateia do “espetáculo”. Em nome da segurança e do conforto, ditou-se como a classe torcedora deveria se comportar e tradições foram extintas. No entanto, o desenvolvimento tecnológico e estrutural do esporte, equiparado ao europeu, não foi seguido por avanços sociais ou técnicos semelhantes.
A higienização da Copa
Embora movimentos de resistência à modernização elitizada do futebol no país não sejam de ontem, a proximidade da Copa tornou os fatos mais evidentes aos olhos do torcedor. “O futebol sempre foi negócio, e sempre acompanhou o desenvolvimento da sociedade. Esse foi mais um passo. A Copa é a campanha final desse processo todo aqui no Brasil”, afirma Mandioca.
A migração dos grandes clubes nacionais para as novas arenas “padrão FIFA” escancarou a nova mentalidade e forma de gestão do esporte. No símbolo máximo do futebol brasileiro e palco final da Copa, a situação foi emblemática. Representantes do Consórcio Maracanã (grupo formado pela construtora Odebrecht e as empresas AEG e IMX, de Eike Batista), atual administrador do estádio, chegaram a afirmar que bandeiras e instrumentos musicais seriam proibidos no local, e que torcedores ainda poderiam ser impedidos de assistirem aos jogos em pé e sem camisa.
“Vamos conversar com o clube para a mudança de hábitos. Me refiro a bambus, aos surdões, assistir o jogo em pé”, afirmou à época o presidente do consórcio, João Borba. A ideia dos administradores era idealizar, junto aos clubes, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que, segundo eles, “[prevalecesse] no Maracanã o tripé conforto, segurança e acessibilidade em benefício de todos”.
Uma semana depois, as declarações foram desmentidas, mas o que se vê nos novos-velhos estádios são medidas não menos restritivas a nível popular, sobretudo nos preços dos ingressos, que muitas vezes deixam as arenas às moscas. Quando se enchem, são tomadas por um público de médio ou alto poder aquisitivo, próximo ao que desejam os consórcios e os grandes investidores do esporte.
A Copa das Confederações, evento-teste para o campeonato mundial, foi realizada no último mês de junho, e os protestos que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras à época chegaram às proximidades do estádio. “Copa da corrupção”, “Queremos hospitais padrão FIFA” e “Copa pra quem?” eram algumas das mensagens levadas pelos manifestantes, constantemente reprimidos pela força policial.
O empenho em levar os protestos para longe dos olhares das câmeras e do “espetáculo” seguiu a fórmula de como a violência nos estádios é combatida nas últimas décadas. Das menores medidas restritivas até as exageradas intervenções policiais, presenciadas até hoje, o que se observa é quase uma higienização do público, com as torcidas organizadas criminalizadas e perseguidas. A desigualdade social e o preconceito, verdadeiras raízes do problema – que não se limita aos estádios – são ignoradas. Como aponta Danilo Mandioca, “a violência é o bode expiatório perfeito pro projeto elitista”.
“Ódio eterno ao futebol moderno”
A rima impactante ecoa pela arquibancada história da Rua Javari durante as partidas do Juventus. É lema da torcida Setor 2, a barra brava (modelo sul americano de se torcer, com muitas faixas, instrumentos musicais e cantos longos e ininterruptos) da equipe.
O Juventus, sediado no bairro da Mooca (63 mil habitantes), Zona Leste de São Paulo, já foi o clube com mais sócios na capital. Hoje, disputando a terceira divisão do Campeonato Paulista e a Copa Paulista (torneio que dá acesso à Copa do Brasil), mantém-se como símbolo de sobrevida da tradição e do futebol mitológico. Além da fiel torcida do bairro colonizado por italianos, o histórico estádio Conde Rodolfo Crespi (a Rua Javari) também recebe simpatizantes que o visitam como quem vai a um museu ou a um templo.
Fundado em 1929, o estádio é o mais antigo da capital e sobrevive sem dar muito espaço para modernizações. Se, para alguns, o Juventus parou no tempo, para outros o clube é símbolo da sobrevida do futebol tradicional e mitológico – coro endossado pela Setor 2.
Parece ironia, mas os movimentos romantizados contra a elitização do futebol também tiveram inspirações europeias. No Velho Continente, onde a monetização e a espetacularização chegaram primeiro, não é raro encontrar manifestações de Against Modern Football na Inglaterra ou No Al Calcio Moderno na Itália.
Uma das principais discussões acerca do movimento é o que ele deseja concretamente. No site Stop Modern Football, um pequeno manifesto lista os aspectos que os saudosistas combatem, como alto preços de ingressos, controle da TV sobre o horário dos jogos, repressão de autoridades e da polícia e a comercialização de clubes.
Antes da primeira partida final do último Campeonato Paulista, entre Corinthians e Santos, no Pacaembu, alguns torcedores corintianos fizeram um protesto contra as entradas caras e a “mídia oportunista e sensacionalista”. Entretanto, escondido em um período do país em que as manifestações ainda não haviam voltado a ser rotineiras, o protesto não ganhou eco.
Em São Paulo, longe dos holofotes e da profissionalização, há também um movimento em forma de clube: o Autônomos & Autônomas FC, fundado no Dia do Trabalho de 2006 por punks e anarquistas. Mistura de ativismo político e time de futebol, o “Auto” também é combatente do que enxerga como “um jogo cada dia mais plastificado e transformado em mercadoria”. Sobre seus níveis de atuação, o cofundador Danilo Mandioca explica que “não [há] pretensão de profissionalizar ou de ser patrocinados. Lutar pelo futebol popular é lutar por retomar o protagonismo no futebol, no jogar e no torcer, então não [queremos nos] tornar maior se isso significar perder o controle das nossas ações”.
Mesmo com esse tipo de iniciativa crescendo, alguns protestos ecoando e clubes tradicionais sobrevivendo, a modernização parece ser – nas palavras do próprio Mandioca – “um processo sem volta”. Para ele, destruí-lo não significa “voltar pro passado, mas pensar um futuro diferente, no futebol e fora dele”. E hoje, agir em uma instância parece tão complexo quanto na outra.