Em algum momento da vida, você já se perguntou o que faria se tivesse super-poderes? Se você pudesse voar e atirar laser pelos olhos como o Superman, ou ser um super soldado como o Capitão América, você utilizaria seus poderes para o bem ou para proveito próprio? Essa é a premissa básica da série mais popular da Amazon Prime: The Boys. A série apresenta como seriam os super heróis na vida real: completos babacas e psicopatas que utilizam os seus poderes para benefício próprio, enquanto um grupo de vigilantes conhecidos como The Boys tenta acabar com eles.
Talvez o fator popular da série decorra de sua constante sátira aos super heróis reais da ficção, como a Liga da Justiça e os Vingadores. No entanto, após uma segunda temporada que foi indicada ao Emmy de Melhor Série Dramática em 2021, a nova temporada apresenta uma trama que não se resume somente à violência e à zoeira, contando também com uma história dramática sobre traumas, poder e vício em drogas.
O trauma e sede por poder que os une
Seguindo os eventos da segunda temporada, a ex-namorada do Capitão Pátria, Tempesta (Aya Cash), foi revelada como uma antiga nazista, o que fez a popularidade dele cair drasticamente, resultando em um controle cada vez maior por parte da Vought — empresa responsável pelos super-heróis — no Capitão Pátria. Enquanto isso, os membros do The Boys começam a trabalhar para Victoria Neuman (Claudia Doumit), diretora do Departamento Federal do Governo, responsável por controlar os super-heróis e monitorar as suas atividades. O único problema é que, como mostra nos últimos minutos da segunda temporada, Vic é uma super que tem o poder de explodir as cabeças de seus inimigos e foi responsável pela morte de inúmeras pessoas.
No começo do novo ano, após descobrirem a verdade sobre quem Vic realmente é, Billy Bruto (Karl Urban), líder dos The Boys, decide voltar a resolver o problema dos supers da sua forma: matando qualquer super que seja uma ameaça. Com a descoberta de uma nova droga chamada V-24, que garante superpoderes para quem ingeri-la por 24 horas, ele conseguirá lutar de igual para igual com os seus inimigos. Com isso, ele inicia a procura de uma possível arma que poderá matar o Capitão Pátria (Antony Starr), paródia do Superman, e responsável pelo estupro e assassinato da ex-esposa de Bruto.
Com a utilização dos poderes por Bruto, a série consegue discutir um dos principais questionamentos da nova temporada: os fins justificam os meios? Bruto começa a fazer tudo que está ao seu alcance para matar o Capitão Pátria e obter sua vingança, o que permite um paralelo muito interessante entre a figura do Capitão Pátria e do próprio Billy Bruto. Ambos fazem de tudo para obterem seus objetivos, inclusive aliando-se com seus inimigos e utilizando de extrema violência e do medo para conseguirem aquilo que querem. Assim, Bruto começa a se tornar um psicopata como Pátria, representando que eles não são tão diferentes assim como pensam.
No entanto, muito mais do que um personagem obcecado por vingança e com gosto pela violência, em especial quando direcionada aos supers, Bruto também é um personagem assombrado pelo seu passado. Essa característica é desenvolvida, principalmente, no sétimo episódio, Uma vela para iluminar seu caminho até a cama, em que o Bruto relembra momentos de sua infância, marcada por um pai violento que batia nele e o suícidio de seu irmão mais novo, pelo qual ele se culpa até os dias de hoje. Dessa forma, The Boys apresenta mais um dos pontos centrais dessa temporada: todos os personagens da série possuem traumas do seu passado e, a maioria deles, busca o poder e a violência para superar os seus medos e questões internas.
V-24: um remédio para vencer os supers ou uma droga que te matará?
Muito mais do que garantir poderes para os membros do The boys por 24 horas, o composto V-24 é uma arma para os roteiristas conseguirem discutir o vício em drogas na série. Isso ocorre porque, assim como qualquer substância química, o V-24 fornece uma sensação de euforia aos usuários por um tempo determinado: superpoderes por 24 horas. Além disso, ela também é viciante, fazendo com que os personagens fiquem constantemente querendo repetir a sensação de poder, mesmo com os efeitos colaterais da droga.
Além disso, a série, novamente, discute a questão dos traumas e de poder com a figura do Hughie (Jack Quaid), um dos integrantes dos The Boys e pupilo do Bruto. O personagem se sente inferior aos outros, possuindo problemas de autoestima e insegurança por não conseguir proteger àqueles que ama, nem mesmo a sua namorada, que é a poderosa Luz-Estrela (Erin Moriarty). Por conta disso, ao utilizar o V-24 e adquirir poderes temporariamente, ele acaba se viciando na sensação de impotência e segurança, mesmo com os efeitos colaterais e quase morrendo por conta dela.
Fascismo e negacionismo no mundo dos super-heróis
O terceiro ano ainda aprofunda em um aspecto político que se conversa com a atualidade: o discurso fascista e negacionista, abrangendo o escopo da série para além de super-heróis despreparados e assassinos. Esse aspecto é observado na série pela figura do Capitão Pátria, que começa a promover um verdadeiro discurso de ódio nos jornais, dizendo que está sendo “atacado pelos empresários” que não deixam ele trabalhar e proteger os EUA em paz.
Além disso, quando o novo personagem da temporada, Soldier Boy, começa a praticar atos considerados terroristas e a causar violência e morte nas ruas, para não demonstrar fraqueza, Capitão Pátria minimiza o problema. O discurso do herói é garantir que o problema está sendo resolvido e que a população não deveria ficar com medo, pois a mídia tradicional está exagerando. Esse discurso fascista e negacionista empregado pelo Pátria na nova temporada soa familiar com discursos utilizados por políticos do mundo todo que procuraram relativizar a pandemia da COVID-19 e dizer que não passava de alarme da mídia, incentivando que as pessoas saíssem de casa e não praticassem o distanciamento social. Paralelamente à realidade, Pátria recebe apoio de pessoas fanáticas que gritam o seu nome mesmo quando ele comete crimes e assassina seus opositores.
A questão política é intensificada com a atuação de Capitão Pátria, interpretado por Antony Starr, que conseguiu recriar políticos fascistas do mundo inteiro. Quanto mais apoio o Pátria vai recebendo, mais insano e imprevisível ele vai se tornando, já que agora não possui mais medo de não receber o amor dos fãs, o que é interpretado de maneira dramática por Antony. Isso cria momentos de tensão toda vez que o personagem aparece na tela, podendo causar um sentimento de angústia no espectador, que não sabe qual será o próximo passo de Pátria: um discurso negacionista ou atirar laser dos olhos matando todo mundo?
Assim como os outros personagens da série possuem problemas internos e traumas para resolver, Capitão Pátria também possui problemas com as figuras dos pais, já que ele nunca possuiu nenhuma figura paterna em sua vida inteira, havendo a necessidade de aprovação e de idolatria dos outros. Antony Starr consegue entregar uma atuação brilhante, que, inclusive, merece uma indicação ao Emmy ao viver o homem mais poderoso do mundo, em frente ao espelho, temdo uma crise de identidade.
Quando o passado decide invadir o presente
A terceira temporada de The Boys também conta com a adição do ator Jensen Ackles ao elenco, conhecido por interpretar Dean Winchester em Supernatural, para dar vida ao personagem Soldier Boy, uma paródia explícita do Capitão América. Assim como a sua versão original, o Soldier Boy também possuía superforça e lutava com um escudo durante a 2ª Guerra Mundial e a Guerra Fria. No entanto, ele foi capturado pelos seus inimigos; colocado em coma e dado como morto, conseguindo escapar e voltar aos dias atuais.
Apesar da inspiração nas habilidades e, até mesmo na história de origem do Capitão América, que representa uma figura de esperança, justiça e patriotismo, o Soldier Boy é um verdadeiro babaca e psicopata, que mata seus inimigos por prazer e inocentes para atingir seus objetivos. Além disso, como o personagem vem de uma outra época com outros costumes, a atuação de Jensen também impressiona ao encenar um personagem preconceituoso encarando situações do mundo atual, como uma mulher possuindo mais participação ou um casal gay nas ruas.
Seguindo a abordagem de traumas dos personagens, Soldier Boy também apresenta questões pessoais, sofrendo com Transtorno de Estresse Pós-Traumático, consequência dos anos de tortura e de abuso pscicológico que o personagem sofria durante o coma nas mãos de seus inimigos. Por conta disso, nos dias atuais, Soldier começa a perder o controle de seus poderes e a matar inocentes quando se depara com algum gatilho que lembre as décadas de tortura, tornando-se o terrorista que o Capitão Pátria tanto insiste em dizer que não existe e que não passa de um delírio da mídia tradicional.
O terceiro ano de The Boys continua apresentando uma característica presente na série desde o primeiro episódio: a sátira sobre super heróis, desde a Marvel, com uma cena ironizando a teoria de Vingadores:Ultimato sobre o Homem Formiga e o ânus do Thanos, até a DC, ironizando o chamado SnyderCut.
Apesar das questões profundas trazidas nesta temporada, como os traumas, as questões políticas e o vício em drogas, a série apresenta soluções muito fáceis aos problemas dos personagens, resolvendo seus arcos de forma rasa e repentina. Mesmo com um final sem desenvolvimento, o espectador pode esperar, na próxima temporada, mais política norte-americana, o que pode agradar aqueles que gostam desse aspecto na série.