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Crônica | Memórias projetadas

Entenda como filmes eram projetados no meio da década de 2000 através do fluxo de consciência de um funcionário nostálgico
Por Leticia Yamakami (leticiayamakami@usp.br)

Eu achava que ser projetor de cinema aumentaria meu amor por filmes. Um ano nesse cargo e eu descobri que não.

Na verdade, sim, eu amo filmes. Gosto da ideia de me desprender da realidade por algumas horas e esquecer das minhas angústias ao me atentar às histórias de personagens fictícios. Gosto de alugar clássicos na locadora que fica a 7 minutos a pé da minha casa que funciona há sabe-sei-lá quanto tempo e tem um dono pré histórico de tão velho. Gosto de estudar nomes de diretores, atores e de pesquisar como as grandes produções são feitas.

Porém, ir ao cinema foi algo que fiz poucas vezes nos meus 26 anos de vida. Pelo menos, antes de começar a trabalhar aqui, eu havia ido apenas duas vezes. A primeira, quando minha mãe se preocupava com o meu desânimo em ter uma vida fora de casa. Com 13 anos, eu tinha apenas dois amigos na escola. No fundo, eu não me importava com a nossa relação fora de lá e nunca me animava em passear com eles.

Então, mamãe disse que iria me incentivar a vivenciar “as coisas legais de São Paulo” e me levou para assistir Jurassic Park – O parque dos Dinossauros. Se eu dissesse que não foi uma experiência marcante, eu estaria mentindo. Clichê, eu sei, mas me admirei com os efeitos especiais que o cinema pode proporcionar, o que acabou despertando minha paixão pela sétima arte.

A segunda vez foi quando arranjei meu emprego. Durante todos esses anos, cultivei minha admiração pelo cinema dentro de casa. Foi ano passado, em um momento de extremo tédio, que resolvi comprar um ingresso para assistir Tapete Vermelho, um filme B brasileiro. Nem sabia sobre o que era. 

Sentado em frente à tela, realmente não prestei nenhuma atenção nos acontecimentos fictícios. Minha mente divagou e se perdeu tentando entender como o filme aparecia ali, como era possível transmitir um vídeo em um dispositivo tão grande a ponto de se tornar um espetáculo para todas aquelas pessoas dentro da sala. Esse questionamento me consumiu. Foi aí que eu não tive outra escolha a não ser descobrir.

Após o término da sessão, fui até o faxineiro da sala e perguntei se eu podia entrar no local de projeção e conversar com o projecionista. Felizmente (ou por realmente não se importar com nada que acontece ali) ele me encaminhou até lá. Peguei o funcionário de saída, mas acho que pela primeira vez na vida alguém havia demonstrado interesse em sua função, porque ele abriu um sorriso e concordou ao me ouvir pedir para que ele me ensinasse tudo em relação ao seu cargo. 

Antes que eu pudesse agradecer e sair dali, ele disse, com certa felicidade no olhar, que aquela era a oportunidade perfeita para se demitir e perguntou se eu gostaria de assumi-lo. O que eu tinha a perder? Quando percebi, já estava caminhando com o então ex-projecionista até o gerente daquele cinema. Como era de se esperar, essa vaga era tão concorrida que o homem com um crachá no peito escrito “gerência” nem perguntou meu nome ao responder que eu começaria no dia seguinte.

Para mim, a minha nova profissão era perfeita. Mecânica, mas nem um pouco exaustiva.

Existem dois tipos de projeção. A analógica e, com a chegada de novos aparelhos chiques e tecnológicos no país, a digital. Eu trabalho com as duas, porque ainda há muitas produções gravadas em película. Ainda bem, diria eu! Sou um pouco (muito) saudosista em relação ao tradicionalismo das coisas.Quando os longas chegam em rolos, minha responsabilidade é maior. Nesse caso, os comerciais, os avisos e até os trailers de outros filmes também vêm em rolos. Hoje projeto apenas um nesse modelo analógico. É O Céu de Suely, do Karim Aïnouz. Tenho apreço por ele.

Ao trabalho. Primeiro, eu desenrolo todo o conteúdo e separo os materiais necessários: tesoura, fita adesiva específica para películas cinematográficas e a coladeira de filmes 35mm. Coloco tudo em sua respectiva ordem: duas películas de propagandas e alertas — que são ignorados pelo público — e as quatro películas do filme em si, já que cada uma conta com aproximadamente 25 minutos.

Eu corto todas as partes que não têm conteúdo a fim de que não haja uma “imagem vazia” no meio da reprodução e para que as fitas não tenham nenhum espaço entre elas. Fita adesiva para emendar tudo. Depois, para a coladeira: a utilizo para que nada saia do lugar e a montagem seja feita da maneira correta. Ela também realiza os cortes da fita adesiva no tamanho exato dos furinhos presentes no canto dos filmes.

Tudo montado. Agora sim, com uma única película completa, eu a coloco na entrada do projetor e ele faz a mágica acontecer. Ele tem duas rodas com dentes que giram para puxar um quadro da fita pelos seus furos, parar por uma fração de segundo e rodar novamente. Os cambers são pequenos rolamentos com molas necessários para esticar o filme para que ele passe com tranquilidade pelas rodas dentadas. Esse movimento interno resulta no que vocês, espectadores, vêem na telona sem interrupções.

Conforme o passar dos dias, percebi que o que me entretém de verdade nessa atividade não é o contato diário com o cinema, mas sim observar as pessoas sentadas nas grandes poltronas vermelhas lá embaixo. Saber que a maioria delas não faz ideia do processo complicado que existe por detrás do ato de ir assistir a um filme me anima. Me faz sentir um pouco mais especial. É quase como se eu soubesse de algo muito importante que a maioria não sabe.

Porém, também há a chance de algum daqueles indivíduos, assim como eu a um ano atrás, estar incansavelmente se perguntando: como esse longo vídeo está sendo projetado? Como ele está aparecendo nessa tela?

Se ele vier até a minha sala tirar essas dúvidas, eu simplesmente direi que não posso ajudá-lo.

*Imagem de capa: Berend van Rossum/Unsplash

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