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A Forma da Água: um conto de fadas moderno sobre solidão, amor e crueldade

Guillermo del Toro não entrega o filme que esperaríamos ser favorito do Oscar. O gênero, uma ficção científica ao mesmo tempo absurda e extremamente poética, já é um desvio considerável do restante dos indicados das grandes premiações anuais. No entanto a profunda estranheza e o ponto de interrogação que permanece conosco muito após os créditos …

A Forma da Água: um conto de fadas moderno sobre solidão, amor e crueldade Leia mais »

Guillermo del Toro não entrega o filme que esperaríamos ser favorito do Oscar. O gênero, uma ficção científica ao mesmo tempo absurda e extremamente poética, já é um desvio considerável do restante dos indicados das grandes premiações anuais. No entanto a profunda estranheza e o ponto de interrogação que permanece conosco muito após os créditos rolarem é prova de que A Forma da Água (The Shape of Water, 2017), merece estar onde está.

Tendo como cenário um universo alternativo fortemente baseado nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, a premissa e seu desenrolar em A Forma da Água é bastante simples. Um romance “Bela e a Fera” com um toque característico de Del Toro é o fio condutor principal do enredo, e é ele que acompanhamos por todo o longa, passando por diversas menções de problemáticas da época, e outras muito atuais.

A heroína (Sally Hawkins) é uma faxineira que alterna sua rotina entre o trabalho – em uma central de pesquisa científica ligeiramente suspeita –, o ônibus que a leva até lá, e o apartamento em cima de uma grande sala de cinema onde mora com o melhor amigo. Seu nome é Elisa Esposito, e devido a um acontecimento em sua infância, é totalmente muda.

Elisa nutre uma paixão pelo cinema musical de Old Hollywood, que é compartilhado com o amigo Giles (Richard Jenkins). Ela se comunica com ele através da linguagem de sinais – e Giles a traduz, dando a ela uma voz quando as legendas que acompanham seus gestos não são suficientes para traduzir sua emoção. Ele é um pintor já além da meia-idade que encontra dificuldades em encaixar seu trabalho num mercado cada vez mais focado na recém-popularizada fotografia, e nutre uma paixão platônica pelo jovem garçom de uma loja de tortas na cidade. Seu escasso e insuficiente salário é gasto na compra de tortas de limão que se amontoam em sua geladeira, porque embora sejam intragáveis, são a desculpa perfeita para encontrar o amado.

Giles não é o único companheiro de Elisa. Também trabalhando no período noturno na central de pesquisa, há Zelda (Octavia Spencer), cuja inteligência e irreverência a permite agir como uma espécie de protetora de Elisa. Isso acontece tanto no dia-a-dia, como sua tradutora e defensora dos problemas que enfrenta no trabalho, quanto ao descobrir que a amiga nutre um carinho anormal pelo novo objeto de pesquisa do estabelecimento.

A Forma da Água
Sally Hawkins e Octavia Spencer, indicadas respectivamente a Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante nos Oscars 2018. Divulgação/Fox Searchlight Pictures.

Giles, sendo um homem gay, Elisa, uma mulher muda, e Zelda, uma mulher negra, são também utilizados para introduzir questões com abordagem cada vez mais demandada pelo público – respectivamente a homofobia, o capacitismo, e o racismo. Pode parecer que Del Toro fez questão de incluir o número máximo de problemáticas sociais possíveis no enredo, seja em uma empreitada publicitária para satisfazer o público que politiza-se cada vez mais, ou em genuina preocupação com a representação destas questões. De qualquer forma, a inserção de momentos que demonstram tais opressões é feita geralmente de forma natural, inserida harmoniosamente em cenas propícias do enredo – mas em algumas cenas (como um ato racista de um personagem secundário contra um casal de figurantes negros, sem influência alguma na história) chega a parecer forçada e inorgânica.

De fato, é de uma dificuldade considerável inserir este número de problemáticas sociais em um só longa, e é um esforço ainda praticado muito raramente entre diretores e roteiristas do gênero de ficção científica – gênero este que frequentemente ganha “passe livre” para ignorar representatividade e relações de poder étnico-raciais e sexuais por tratar-se explicitamente de uma fantasia. Não é possível saber a intenção de Del Toro ao tratar delas em A Forma da Água, mas seu esforço para fazê-lo é louvável.

No entanto, o fio conector de todos os “mocinhos” da história – os três já introduzidos, e outro que está para chegar – não é sua posição como minoria. É sua latente solidão. Elisa, por não poder se comunicar como desejaria com seus arredores, Guiles, por ter a companheira de apartamento como única amiga, e Zelda, por viver uma vida conjugal insatisfatória, todos representam solitários outsiders. É por isso que sua relação com o “monstro” preso no laboratório de pesquisa, completamente sozinho e a mercê do desejo de outrem, surge tão facilmente – ela vem da identificação.

Elisa descobre o ser aquático enquanto limpa o sangue abundante do chão de uma das salas mais secretas do laboratório. Ele foi derramado em um ataque do “monstro” a um dos cientistas envolvidos na pesquisa – o arrogante, violento e ameaçador Richard Strickland (Michael Shannon). No entanto, a faxineira não se amedronta. Sabendo da violência de Strickland, ela até constrói uma empatia pela criatura, e se empenha em aumentar seu contato com ela, aproveitando todas as oportunidades que tem de ficar sozinha na sala onde o monstro está aprisionado.

Ela o traz comida, um toca-discos, e pacientemente sedimenta a relação entre os dois. O contato é terapêutico para ambos – de novo, a solidão e o status de outsider de ambos, mesmo que por motivos distintos, os une. É a primeira interação em que Elisa não tem uma posição menos privilegiada por não se comunicar verbalmente, porque a criatura também não o faz; a identificação entre ambos é maior do que a de Elisa com qualquer outro personagem humano.

A Forma da Água
“Quando ele olha para mim, o modo como ele me olha. Ele não sabe o que falta em mim, ou quanto sou incompleta. Ele vê o que eu sou, como sou.” Divulgação/Fox Searchlight Pictures.

Enquanto essa relação se desenvolve, tramas políticas, espionagem e referências diversas à Guerra Fria também preenchem as cenas. No entanto, elas parecem extremamente secundárias à complexidade e o encantamento trazido pela linha principal, mais emocional e subjetiva, do roteiro; é como se este sub-enredo fosse mantido apenas para sustentar o gênero como uma ficção científica e um mistério, não deixando-o cair em puramente romance.

No entanto, as duas linhas de enredo não seguem separadamente por todo o longa, convergindo na segunda metade para criar uma turbulência na história de amor e amizade entre Elisa, a criatura, Giles e Zelda.

A megalomania de Strickland, que o faz controlar com punhos de ferro o laboratório, a criatura e a própria Elisa, rapidamente se torna uma violência exacerbada, possivelmente fatal. Ele não mais se interessa na pesquisa; apenas deseja acabar com o “monstro”, que ao mesmo tempo teme e despreza.

Strickland é um personagem extremamente unilateral, sua personalidade cruel e desprezível sendo a única mostrada durante todas as cenas que participa. Isto não é, porém, uma falha no roteiro: tratando-se, como Del Toro descreve, de um “conto de fadas”, a presença de um vilão ocorre justamente para gerar uma comparação com outro personagem e revelar neste a bondade.

Este personagem é o próprio monstro, que assim é chamado por boa parte do longa, que é mostrado inicialmente como uma criatura perigosa e violenta que atacou um cientista. No entanto, enquanto a personalidade do monstro é mais explorada e melhor entendida ao longo do filme – ele se mostra como um indivíduo frágil, solitário, inocente e capaz de amar –, a de Strickland torna-se cada vez mais antagônica e vilanesca.

A reflexão proposta é simples: quem realmente é o monstro? A criatura mantida a mercê dos interesses de humanos, utilizada como objeto de pesquisa para uma guerra, ou o cientista sem escrúpulos que não mede esforços para proteger seu poder e seu ego? A linha separatória entre humano e não-humano é turva e instável, e nos convida a refletir sobre nossa própria humanidade.

A beleza de A Forma da Água está em sua simplicidade. A história estende-se o bastante apenas para o público tirar suas conclusões e iniciar suas próprias reflexões, sem que elas necessitem ser explicitadas no próprio longa. Muito diferente do seu típico favorito dos Oscars, esta obra não tenta provar sua qualidade ou sua genialidade. Seu roteiro possui momentos espetaculares e emocionantes, como também possui falhas e cenas mal inseridas – todos eles simples e acessíveis, mantendo o filme apreciável por espectadores casuais, para os cinéfilos, e para os maiores críticos de cinema.

A Forma da Água já está nos cinemas brasileiros. Veja o trailer:

por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com

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