Por Isabel Sampaio (isabel.sampaio@usp.br)
O Museu Metropolitano de Nova York abriu suas portas para receber um dos eventos mais importantes do mundo da moda: o Met Gala, realizado no dia 5 de maio. Considerado por muitos como o Super Bowl — final da liga de futebol americano dos Estados Unidos — da moda, o evento inaugura a exposição da primavera de 2025 no Costume Institute, com o tema: “Superfine: Tailoring Black Style”, ou “Superfino: o estilo negro na alfaiataria”, em tradução livre.
Além da escolha de LeBron James como co-anfitrião honorário, o evento contou com uma equipe selecionada para refletir a temática desde sua divulgação: o rapper A$AP Rocky, o cantor e designer Pharrell Williams, o automobilista Lewis Hamilton e o ator Colman Domingo.
Inspirado no livro Escravos da Moda: Dandismo Negro e o estilo da identidade negra diaspórica (Duke University Press Books, 2009), de Monica L. Miller, professora da Universidade de Columbia, o tema explorou o papel da alfaiataria na construção e reafirmação da identidade negra através do surgimento do Dândi Negro, no contexto das diásporas africanas.
“Me expressar criativamente foi e ainda é a minha liberdade desse conformismo. Para os negros em toda a diáspora, a moda é autopreservação. A moda é resiliência, e mal posso esperar para explorar e amplificar as nossas vozes sub-representadas.”

[Imagem: Reprodução/ Instagram/ Lewis Hamilton]
O Dandismo Negro
Durante a história da humanidade, pessoas negras foram — e ainda são — vítimas de violências, realizadas de forma física, verbal ou institucional, por exemplo, a fim de condicioná-las em uma submissão e condição de inferioridade. Segundo dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em novembro de 2024, mais de 5,2 mil violações de racismo e injúria racial haviam sido registradas pelo Disque 100 durante o ano.
Essa imposição de inferiorização também pode ser vista na moda. Entre os séculos 18 e 19, surgiram leis que ditavam como as pessoas negras podiam se vestir: escravizados precisavam ser identificados a partir de suas roupas, com ordens para tecidos, cores e cortes.
No entanto, homens negros livres ressignificaram o seu vestir, a partir do uso da alta costura como imposição e afirmação de suas identidades, antes vista apenas em corpos ricos e brancos ou em escravos de luxo. Os conhecidos como dândis negros, ao adotarem ternos sob medida, coletes, cartolas e outros elementos, fizeram da moda um mecanismo de denúncia silenciosa.

[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
O Brasil também resiste
A moda afro-brasileira surge no contexto da colonização, mas seu papel político-social foi esquecido desde então. Segundo a pesquisadora Maria do Carmo Paulino dos Santos, mestre em Têxtil e Moda pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH), essa estética se constitui na contribuição de pessoas negras que não tiveram oportunidade de serem vistas.
Ela defendeu seu mestrado em 2019 a partir do desenvolvimento da pesquisa Moda Afro-Brasileira, Design de Resistência: O Vestir Como Ação Política, mas diz que sua pesquisa começou na infância.
“Eu sou filha de costureira, venho de uma família numerosa. Cresci no meio de fardos de tecido dentro de casa e via a minha mãe costurando, trabalhando na peça. Fui ter uma consciência racial do que significava todo esse contexto em que fui permeada na minha infância depois que terminei a faculdade em desenho industrial”, conta.

[Imagem: Juliana Vasconcelos/Acervo pessoal]
Para ela, ser uma mulher negra na indústria da moda foi um processo desafiador. Maria do Carmo chegou a desenvolver problemas no couro cabeludo por conta das violências raciais que sofria em seu trabalho. Para a pesquisadora, alisar seu cabelo era uma forma de se adequar aos “padrões” pré-estabelecidos e conseguir o respeito que a ela era negado.
A partir da promoção de eventos voltados às pessoas negras — como os Saraus e a Marcha do Orgulho Crespo, criada em São Paulo no ano de 2015 —, a pesquisadora passou a perceber e investigar o uso das composições visuais como forma de afirmação identitária: “A questão da moda estava sempre ali, nesse vestir que traz uma identidade afro-brasileira e afro-diaspórica. Era em um turbante, uma bolsa afro, um colete, uma bata”.
Maria do Carmo defende que o sistema da moda deve ser entendido a partir da corporeidade negra. Para a pesquisadora, é necessário reconhecer e nomear as personalidades que foram importantes para a construção da identidade da moda afro-brasileira.
Segundo Hanayrá Negreiros, pesquisadora, curadora e professora de História da Moda na Universidade Federal de Juiz de Fora, uma das principais maneiras de se entender como a população afrodescendente está ligada ao ofício do vestir é o uso da mão de obra escravizada, observada em casas de moda no Rio de Janeiro durante o século 19.

[Créditos: Alile Dara Onawale/Acervo pessoal]
No período em que foi capital do país e residência da família real, o estado passou por um rápido crescimento exponencial. Com a vinda de imigrantes para a cidade, muitas modistas francesas recém-chegadas passaram a abrir suas casas de moda, que eram localizadas, em sua maioria, na Rua do Ouvidor.
A pesquisadora descreve que, com o surgimento desses estabelecimentos, tornou-se comum a procura de mão de obra escravizada para a produção. Mulheres negras que detinham o ofício da costura — transmitido à elas por referências femininas mais velhas, através da oralidade —, desenvolviam e costuravam a maioria das peças, mas os créditos do design eram inteiramente dados à dona do estabelecimento.
Além das casas de moda, famílias brancas com ascensão social também usavam a mão de obra dessas mulheres em suas residências: “Existia uma cultura de famílias brancas abastadas terem pessoas negras trabalhando em suas moradias e realizando costuras. As trabalhadoras, mulheres negras escravizadas, também sabiam costurar, dessa forma é possível rastrear anúncios de compra ou venda dessas mulheres”, pontua Hanayrá.

[Imagem: Reprodução/Acervo Biblioteca Nacional]
Aqueles por trás da luta no país
A Revolta dos Alfaiates, também conhecida como Conjuração Baiana ou Revolta dos Búzios, ocorreu em 1798, no estado da Bahia. O movimento, de caráter emancipatório, foi liderado por alfaiates negros.
De acordo com Maria do Carmo, contar a história da moda afro-brasileira a partir da contribuição desses homens é essencial para iniciar o debate sobre a contribuição negra na moda. O grupo possuía um conhecimento exímio de alfaiataria, dominando as diversas técnicas e habilidades manuais que o trabalho exigia, mas tiveram suas histórias ocultadas.

Além da contribuição do grupo, a pesquisadora destaca a participação dos ourives negros dentro do Brasil Colônia. Durante a época, esses artesãos foram responsáveis por uma imensa produção de joias.
Com o crescimento da ourivesaria — o trabalho com metais preciosos, como ouro e prata, em ornamentos e acessórios —, a Corte Portuguesa passou a adotar medidas para tentar controlar e deter a produção. De acordo com a desenhista industrial, Cartas Régias eram promulgadas visando a proibição da participação de negros e indígenas nos cargos de ourives: “Eles não podiam exercer esse ofício por questões raciais, por questões de cor mesmo”, comenta.
Apesar das tentativas de fiscalização, os grupos exerciam o ofício de maneira clandestina e produziram a maior parte dos adornos. As joalherias produzidas ficaram vinculadas às mulheres negras como um costume. Elas eram fotografadas em poses, com pulseiras, brincos, colares, anéis e outros acessórios, mas raramente identificadas.

[Imagem: Reprodução/Acervo Museu Paulista da USP]
Para Hanayrá, a participação desses grupos na moda é algo que continua em discussão: “Essa é uma história que ainda está sendo contada nos livros de história. Acredito que daqui a uma estimativa de 30 anos isso já seja de conhecimento de um grande público, mas nós ainda não sabemos dessa relação. Então é sempre legal voltar no passado para perceber que desde sempre essas pessoas negras estiveram envolvidas com a moda”.
Joias e adornos: a força das mulheres afro-brasileiras
Com a diáspora africana, o que restou para os povos distribuídos em outros territórios, além das lembranças, eram os resquícios de onde vieram, como os acessórios. A partir disso, muitas mulheres adornavam-se como forma de resistência e reafirmação de suas identidades. O corpo, portanto, era reflexo de suas raízes e espiritualidade.
Para a cosmologia africana, as joias possuem poder espiritual e fornecem proteção aos usuários. Uma das peças mais comuns era o Balangandã, composto por uma estrutura maior envolta de berloques, cada um com um significado diferente.

Durante os séculos 17 e 19, especialmente na Bahia, essa prática foi um mecanismo usado com fins libertários. De acordo com Hanayrá, havia uma diferença entre a vivência negra nos centros urbanos e nas áreas rurais.
Essas mulheres viviam nas grandes cidades, onde contavam com diversas possibilidades de conexões e comércio. A partir do trabalho como vendedoras, conseguiam investir o pouco ganho que obtinham, por meio da aquisição de joias e pedras preciosas — que podiam ser vendidas com maior agilidade e não sofriam desvalorização com as oscilações na economia.
Essa prática era conhecida como pecúlio, e foi fundamental para o desenvolvimento econômico delas, que, a partir da venda das peças, conquistaram a alforria de escravizados.
A desenhista industrial Maria do Carmo Paulino defende que a moda afro-brasileira começou com essa agenda feminina no Brasil Imperial, que marcaram um vestir particular de mulheres negras. Segundo ela, essas personalidades não estavam apenas usando roupas, mas sim fazendo política.
“Esse vestir de forma estratégica, naquele contexto, era ter um protagonismo para poder circular na alta sociedade e negociar os espaços de resistência. Dessa forma, elas conseguiram adentrar a igreja católica, formar irmandades, como a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e tantas outras. O traje é algo que as colocou para frente e fez com que elas se posicionassem”, descreve.