Por: Gabriela Bonin (gabibonin@usp.br)
Negra, pobre e mãe de cinco filhos. Henrietta Lacks foi diagnosticada com câncer no colo do útero em 1951 e suas células revolucionaram a ciência de um modo jamais imaginado. Uma amostra de seu tumor foi retirada para análise e o médico notou a multiplicação e a sobrevivência dessas células fora do corpo humano, dando origem às células HeLa, hoje fundamentais para o desenvolvimento científico.

A trajetória da mulher que mudou a ciência
Nascida em Virgínia, nos Estados Unidos, Henrietta trabalhou por muito tempo em uma plantação de tabaco e, quando casada, mudou-se com seu marido, David, para Baltimore, no estado americano de Maryland. Depois da gravidez de seu quinto filho, em 1951, ela foi diagnosticada com um câncer no colo do útero e atendida no único hospital do estado que aceitava pessoas negras, o Johns Hopkins. O tratamento não foi eficiente e ela morreu no mesmo ano, deixando, no entanto, um legado imensurável para a humanidade.
Antes de seu falecimento, em um procedimento comum em casos de câncer, o médico retirou uma amostra do tumor para análise e constatou que as células de Henrietta sobreviviam fora de seu corpo, podendo ser cultivadas e reproduzidas em laboratório. Até então, a medicina não encontrava um meio no qual células pudessem se manter vivas e George Gey, médico fisiologista do hospital, divulgou a descoberta ao mundo algumas semanas após o procedimento. Essa novidade permitiria um avanço inexplicável no estudo de culturas celulares, uma vez que essas organelas — as estruturas encontradas dentro das células — não teriam um “prazo de validade” como em células comuns.
Todavia, há uma discussão ética que envolve as HeLa. Os problemas têm início com o fato de que Henrietta ainda estava viva quando esse material foi divulgado e, enquanto os cientistas se maravilhavam com a descoberta, sua família não tinha conhecimento algum do procedimento e não havia autorizado o uso dessas células. Além disso, apesar do nome derivar das iniciais de Henrietta Lacks, muitos artigos científicos da época traziam “Helen Larson” ou “Helen Lane” como fonte das células imortais, negligenciando a pessoa que originalmente forneceu esses corpúsculos tão importantes.
O professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, Carlos Frederico Martins Menck, ao ser questionado sobre as normas que envolvem um procedimento como esse, comenta que “na época de Henrietta, não existia nenhum questionamento ético sobre o assunto. Não foi uma falha dos pesquisadores da época. Simplesmente, nem se pensava nesse tipo de assunto”. Ele também cita a importância desse processo para a ciência da atualidade: “A gente não tira um fio de cabelo de alguém sem a autorização da pessoa. Atualmente, é preciso um termo de consentimento, onde você esclarece ao paciente o que será feito e, eventualmente, ele pode permitir que você use o material para futuras pesquisas. Mas tudo isso tem que ser assinado e, anteriormente, passar pelo Comitê de Ética”.
Os resultados das HeLa
A primeira conquista derivada do uso das células HeLa foi a obtenção da vacina contra a poliomielite, doença que causou paralisia em muitas crianças no século passado. Além disso, as células permitiram o desenvolvimento de medicamentos para diabetes e para a doença de Parkinson. Sua principal e inesgotável contribuição se encontra nos estudos de câncer, uma vez que as próprias células derivam de um tumor.
Nos dias atuais, as HeLa continuam sendo utilizadas para o desenvolvimento da ciência. “As células de Henrietta Lacks permitiram o crescimento do conhecimento da biologia molecular, de como as células se replicam ou se tornam tumorais. Ainda hoje, fazemos em nosso laboratório cultura de células HeLa”, constata o professor Carlos Menck. “Tentamos saber, por exemplo, se é possível desenvolver um anti-tumoral. As características dessas células podem ser estudadas e nos ajudar, inclusive, a obter mais tipos de medicamentos. Atualmente, estamos usando as células HeLa para buscar um medicamento que pode ser útil para o câncer de colo de útero”.
Para se ter noção da expansão da utilização dessas células, estima-se que, se todas as HeLa existentes atualmente fossem colocadas lado a lado, elas seriam capazes de recobrir toda a extensão do planeta Terra mais de três vezes.
Adaptação literária e cinematográfica
Em 2010, a jornalista Rebecca Skloot publicou o livro “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”, que reconstitui toda a trajetória da família Lacks e demonstra a influência das HeLa para o mundo científico. O livro, bestseller do The New York Times, foi construído a partir de um trabalho minucioso da jornalista, que realizou uma imersão na família Lacks para entender melhor os acontecimentos. “Quando eu aprendi sobre as células de Henrietta pela primeira vez na aula de biologia, as primeiras questões que fiz ao professor foram se ela tinha filhos, o que eles pensavam sobre as células estarem sendo usadas após sua morte e o que o fato dela ser negra tinha a ver com aquilo”, comenta Rebecca ao ser questionada sobre suas motivações para escrever o livro.
A jornalista, ainda falando sobre sua jornada de escrita, diz também que “em 1988, quando meu professor de biologia me perguntou se eu podia achar mais informações sobre Henrietta, nenhum de nós dois poderia imaginar que eu passaria mais de duas décadas trabalhando para responder uma pergunta que ele fez em sala de aula”. Seguindo essa linha de raciocínio, Rebecca cita a importância da educação, dizendo que “você nunca sabe qual frase aleatória de um professor vai ser responsável por mudar a vida de um aluno”.
O sucesso da narrativa chamou a atenção da HBO, que, em 2017, lançou o filme homônimo ao livro. O longa-metragem conta com Oprah Winfrey no papel de Deborah, uma das filhas de Henrietta e com Rose Byrne interpretando Rebecca Skloot. Com cenas emocionantes, “A Vida Imortal de Henrietta Lacks” traz às telonas a jornada da família junto à jornalista em busca do reconhecimento de Henrietta.

É impossível medir a importância do reconhecimento de Henrietta Lacks, mesmo ela tendo ficado tanto tempo na invisibilidade. Nas palavras de Rebecca Skloot, “a história das células HeLa é sobre raça, classe social, ciência, ética e a importância do acesso à educação e aos tratamentos de saúde”. Por todos esses motivos, é necessário que a humanidade lute para que as heroínas e os heróis da ciência tenham sempre a credibilidade que merecem.