Por Lorenzo Souza (lorenzosouza@usp.br)
Estreou no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade Mundurukuyü: A Floresta das Mulheres-Peixe. O documentário é roteirizado e dirigido por três mulheres do coletivo Daje Kapap Yepi: Aldira Akay, Beka Munduruku e Rylcélia Akay. O longa tem como objetivo manter viva as histórias, tradições, língua e luta da terra indígena Sawre Muybu, do povo Munduruku, às margens do Rio Tapajós.
O documentário é dividido em três capítulos, cada um marcado por parte das histórias fundadoras dos Munduruku e detalhes das vivências da população atual da aldeia Sawre Muybu.
Estudos etnográficos e dados governamentais, como os do programa Povos Indígenas do Brasil do Instituto Socioambiental (ISA), caracterizam os Munduruku como um povo de tradição guerreira. Esse fator reflete em suas tradições, suas histórias formativas, suas lutas por proteção do território e no formato em que a obra foi roteirizada e dirigida. A existência do documentário e todas as informações contidas nele é uma declaração também de luta: uma tentativa — que até o momento, funciona — de manter vivas as raízes de toda uma população.
Quase todas as características técnicas do documentário são baseadas na cultura Munduruku. A direção é feita pelo coletivo Daje Kapap Yepi, especificamente pelas três diretoras que também participaram da roteirização da peça. A trilha sonora é inteiramente composta por cantigas Munduruku. A narrativa é unicamente relacionada à história do povo e todas as gravações utilizadas são da população da aldeia Sawre Muybu vivendo seu dia a dia.
Essa imersão na cultura do povo Munduruku, aliada à fenomenal direção do documentário criam um efeito único: assistir as cenas, ouvir as histórias dos anciões e ver a aldeia nos tempos de hoje é quase como estar ali, participando. O jogo de câmeras e as belas imagens capturadas fazem com que o espectador sinta-se também coletando cascas de árvores diversas ou pescando com os nativos. A direção consegue tornar a tela do cinema em olhos — é como se o público fizesse parte da história, participando de todas as atividades, quase como se fossem parte do povo Munduruku.
Nuances da cultura
Um dos ricos aspectos da cultura Munduruku e foco de grande parte do documentário são seus mitos fundadores. De acordo com eles, a área hoje pertencente à Terra Indígena Munduruku, ao redor do Rio Tapajós, chamava-se Mundurucânia e, em seu pico mais alto, residia Karosakaybu, herói criador de todas as histórias do povo. Era um homem dotado do poder de criação, podendo modificar lugares, transformar planícies em cachoeiras e até transformar gente em animal. Ele também podia transfigurar-se em animais diversos.
Karosakaybu é o personagem principal de todos os mitos fundadores dos Munduruku. Ele é o herói que cria o mundo, ensina os Munduruku a pescar, colher e viver em meio a natureza. Também é Karosakaybu que dá ao povo a habilidade de se transformar em animal. “Antigamente, tínhamos a tendência de nos metamorfosearmos”, diz um dos anciões da aldeia Sawre Muybu, responsáveis por contar esses mitos durante o documentário. O termo “mulheres peixe”, que dá título à obra, também tem relação com essas histórias.
“Os peixes não são bobos, porque se metamorfosearam de nós, mulheres”
Moradora da aldeia Sawre Muybu
De acordo com anciões do território Sawre Muybu, em dado momento, Karosakaybu transformou um de seus filhos em uma anta por ter relações com diversas mulheres da aldeia dentro de casa. Ele foi condenado a morar no Rio Tapajós e elas, consternadas, começaram a visitá-lo com frequência para continuarem suas relações. Os maridos dessas mulheres notaram a atividade e armaram para caçarem a anta e comerem-na, deixando apenas sangue como vestígio. Os restos foram utilizados por Karosakaybu para criar uma outra anta, dessa vez horrenda, para ficar no lugar de seu antigo filho no rio. As mulheres descobriram essa armação e, tristes pela morte de seu amante, jogaram–se no rio, afundando o suficiente para tomar um outro formato de vida e, assim, transformando-se em “mulheres peixe”.
Esses mitos, para os Munduruku, servem não apenas como explicação de suas tradições centenárias, como também para a construção da memória de sua ligação com a natureza. Para eles, a floresta é uma força viva já que ,um dia, tudo foi humano. E, dessa forma, todos os seres da floresta são também parte da família. A luta pela demarcação dos territórios e manutenção da natureza em seu estado habitual se relaciona com esses ensinamentos. Para os Munduruku, a situação é clara: a natureza é viva.
“Quando destruímos, é como se cortássemos seus dedos”
Ancião da aldeia Sawre Muybu
Luta pela demarcação
A luta por demarcação de terras e proteção da natureza é outro pilar do documentário. A Terra Indígena Sawre Muybu teve o início do processo legal de demarcação em 2007, com a primeira Portaria de estudos homologada. No entanto, somente em 2021 houve a primeira Portaria delimitando a área e, apenas em 2024 a declaração de terra foi publicada. A luta pela demarcação, pela manutenção da floresta em seu estado habitual e pela saída de garimpeiros e madeireiros da terra indígena também faz parte da cultura dos Munduruku. É necessário que o território continue vivo para que as próximas gerações possam viver essa cultura, de forma mais livre.

E é no âmbito da luta indígena que a produção de Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres Peixe se encaixa. O coletivo Daje Kapap Yepi cria diversas produções audiovisuais narrando manifestações, viagens e protestos acerca da demarcação de terras. Aldira, Beka e Rylcélia são ao mesmo tempo diretoras, roteiristas e personagens na narrativa. O povo indígena Munduruku, que é foco de todo esse trabalho, é composto também por elas. A luta por demarcação afeta suas vidas, assim como o conhecimento dos mitos e a manutenção do dia a dia da aldeia. Imersas em um ambiente de luta, “a câmera vira como uma arma”, de acordo com elas.
Interligação entre passado e futuro
Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres Peixe tem o difícil trabalho de servir como guia para que uma cultura inteira não se perca. Uma das preocupações das diretoras, que levaram-nas a produzir essa obra, era que as gerações mais jovens de Sawre Muybu já não entendiam palavras em munduruku, não sabiam de comemorações típicas e nem conheciam a própria história, sua origem do mundo.
É impossível deixar exposto, em um período limitado de tempo, toda a história, costume, cultura e vivências de um povo centenário. Mas é, sim, possível deixar em destaque as partes mais urgentes, as características fundamentais de uma cultura e criar um “manuscrito” de fácil acesso. O documentário pode não explicar todas as minúcias da cultura munduruku, mas serve como um farol para as gerações futuras. Através dele, é possível manter vivo boa parte do que é ser munduruku.
Três pilares do povo munduruku aparecem com frequência durante a obra: os mitos, o dia a dia e a luta por demarcação. Esses três fatores, porém, não aparecem por acaso. Pelo contrário, eles estão interligados. Com o pesado intuito de manter viva toda uma cultura, os mitos servem para que se lembrem do passado, o dia a dia, as vivências, para que seja compreensível o presente e as lutas por demarcação e manutenção do habitat natural, para que haja futuro não só o povo munduruku, mas para todo o mundo.
A excelência do documentário é retratada tanto pelas habilidades técnicas das diretoras e de toda a equipe de produção, quanto pelo seu objetivo: declarar que na região do Rio Tapajós, houve, há e haverá um povo denominado Munduruku.

Esse filme fez parte do Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’. Para mais resenhas do festival, clique na tag no início do texto.
*Imagem de capa: Reprodução/José Cruz/Agência Brasil