Por Alinne Maria Aguiar (alinnemariaaguiar@usp.br)
Após quatro anos fora do ar, o seriado Chaves (1973-1994) voltou à programação brasileira com uma exibição especial pelo SBT em outubro do ano passado. O seriado havia sido retirado em 2020 devido a disputas entre a emissora mexicana Televisa, mantenedora das fitas dos episódios, e os herdeiros e titulares das obras de Roberto Gómez Bolaños, criador do universo de Chaves e outros programas de sucesso. A notícia animou os fãs e provou que, mesmo após mais de quatro décadas da estreia no Brasil, o seriado ainda cativa o público brasileiro. Mas o que explica o sucesso duradouro da série mexicana?
Tudo culpa do Chespirito
A história de Chaves e tantas outras produções audiovisuais do México começou em 21 de fevereiro de 1929, data de nascimento de Roberto Mario Gómez y Bolaños, na Cidade do México. Segundo filho do cartunista e pintor Francisco Gómez Linares e da secretária bilíngue Elsa Bolaños Cacho, Roberto se aventurou em muitas áreas até chegar à televisão. Apaixonado por futebol, chegou a jogar pelo time Atletico Marte, mas abandonou o esporte devido à baixa estatura e ao porte físico leve. Com fama de briguento entre as crianças de seu bairro, também se aventurou no boxe escolar e competiu por dois anos em campeonatos estudantis. Anos depois, ingressou na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) no curso de engenharia. Ainda que tivesse aptidão e gosto pela matemática, Bolaños abandonou a faculdade após dois anos.
O primeiro contato de Bolaños com a televisão aconteceu em 1954. Ele trabalhava em uma fábrica quando viu, em um jornal, um anúncio de vaga para aprendiz de escritor em uma agência de publicidade. Aceitou o desafio e, na nova função, desempenhou várias tarefas, como a criação de jingles e slogans para comerciais. Seu talento para o humor logo chamou a atenção dos executivos da agência, que o convidaram para escrever roteiros do programa Cómicos y Canciones (1958-1967), estrelado pela dupla cômica Viruta e Capulina.
Inicialmente trabalhando apenas atrás das câmeras, Roberto estreou como ator por acaso. Certa vez, o protagonista de Cómicos y Canciones faltou às gravações e Roberto foi chamado para substituí-lo. Sua atuação agradou a produção e, a partir desse momento, ele começou a escrever pequenos papéis para si. Em entrevista para o livro Chespirito – Vida y magia del comediante más popular de América (Aguilar, 2013), Roberto revelou que as modalidades esportivas que praticou na juventude — futebol, boxe, natação, salto e atletismo — o ajudaram a dar vida a seus personagens sempre enérgicos.
[Imagem: Reprodução/ Instagram/ @chespirito_rgb]
Em 1970, Bolaños escreveu o programa El Ciudadano Gómez para a estreia do canal TIM. No mesmo ano, foi convidado pelo produtor do programa Sábados de la Fortuna (1969-1970) a criar uma esquete de humor, dando origem a Los Supergenios de la Mesa Cuadrada (1970-1973), uma paródia dos populares programas de mesa-redonda da época. Nessa esquete, surgiu o personagem Doutor Chapatin, que acompanharia Chespirito por toda a sua carreira. Chapatin é um médico idoso — que detesta ser chamado de velho —, rabugento e mulherengo.
Outro sucesso na TV TIM foi Los Chifladitos (1971-1972), no qual Bolaños, como Pancada Bonaparte, fazia dupla com Rubén Aguirre, que interpretava Lucas Pirado. Juntos, os personagens atormentavam a vizinhança com diálogos absurdos e sem lógica. Apesar do sucesso, a esquete foi interrompida quando Aguirre deixou o programa para se tornar diretor de um programa em outro canal.
A substituta de Los Chifladitos foi justamente aquela que traria o maior sucesso de Bolaños: Chaves. A esquete que deu início à história de Chaves mostrava um menino de oito anos, interpretado por Bolaños, discutindo com um vendedor de balões, personagem que mais tarde se tornaria o Seu Madruga (Ramón Valdés), em um parque de diversões,. A partir dessa premissa simples, nasceu o enredo do menino órfão e travesso que conquistou corações em toda a América Latina.
A vila do Chaves
A mente criativa de Roberto Bolaños deu vida a personagens de uma vila que se destacam por suas características únicas e memoráveis. Embora cada um possua singularidades marcantes, esses personagens refletem trajetórias e trejeitos típicos dos latino-americanos, o que facilitou a identificação do público. Em entrevista ao Sala 33, Danilo Lanza, admirador das obras de Chespirito, ressalta que o seriado não tem um caráter surreal, o que ajuda na conexão: “São situações que acontecem no dia a dia”.
O roteiro de Bolaños e o talento dos atores deram ao seriado Chaves qualidade atemporal. A roteirista Letícia Padilha destacou, ao Sala 33, que o texto de Chespirito era pensado de forma matemática: “As quedas, a sequência de ‘traquitanas’, o tamanho do texto, o tamanho da piada, o número de repetições da piada, a divisão de diálogos entre os personagens, o número de personagens por cena. Tudo isso influencia o timing do riso.”
Chaves é um menino pobre e órfão que vive em um barril e tem como maior desejo algo simples: um sanduíche de presunto. Ingênuo e cheio de imaginação, ele sempre encontra maneiras de se divertir, mesmo com os poucos recursos que tem. Uma de suas características mais marcantes — dançar enquanto fala em momentos de nervosismo — foi inspirada pela própria filha de Bolaños. Chaves representa as milhares de crianças que vivem em extrema vulnerabilidade social. Tanto os moradores da vila quanto o público desconhecem detalhes sobre seu passado, inclusive o mais importante: seu verdadeiro nome. Por trás das piadas e situações cômicas, o personagem revela, de forma sutil, as duras realidades que enfrenta, como a fome e o abandono parental.
“Este personagem era o melhor exemplo da inocência e da ingenuidade próprias de um garoto e o mais provável é que essas características tenham gerado grande carinho que o público sentia por ele” Bolaños sobre Chaves, para o livro Chespirito – Vida y magia del comediante más popular de América.
Rabugento, preguiçoso, impaciente e com 14 meses de aluguel atrasado, Seu Madruga (Ramón Valdés), um homem de meia-idade, conseguiu derreter os corações dos telespectadores e se transformou em um dos moradores mais queridos da vila. Apesar de enfrentar as dificuldades da vida — e, claro, os tapas da Dona Florinda — Seu Madruga sempre tentava manter o ânimo. Com uma sabedoria que só a vivência pode proporcionar, ele lembrou ao público que “a vingança nunca é plena, mata a alma e envenena”. Ou seja, mesmo diante das adversidades, o rancor e os sentimentos negativos não devem dominar o coração. “A história, de certa forma, gira em torno dele. Tanto que, quando ele saiu do seriado, o programa precisou criar outro núcleo e cenário para não ficar monótono.”, comenta Danilo Lanza.
Sua filha, Chiquinha, interpretada por Maria Antonieta de Las Nieves, carregava o título de criança mais esperta e travessa da vizinhança. Do pai, herdou a habilidade de usar a lábia para escapar das situações mais complicadas. Chiquinha nutria uma paixão ingênua e não correspondida por Chaves, criando momentos cômicos e ternos ao longo da série.
Apesar de viver no mesmo ambiente humilde da vila, Dona Florinda (Florinda Meza) se considera superior aos demais moradores, e, por isso, os chama de “gentalha”. Viúva de um marinheiro, ela dedica seus suspiros apaixonados ao Professor Girafales, por quem nutre uma profunda admiração por sua inteligência e boas maneiras. Mal-humorada e frequentemente rude, especialmente com Seu Madruga, Dona Florinda mostra um lado mais carinhoso como mãe, embora exagere ao mimar seu filho, Quico.
Carlos Villagrán deu vida ao Quico, filho superprotegido de Dona Florinda que acredita ser superior às demais crianças da vila e frequentemente tenta rebaixá-las exibindo seus brinquedos caros. Mesmo tendo mais recursos que Chaves, Quico sente inveja do garoto órfão, talvez pela atenção e carinho que este recebe dos outros moradores. Com suas bochechas enormes, alvo constante de piadas, o menino sonha com algo tão inusitado quanto ele: uma bola quadrada.
O padrasto do Quico, Professor Girafales (Rubén Aguirre), é o mestre das crianças da vila. Apesar de ser um homem culto, ele demonstra insegurança ao tentar expressar seus sentimentos por Dona Florinda, por quem é perdidamente apaixonado. Sempre que a visita, faz questão de levar um buquê de flores. Impaciente e constantemente frustrado, ele enfrenta as travessuras e a falta de disciplina de seus alunos, além dos apelidos que fazem referência à sua altura.
“Ter personagens de todas as idades, com questões próprias às suas idades:uma criança que não é chamada pra brincar, o desemprego, que é um problema de adultos” Letícia Padilha, sobre o sucesso de Chaves entre crianças e adultos
A “bruxa do 71” — ou melhor, Dona Clotilde (Angelines Fernández) — é uma mulher mais velha que, devido à sua aparência excêntrica e ao ar de mistério, é frequentemente chamada de bruxa pelos vizinhos, especialmente pelas crianças. Solteira e apaixonada por Seu Madruga, ela sofre com a falta de reciprocidade em seus sentimentos. Curiosamente, essa ausência de correspondência existia apenas nas telinhas; na vida real, Angelines e Ramón Valdés eram grandes amigos. Foi, inclusive, Ramón quem a indicou para integrar o elenco de Chaves.
O Senhor Barriga (Edgar Vivar), dono da vila onde vivem os personagens, é um homem rígido, mas de bom coração. Apesar de sua fortuna, ele demonstra paciência e até certo afeto pelos moradores, especialmente por Seu Madruga, mesmo sofrendo com os constantes atrasos no pagamento do aluguel.
Não contavam com a minha astúcia
Outro programa de Bolaños, Chapolin (1973-1979), caiu nas graças do público, assim como os moradores da Vila do Chaves. Paródia dos super-heróis da época, o Polegar Vermelho — um dos apelidos de Chapolin — encantou crianças e adultos com seu jeito destrambelhado, que mais atrapalhava do que ajudava as vítimas, além de sua falta de coragem e um ego exagerado.
O personagem foi apresentado pela primeira vez em uma esquete em que um cientista à beira da morte não sabia a quem deixar sua última invenção: pastilhas que faziam a pessoa que as engolisse diminuir de tamanho. O sortudo que ganhou as pastilhas foi Chapolin Colorado, considerado o mais honesto entre os visitantes do cientista.
Em 1972, as aventuras de Chapolin ganharam sua própria série. Nela, o super-herói atrapalhado e medroso enfrentava os mais diversos vilões, desde pistoleiros do Velho-Oeste até bruxas. Em entrevista ao livro Chespirito: Vida y Magia del Comediante Más Popular de America, Bolaños contou que o personagem com quem mais se identificava era Chapolin: “Fui medroso durante toda a minha vida. Mas, assim como ele, superei meu medo”.
“Tudo foi acontecendo de forma tardia. Isso pode servir como estímulo para as pessoas porque a primeira vez que fiz algo foi como Chapolin Colorado, e eu tinha 41 anos, e depois com Chaves, aos 42. Nunca é tarde para começar”
O menino órfão que conquistou o coração do Brasil
Em 1981, Silvio Santos, então dono da TVS (hoje SBT), firmou um contrato com a Televisa para adquirir novelas e trouxe também os programas El Chapulín Colorado (1973-1979) e El Chavo del Ocho (1973-1980). A princípio, a alta direção do SBT desaprovou as séries, considerando a imagem de baixa qualidade e os cenários modestos. No entanto, José Salathiel Lage, diretor de dublagem do SBT, acreditava no potencial dos programas e convenceu Silvio a apostar neles. O SBT contratou a cooperativa MAGA, de Marcelo Gastaldi, para dublá-los. Com isso, Chaves estreou no Brasil em 1984, no programa TV Powww! (1984-1989).
Um dos principais fatores para o grande sucesso de Chaves no Brasil foi, sem dúvida, a dublagem brasileira. Admirador da série, Enzo Motta destacou em conversa com o Sala 33 a qualidade desse trabalho: “A dublagem é excepcional. Tanto que, se você assistir ao seriado no idioma original, parece estranho”. Esse trabalho envolveu desde adaptações cuidadosas, como traduzir Don Ramón para Seu Madruga, até ajustes em referências culturais para aproximá-las do cotidiano brasileiro. Como, por exemplo, a frase “era melhor ter ido ver o filme do Pelé”, que no original era “filme do Chanfle”, uma obra estrelada pelo próprio Bolaños.
Quarenta anos após sua estreia no Brasil, Chaves permanece como uma presença constante na vida de muitos brasileiros, seja nas frases repetidas por seus fãs ou nas inúmeras páginas dedicadas ao programa.
Em entrevista ao Sala 33, o jornalista Antonio Felipe Purcino explicou os elementos que tornaram a criação de Bolaños um verdadeiro carinho nacional: a inteligência dos roteiros de Bolaños, a repetição dos bordões e situações cômicas, além do talento dos atores e dubladores. “O SBT repetiu muitos episódios e, quase todo dia, eles estavam ali na televisão”, relembra Antonio, que administra a página Fórum Chaves.
Enzo Motta é uma prova de como Chaves atravessa gerações. O fã, que começou a acompanhar o seriado três décadas após sua estreia, acredita que a simplicidade é o segredo do sucesso da série: “O mais simples é o que mais funciona, se for feito do jeito certo”.
Exposição
Para comemorar os 40 anos de Chaves no Brasil, o Museu da Imagem e Som – MIS Experience organizou uma exposição sobre o programa. Entre janeiro e agosto de 2024, a mostra ofereceu uma experiência imersiva, com réplicas dos cenários que compõem o seriado, como a casa do Seu Madruga e o pátio da vila. O público pôde apreciar um acervo exclusivo que inclui figurinos, itens de cena e roteiros originais das produções de Chespirito.
A página Fórum Chaves atuou na curadoria no evento, por meio da produção de pesquisas e textos que subsidiaram a exposição.
Danilo Lanza, que visitou a exposição, ficou entusiasmado com os itens originais. “Achei muito legal a exposição estar no Brasil. Isso mostra que o Brasil valoriza Chaves, até mais do que o próprio país onde Chaves foi feito”.