Hugo Nogueira
Laura (Celia Johnson), uma convencional dona de casa de classe média, casada com Fred (Cyril Raymond), um marido igualmente convencional e pouco afetuoso, conhece, casualmente, numa estação de trem, o médico Alec (Trevor Howard), também casado. Deste primeiro encontro fortuito entre duas pessoas comuns, advêm vários outros na mesma estação. Paulatinamente, ambos se apaixonam, embora sejam incapazes de consumar livremente o adultério. Atormentados, de um lado, pelo amor cada vez mais intenso e, de outro, pelo profundo sentimento de culpa oriundo da rede de mentiras que são obrigados a tecer, Laura e Alec vêem a oportunidade do amor escorrer pelas suas mãos até a decisão final num derradeiro encontro na mesma estação de trem onde o acaso os reuniu.
Embora a atmosfera épica das produções cinematográficas posteriores de David Lean, tais quais A Ponte do Rio Kwai (1957), Lawrence da Arábia (1962) e Doutor Jivago (1965) estejam ausentes nesta obra, Desencanto reúne alguns elementos típicos da carpintaria cinematográfica do diretor. Ali estão a narração firmemente articulada em flashbacks e reforçada pela voz em off da protagonista, a antecipação simbólica do final do filme já nos créditos iniciais – mediante a paradigmática cena em que dois trens se cruzam, seguindo direções opostas, numa intensa metáfora visualdo romance de Laura e Alec – ea própria simbologia dos trens, a qual permeia quase toda obra de Lean.
Desencanto desafiou uma série de convenções cinematográficas: não astros no elenco, não são providenciadas soluções artificiais para a história do amor adúltero, não há nenhuma opulência nos cenários e nos figurinos – a vitalidade do filme deriva da sólida abordagem de uma história de amor e renúncia entre duas pessoas maduras numa concepção definitiva do intimismo no cinema. Além da trama perfeitamente articulada, o filme é marcado por uma unidade conceitual exemplar. A áspera crítica à moral do establishment contida no argumento original de Noël Coward coaduna-se perfeitamente com a bela fotografia de foco profundo concebida por Robert Krasker, a qual, com planos longos e penetrantes panorâmicas em locações inóspitas, acentua dolorosamente a fragilidade dos protagonistas sob a pressão das convenções sociais. O Concerto Número 2 para Piano de Rachmaninoff, tema musical do filme, por sua vez, traduz todos os matizes da pungente ambivalência emocional que arrebatou vertiginosamente os dois amantes magistralmente interpretados por Celia Johnson e Trevor Howard.
Na medida em que todo o filme é construído sob a perspectiva subjetiva de Laura, a comovente interpretação de Celia Johnson consiste num dos maiores trunfos da produção. Compondo sua personagem com um sutil comedimento, Johnson converte-a numa mulher madura, solitária, incrivelmente terna e suave, uma criatura humana absolutamente perplexa diante do arrebatamento da paixão, oscilando vertiginosamente entre as sensações do afeto e uma culpa irremissível e sempre tragicamente incapaz de romper com as amarras do seu trivial destino social. Os gestos delicados e os olhares impregnados de uma transcendente tristeza de Celia Johnson, a interpretação igualmente vigorosa de Trevor Howard e a direção de David Lean tornam completamente inevitável o pleno envolvimento do espectador com a obra, uma das mais belas e singelas historias de amor impossível já celebradas nas telas de cinema.